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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

História pessoal

Carta aberta ao militante negro da Geração Z

Show do Racionais MC"s em 2013. (Foto: Fernando Eduardo/licença Creative Commons Attribution 2.0 Generic/Wikimedia Commons)

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“Porquanto o nosso movimento não é um diversionismo, não visa objetivos pitorescos e nem se caracteriza por aquela irresponsabilidade que, infelizmente, tem prejudicado a maioria das iniciativas de negros no Brasil.” (Abdias Nascimento, ao apresentar os objetivos do Teatro Experimental do Negro)

Caro militante da Geração Z:

Enquanto escrevo-lhe essa carta, ouço Westside Connection, um supergrupo de rap formado por três lendas vivas do gênero – Ice Cube, Mack 10 e WC – e que representa o ápice do gangsta rap. Seu álbum Bow Down, de 1996, é, muito provavelmente, o CD de rap que mais ouvi na vida. Talvez você não o conheça, pois, tendo nascido após o ano em que o álbum foi lançado, quando se deu por gente o must eram, talvez, o genial Kendrick Lamar e o decepcionante (para você, claro) Drake. Nada contra, obviamente.

Digo isso não para cavar um argumento de autoridade etária, mas para evidenciar-lhe minha geração. Nasci em 1975, numa família preta, de homens pretos que se casaram com mulheres pretas. Meus irmãos, Adilson, Carlos (i.m.) e Mário, nasceram 10, 11 e 12 anos antes de mim, respectivamente. Ou seja, uma família de homens pretos mais velhos, que viveram o auge dos bailes da Chic Show, no Clube Palmeiras, no fim dos anos 1970/início dos 80; auge do funk e da disco music. Homens pretos que amavam (e tinham plena consciência do que é) serem pretos. Cresci imerso nesse universo cultural. Uma família ecleticamente musical, sobretudo; com meu pai entrando com o elemento, digamos, mais erudito, que ia de Ray Conniff a Ladysmith Black Mambazo, passando por Neil Diamond e Chopin; minha mãe, com o samba de Adoniran Barbosa, Clara Nunes, Alcione e Beth Carvalho; e meus irmãos, com pizza na calça, boné de couro, tênis Forward e Pro-Keds, ouvindo James Brown, Jimmy “Bo” Horne, Bay-Kays etc. Antes dos 10 anos eu já me emocionava com The Manhattans e o Little Michael de Iʼll be there e Happy (não, não é a do Pharrell).

Nasci numa família preta, de homens pretos que se casaram com mulheres pretas. Uma família de homens pretos mais velhos, que amavam (e tinham plena consciência do que é) serem pretos

Vi o surgimento do hip hop e, no fim dos anos 1980, um dos meus divertimentos infantis favoritos era dançar break; ouvi muito The Fat Boys, Kool Moe Dee, Run DMC e Eric B & Rakim – que você deve ter ouvindo somente nos seriados Um maluco no pedaço e Todo mundo odeia o Chris. Vi nascer o Racionais MCʼs e fui embalado pelas contundentes Pânico na ZS, Voz Ativa e Negro Limitado; vivi a golden era do R&B – na qual Beyoncé Knowles estava engatinhando no apenas mediano Destinyʼs Child. Curti a segunda geração dos Bailes Black de SP (a primeira foi dos lendários bailes e show no Clube Palmeiras, que meus irmãos viveram), com as equipes Chic Show, Black Mad, Zimbabwe e outras, em casas noturnas como Sunset e Clube da Cidade, bem como nas quadras de escolas de samba de São Paulo. Um mar de gente negra jovem, orgulhosa e vivendo de modo intenso sua negritude. Curti e sabia de cor praticamente todos os sucessos do pagode dos anos 90. Aos 16 anos eu já frequentava as madrugadas de São Paulo com meus irmãos e primos.

Li a Autobiografia de Malcolm X e Negras Raízes, de Alex Haley, antes dos 18 anos; li biografias de Martin Luther King Jr., Nelson Mandela e Steven Biko; li o polêmico Rota 66, de Caco Barcellos, na mesma época em que a polícia me abordava praticamente toda semana, não raro com truculência. Vi o massacre do Carandiru e a resposta do Racionais com Diário de um Detento. Minha consciência política independente foi embalada por Athalyba e a Firma. Spike Lee – já tratado por mim numa série de sete artigos nesta Gazeta do Povo, iniciando aqui – e o programa Yo! MTV Raps materializavam o estilo do negro americano – do tênis cano alto, dos bonés na NBA e NFL (raríssimos à época), até nossos cumprimentos, que emulávamos orgulhosamente por aqui.

Fiz curso de DJ no fim dos anos 1980, na saudosa Rock nʼ Soul, com Ricardo Crunfli e Celsinho Double C, época da house music de Technotronic, Black Box, Tragic Error e C&C Music Factory. A “formatura” daquela primeira turma da Rock nʼ Soul foi na icônica TOCO, na ZL, com Crunfli nos cedendo as pick-ups e seu público por algumas viradas. Eu tinha 14 anos! Não tive o ímpeto de me profissionalizar, mas embalei muitas festinhas no meu bairro com duas pick-ups antigas, de madeira, regulando o pitch com os dedos. A Sunset, em Santana (Zona Norte de São Paulo), nessa época era comandada por Ricardo Medrano e Double C, embalando as pistas com os hits que eu comprava em LPs piratas na esquina das caetânicas avenidas Ipiranga e São João. Nessa época, trabalhava como office-boy para meu pai, um advogado autônomo, formado depois de meu nascimento.

Vi o surgimento da revista Raça Brasil, em 1996, e os negros e negras, muito, muito tardiamente, começarem a ser vistos como consumidores em nosso país. Uma vergonha. Se eu não estiver enganado, a Raça foi a primeira revista a exibir modelos negros – homens, mulheres e crianças – vestindo roupas de grife, coisa que festejávamos somente nas propagandas da marca italiana Benetton, ou quando nos chegava às mãos alguma edição da quase octogenária revista Ebony.

Veja, meu jovem, não fui nenhum prócere do movimento negro; para não dizer que não participei de nenhum grupo organizado, fui um dos fundadores, em 2006, do Instituto de Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB), cuja tarefa primordial era oferecer ajuda a refugiados africanos em situação de vulnerabilidade em nosso país. Fiquei no grupo até perceber que muito se falava em editais e dinheiro público, e, diante da baixa efetividade, acabei por perder o interesse. Não sem antes promovermos, na famosa igreja Nossa Senhora Achiropita, um Jantar Africano que ficou para a história. Talvez eu tenha sido um pouco precipitado ao sair, não sei. Não fui amigo dos notáveis do movimento hip hop, tampouco tive vontade de cantar rap. Minha revolta, aguda na juventude, arrefeceu com as responsabilidades que foram chegando: faculdade (a primeira, concluída em 1998 e paga com o suor do meu rosto), trabalho, namoro... A esmagadora maioria de meus amigos nessa época eram pretos como eu, todos correndo atrás do seu, militando na vida, com a vida, pegando os exemplos do passado e procurando continuar um legado de décadas, se não séculos. Éramos movidos por uma ética de superação, herança de nossos pais e predecessores. “Nós por nós”, era o que confidenciávamo-nos; um olhar, um gesto dizia tudo. Pretos em movimento.

Após uma vida muito intensa de curtição e correria, notei minha alma cansada e converti-me ao protestantismo no ano 2000 – logo encontrando a africanidade do cristianismo; casei-me em 2004 e comprei meu primeiro apartamento em 2006. Trabalhava, em média, 12 horas por dia nessa época. Sou grato. Tive tempo de, após trabalhar por dez anos na área de tecnologia, descobrir-me vocacionado para as Humanidades e migrar, no curso de outros dez anos, para a filosofia, passando por outra faculdade e um mestrado. Do ponto de vista financeiro, fiz um downgrade em minha carreira, praticamente consolidada após 20 anos de trabalho. Hoje, após nove anos na nova profissão, não me vejo fazendo outra coisa, mesmo com muitos ainda achando que eu estaria ganhando mais se ficasse na TI.

O identitarismo e o pós-estruturalismo europeus lhe seduziram mais do que as referências negras históricas de seu país

Você pode estar se perguntando agora: “por que ele está me dizendo tudo isso?” Bem, é simples. É para evidenciar-lhe o quanto você nasceu e cresceu num Brasil árido de representatividade negra, de cultura negra, de inquietação negra. Parece que, como num passe de mágica, ao iniciar os anos 2000, tudo se desfez. O rap se retraiu após a pausa do Racionais, em 1999, e a morte do Sabotage, em 2002. O pagode dos anos 1990 simplesmente evaporou com o avanço da pirataria e de outros gêneros populares, como o funk e o sertanejo universitário – sem nada daquela consciência e contundência do rap, que voltou para o underground, sobrevivendo das batalhas de onde surgiram Emicida e Slim Rimografia. Quando você, nativo digital, tomou certa consciência de si, a negritude era um sonho. E, quando chegou a vida adulta, o Twitter – ambiente obtuso e sem perspectiva – se tornou sua arena de militância.

No país dos irmãos José Alves de Mello e Domingos Alves de Mello, de Manuel Maurício Rebouças, de Juliano Moreira, de Luís Anselmo da Fonseca, de Ernesto Carneiro Ribeiro, de Maria Amália Cavalcanti de Albuquerque, Maria Odília Teixeira e tantos outros, você briga na internet dizendo que nunca houve médicos negros no Brasil. Com 100 milhões de pessoas ainda sem saneamento básico no país, você acha por bem – e se esforça muito para tal! – excluir de nosso vocabulário o termo criado mudo por considerá-lo, dentro de seu horizonte de um palmo de seu nariz, racista. Após a queda do Muro de Berlim, você ainda sonha com o comunismo como solução para o problema do negro. Com 2 mil anos de cristianismo no continente africano, você quer falar em ancestralidade adotando religiões afro-brasileiras que nem sequer existem na África.

O fato é que a experiência de sua geração com a negritude é pobre, sem profundidade, sem vivência e sem leitura suficientes para reconhecer as complexidades de nossa existência. O identitarismo e o pós-estruturalismo europeus lhe seduziram mais do que as referências negras históricas de seu país e de toda – para usar um termo um tanto absurdo da militância – diáspora. Você está mais preocupado até com a homofobia do que com o racismo. Os militantes de minha geração que restaram foram praticamente todos cooptados pelo discurso acadêmico ideológico, radical e utópico, regado a muito dinheiro da Fundação Ford e da Open Society, que transformaram seu ativismo em fonte de renda – os famigerados ativistas que lucram com o seu ideal, como disse Millôr Fernandes. Esquecem completamente das palavras de Abdias Nascimento, num artigo de capa para o jornal Quilombo, de 1950, em que anuncia o 1.º Congresso do Negro Brasileiro com as seguintes palavras:

“O 1.º Congresso do Negro pretende dar uma ênfase toda especial aos problemas práticos e atuais da vida da nossa gente. Sempre que se estudou o negro, foi com o propósito evidente ou a intenção mal disfarçada de considerá-lo um ser distante, quase morto, ou já mesmo empalhado como peça de museu. Por isso mesmo o Congresso dará uma importância secundária, por exemplo, às questões etnológicas, e menos palpitantes, interessando menos saber qual seja o índice cefálico do negro, ou se Zumbi suicidou-se realmente ou não, do que indagar quais os meios que poderemos lançar mão para organizar associações e instituições que possam oferecer oportunidades para a gente de cor se elevar na sociedade. Deseja o Congresso encontrar medidas eficientes para aumentar o poder aquisitivo do negro, tomando-o assim um membro efetivo e ativo da comunidade nacional – Guerreiro Ramos vai mais longe, afirmando que essa tomada de posição de elementos da nossa massa de cor nada mais é do que uma resposta do Brasil a um apelo do mundo que reclama a participação das minorias no grande jogo democrático da cultura.”

Por isso, meu caro jovem ativista, quando pensar em deslegitimar meu olhar crítico para as patacoadas histriônicas que você e seus “amigues” fazem por aí, pela internet e pelos DCEs das universidades federais, lembre-se de que minha militância é minha vida, está impressa em 48 anos de existência preta nesse Brasil desigual e cheio de racismo. E baixe a bola.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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