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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Propósito para 2025

Minha carta aos brasileiros (sobretudo os de direita)

Direita racismo preconceito
Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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“O espírito satânico da escravidão tem horror ao negro vestido à europeia; quer o mísero nu ou seminu; envolvido em trapos de algodão de Manchester ou de Hamburgo; para depois tirar disso mesmo argumentos e pretextos para os sofismas de inferioridade de raça e de incapacidade de evoluir para a civilização cristã e igualitária.” (André Rebouças, carta a Antônio Júlio Machado, em 1892)

Em março de 2025 esta coluna fará abençoados sete anos, e quem a acompanha desde o início pode ver, claramente, uma evolução na maneira de expor o meu pensamento em relação ao racismo no Brasil. Passei, penso eu, de uma abordagem mais agressiva, de confronto – necessária para furar o bloqueio de tantos anos de pensamento hegemônico –, para algo que, desde o início, era, de fato, o meu objetivo: de mostrar uma sociedade brasileira com creio que ela seja, traduzida nas palavras do grande Gilberto Freyre no inescapável Casa-grande & Senzala: “igualmente equilibrada, nos seus começos e ainda hoje, sobre antagonismos”. Por isso não se trata de ter uma chave que abra todas as portas, como a ideia de um racismo estrutural, mas de compreender as nuances, as contradições e os equívocos que, na interpretação da formação de nosso país, passam por inúmeras incompreensões e, mormente, manipulações ideológicas.

Ao longo desses anos a percepção de nossa esquizofrenia social foi se tornando cada vez mais clara, uma vez que não é só a esquerda que tem uma visão distorcida de nossa real condição enquanto povo; aqueles que, em tese, têm a mesma perspectiva política que eu igualmente padecem de uma má compreensão de nossas virtudes e defeitos. Estão todos presos dentro de suas bolhas, preocupados única e exclusivamente com suas visões turvas da realidade. Assim, se a esquerda não consegue enxergar nada sem as lentes simplistas da luta de classes, a direita (ou aquele monstro disforme que nasceu do antipetismo da última década) pensa que tudo se resolve com liberdade econômica e moralismo de fancaria. Óbvio que generalizo, mas não muito.

Somente a educação, aliada a estratégias de longo prazo, dará conta de construir um Brasil que seja não só liberto das fantasias socialistas e comunistas, mas também de um liberalismo completamente descolado da realidade brasileira

Num dos primeiros artigos dessa coluna, de 29 de março de 2018, eu disse que o maior desafio da nova direita que surgia naquele momento seria “resistir ao impulso de transformar esse despertar em mera ideologia anticomunista, ou, como disse Russell Kirk, em ʻpolítica da irracionalidade apaixonadaʼ”. E que “o trabalho mais urgente e, ao mesmo tempo, que exige de nós mais paciência, é resgatar nossas tradições histórica e imaginativa, a fim de pavimentar o caminho pelo qual as novas gerações poderão andar, menos sujeitos à sedução ideológica”. E termino o texto dizendo que a política – a política eleitoral – , nesse sentido, era o que menos importava.

Sim, era um alerta sobre o que se desenhava e que, infelizmente, ocorreu. Praticamente toda a natimorta direita foi engolida por um senso de urgência reacionária talvez só visto nos tempos que antecederam 1964, a ponto de um dos maiores responsáveis pelo seu surgimento, Olavo de Carvalho, inacreditável e igualmente rendido dizer, em 20 de fevereiro de 2019, em suas redes sociais: “Todos os que subiram ao poder na esteira do Bolsonaro, aprendam enquanto é tempo: fiquem do lado dele ou serão odiados pelo povo tanto quanto o são os comunopetistas. Não tenham a ilusão de representar ʻa direitaʼ. No Brasil não existe direita nenhuma. Só existe o Bolsonaro”.

Ou seja, o homem que praticamente nos apresentou grandes filósofos clássicos do conservadorismo – pensadores que afirmavam, como Eric Voegelin, que as ideologias são visões distorcidas e simplificadoras da realidade, de modo que “quem quer que tenha uma ideia fixa e queira realizá-la, ou seja, quem quer que interprete a liberdade de expressão e a liberdade de consciência de tal modo que a sociedade deva comportar-se da maneira que ele considera correto, não está qualificado para ser cidadão de uma democracia” (Hitler e os alemães) – também acabou por adotar uma visão messiânica da política, que o mesmo Voegelin chamava de imanentização do eschaton cristão, uma tentativa de fazer cumprir, na Terra, o que só será cumprido no Céu. O que fez Olavo afirmar, em 19 de abril de 2020, em seu Facebook: “Bolsonaro não é só o presidente escolhido e amado pelo povo. É o líder natural e predestinado da REVOLUÇÃO BRASILEIRA. Sua missão é quebrar a espinha do Estamento Burocrático e colocar de uma vez O POVO NO PODER”. Uma sandice completa.

A visão ideológica de Olavo de Carvalho foi um prato cheio não só para aqueles que ignoravam toda uma perspectiva teórica que, até então, conduzia prudencialmente a formação de uma direita brasileira, mas também para os que, sedentos por poder ou por uma alteração imediata de uma realidade política há muito dominada pela esquerda, encontrarem em Bolsonaro sua tábua de salvação. Deu no que deu.

Pois bem, voltando ao ponto inicial, minha visão sempre foi a de que somente a educação, aliada a estratégias de longo prazo, dará conta de construir um Brasil que seja não só liberto das fantasias socialistas e comunistas, mas também de um liberalismo completamente descolado da realidade brasileira, fruto de um tipo de defesa da liberdade individual que nada mais é do que um individualismo sórdido e insensível aos gravíssimos problemas sociais que temos. Tampouco o conservadorismo deveria se reduzir a postulados moralistas pueris.

Porém, infelizmente, foi o que vi na maioria dos casos ao longo de mais de uma década lendo, estudando, pensando, falando e escrevendo sobre temas sociais e políticos brasileiros. Por exemplo: grande parte daqueles que diziam admirar o meu trabalho nada mais faziam do que procurar em minhas ideias uma maneira de confirmar suas próprias posições – muitas vezes preconceituosas. A frase “admirava o seu trabalho” foi uma das que mais ouvi durante esses anos, de pessoas que se decepcionaram ao notarem que eu não era o “negro de direita” subserviente às visões ideológicas simplistas que eles buscavam e que, por um momento, julgaram ter encontrado em mim. Criticar a esquerda não significa negar o racismo e os problemas relacionados à nossa formação social.

O brasileiro foi, esquizofrenicamente, levado a pensar que o racismo não existe, ao mesmo tempo que, em sua imaginação moral, ainda permanece a ideia do negro como naturalmente subalterno

Por isso, minhas críticas à militância negra pós-moderna, não raro, caíram (e ainda caem) na vala comum do “racismo é mimimi”, posição adotada, inclusive, por muitos negros que encontraram em Bolsonaro o caminho para sua ascensão no mundo da política, e também por aqueles que, numa reação às diatribes da esquerda e seu menosprezo por negros que escapam de sua plantation ideológica, decidiram apoiar o “único capaz” de vencê-la. Como, desde 2017, eu já figurava na famigerada Lista da Falsa Direita – criada por apoiadores de Bolsonaro (o leitor não terá dificuldades de encontrá-la com uma busca on-line) para aqueles que, à época, achavam absurda a ideia, sob uma perspectiva conservadora, de “o único capaz” –, não posso ser acusado de ter estado, por um segundo sequer, ao lado dessas pessoas; inclusive as critiquei em mais de uma ocasião (aqui e aqui, por exemplo, em 2019).

Ou seja, estou numa posição que tanto a esquerda quanto a direita, em toda sua intransigência no debate público, rejeitam. Cada espectro está fechado de modo irredutível em sua própria ideologia (no sentido de uma visão propositadamente incompleta da realidade, já tratada por mim aqui, nesta Gazeta do Povo), comprometendo sua capacidade de analisar nuances. Desse modo, se a esquerda domina a percepção dos problemas sociais, a direita, automaticamente, precisa rejeitá-los. Se para um militante identitário toda a dinâmica social está fundamentada no racismo, que dificulta a ascensão social de pessoas negras, para um liberal o racismo não existe e é só se esforçar que tudo dá certo. Se, para um progressista, o preconceito contra população LGBT é implacável, para um conservador o que querem é o fim da heterossexualidade. E assim por diante.

Recentemente tive de explicar a amigos, em mais de uma ocasião, que não podemos substituir a hipótese absurda do racismo estrutural por nada. O que chamo de cultura de subalternização do negro, que se confunde com o racismo (que também existe), é uma das características mais marcantes de nosso imaginário e não desaparecerá sem um processo profundo de conscientização de toda a sociedade. Se defendemos uma sociedade plural e, o quanto possível, livre de preconceitos, não podemos substituir a importunação da militância identitária pelo vídeo do Morgan Freeman; é preciso trabalhar para que isso aconteça e não simplesmente parar de falar no assunto. Há um processo de educação a ser assumido por nós.

Foram quase 350 anos de uma escravidão que ganhou, ao longo do tempo, contornos racistas alimentados por teorias pseudocientíficas de superioridade racial. No século 19 era normal achar que o negro era menos capaz que o branco, ainda que tivéssemos vários negros em posições de destaque na sociedade. Com o fim da escravidão, nada foi feito para que esse imaginário fosse debelado. Muito pelo contrário, a ideia de purificação (branqueamento) da sociedade brasileira e da formação de uma Europa nos trópicos tornou-se projeto de Estado até 1930, com o artigo 138 da Constituição Federal de 16 de julho de 1934 prevendo o estímulo do Estado à “educação eugênica”. Ou seja, o brasileiro foi, esquizofrenicamente, levado a pensar que o racismo não existe, ao mesmo tempo que, em sua imaginação moral – reforçada pela realidade socioeconômica do país –, ainda permanece a ideia do negro como naturalmente subalterno.

Isso é tão verdade que, se lemos Joaquim Nabuco, numa carta de 1908, repreender o amigo José Veríssimo por ter escrito, num artigo laudatório a Machado de Assis, que este era “mulato” – “Machado para mim era branco”, diz Nabuco, pois “quando houvesse sangue estranho, isto em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica” –, atualmente temos tipos como o vereador Marcelo Brito (MDB), de Ribeira do Pombal (BA), que, na sessão de encerramento da Câmara Municipal, no último 19 de dezembro, disse a dois homenageados, filhos de um médico conhecido da cidade, que “seu pai não é negro, seu pai é branco, porque tem boas práticas, boas lições, tem honra”. Óbvio que o vereador não falou por mal, mas essa é exatamente a reprodução inconsciente de um imaginário de menosprezo, de subalternização, de inferioridade racial – ainda que raças não existam. É por essas e outras que não é só parar de falar no assunto, que não somos todos iguais e que as oportunidades não são as mesmas. Na prática, não é só se esforçar, é preciso não parecer negro.

Por isso, meu apelo aos brasileiros – sobretudo aos brasileiros que se dizem de direita – é para que, em 2025, acordemos para os acachapantes problemas sociais que nos assolam, não os deixando à mercê da ideologização oportunista de setores da esquerda por nosso menosprezo deliberado. Sim, o racismo existe, o machismo existe e os preconceitos de toda sorte existem. Se não existem nos níveis apocalípticos como prega a esquerda, existem no mesmo nível de nossa ignorância atávica e de nossa incapacidade de encará-los como se deve. Nossa herança escravista está aí, viva e atuante, sobretudo na imaginação daqueles que viveriam confortavelmente em seu Brasil ideal, não fossem esses marginalizados por séculos a lhes importunar; e um “negro sem mimimi” e só um estúpido a lhes justificar a inércia. A mudança exige atitude, não se acovarde.

E Feliz Ano Novo!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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