“[André Rebouças] sabia que a consciência capaz de resolver todos os problemas da causa [abolicionista] só ele a tinha, que só ele entrava na sarça ardente e via o Eterno face a face [...]. Matemático e astrônomo, botânico e geólogo, industrial e moralista, higienista e filantropo, poeta e filósofo, Rebouças foi talvez dos homens nascidos no Brasil o único universal pelo espírito e pelo coração...” (Joaquim Nabuco)
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Em carta de 25 de novembro de 1892, ao seu grande amigo Visconde de Taunay, o maior brasileiro de todos os tempos, André Rebouças – já tratado por mim aqui, nesta Gazeta do Povo –, falando a respeito dos “monopolizadores de terras”, escreveu: “Os ‘patriotas do Egito’, como os nossos fazendeiros, chamam ‘patriotismo’ ao conjunto de abusos por meio dos quais conseguem escravizar seus compatriotas e monopolizar todo o território nacional.” Isso mostra o caráter não só universal, mas atemporal de seu pensamento. Foi um mártir da malfadada abolição brasileira, convertida, mediante um nefando golpe de Estado, a uma “república de mamelucos” escravocratas.
Em 17 de novembro de 1889, ao saber da deposição de d. Pedro II e da expulsão da família imperial do Brasil, não teve dúvidas: subiu no paquete Alagoas e foi junto. Para Rebouças, o Brasil era um país impossível sem a continuação da monarquia e, consequentemente, do projeto abolicionista, que ditaria os rumos da política nacional, baseando-se, segundo ele defendia, nos princípios da democracia rural – ou seja, do fim do monopólio de terras –, da iniciativa individual, do espírito de associação e da educação.
Rebouças era, além de um workaholic, um homem muito organizado; manteve um preciosíssimo diário por vários anos, onde relata desde os eventos de sua infância até o final de 1891, já no autoexílio. A partir de então as cartas se tornaram seu testemunho e testamento de amor e desencanto pelo Brasil. A editora Chão lançou, no final de 2022, uma das obras mais importante do ano – quiçá de todos os tempos –, as Cartas da África – Registro de correspondência, 1891-1893, que correspondem ao período de quase dois anos, entre fins de 1891 e julho de 1893, que viveu entre Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique, e as cidades sul-africanas de Barberton, Cidade do Cabo e Queenstown, até partir para Funchal, na Ilha da Madeira, onde morreria tragicamente, em 09 de maio de 1898. Sua partida para África ocorreu sob protestos dos amigos, que julgavam uma decisão delicada, pois, além de tudo, havia – e ainda há – muito escravismo no continente africano. Mas, numa carta ao amigo Visconde de Taunay – um de seus principais correspondentes –, de 04 de abril de 1893, em que tenta corrigir a impressão do amigo de que ele estaria colhendo “senão combates estéreis e angustiosas decepções” no continente africano, explica:
“Ora eu vim para a África não para caçar leões, como um lord; mas sim para combater a escravidão e o monopólio territorial. Desembarquei em Port Saïd a 2 de abril de 1892 e logo dei o primeiro combate. Claro está que não narro as vitórias por horror ao quixotismo; mas estou contente comigo mesmo e fico em dúvida se devo morrer na África ou no Brasil. Por outro lado, o divino Ésquilo diz também: – ʻAprendi a detestar a traição; é de todos os crimes o que mais abominoʼ.”
Tal resposta, já perto de ele partir para Funchal, demonstra que, ainda que estivesse feliz consigo, não poderia dizer o mesmo das condições em que se encontravam ele e os lugares nos quais viveu. Primeiro porque, nas cartas anteriores, os combates que trava são, sobretudo, para conseguir se manter com seus recursos, através de transferências feitas – a muito custo – por procuradores bancários. A relação com eles vai se deteriorando, ao que parece, por puro descaso, ao longo do tempo, e ele encontra dificuldade para receber os valores solicitados. As cartas a esses procuradores preenchem grande parte do volume e mostram, em certos momentos, uma irritação que beira ao desespero. André vinha de uma família que, atualmente, poderíamos considerar de classe média estável (não sei se alta seria o termo), tendo o próprio pai como advogado e deputado de renome, e também recursos vindos da família da mãe. No entanto, como diz a professora Hebe Mattos, organizadora do volume e da coleção a ser publicada, em seu posfácio, “a própria atividade de André, como empresário e depois como representante dos capitais ingleses no Rio de Janeiro, lhe rendeu fundos suficientes para bancar duas tias e um irmão doente no Brasil por toda a vida e quase vinte anos morando em hotéis, entre Rio de Janeiro, Londres, Petrópolis, Lisboa, Cannes, Marselha, Lourenço Marques, Barberton, Cape Town e Funchal. Apesar das queixas, das dificuldades de câmbio, da aposentadoria como professor que nunca lhe chegava e do estilo de vida ascético e ʻtolstoicoʼ, viveu, até a morte, ocorrida em Funchal, na Ilha da Madeira, como hóspede em bons hotéis, com base em transferência de recursos próprios depositados em bancos ingleses.” Ou seja, André tinha dinheiro, mas a logística para receber seus dividendos no exterior foi muito complicada.
Outro problema era, de fato, a escravidão e condições cruéis a que os africanos eram submetidos pelos colonizadores. Rebouças, em carta ao amigo Antônio Júlio Machado, diretor da Mala Real Portuguesa, de 27 de maio de 1892, diz que na África Oriental “a escravidão existe real, prática e efetivamente”. E num relato de horror, diz que os colonizadores mantinham os africanos nus a fim de subjugá-los, acrescentando:
“O famigerado escravocrata Manuel Antônio de Souza fuzilava os africanos que encontrava vestidos de calças!! O espírito satânico da escravidão tem horror ao negro vestido à europeia; quer o mísero nu ou seminu; envolvido em trapos de algodão de Manchester ou de Hamburgo; para depois tirar disso mesmo argumentos e pretextos para os sofismas de inferioridade de raça e de incapacidade de evoluir para a civilização cristã e igualitária.”
Reclama das condições de higiene e da falta de alimentos e defende suas ideias liberais – eis uma característica fundamental de seu pensamento, pouquíssimo explorada pelos pesquisadores – de um capitalismo de real iniciativa individual e espírito de associação, e não num dinheirismo elitista, como solução para o grande problema africano. Diz, na mesma carta: “Ensinar o negro africano a ajardinar e se agasalhar: isto é o principal. Ler e escrever virão depois, tanto mais quanto há o perigo de empurrarem-no para a politicagem, a servir de massa bruta nas fraudes eleitorais”, lembrando aqui o pensamento do grande Booker T. Washington. Também denuncia, em carta a Taunay de 12 de dezembro de 1892, os bôeres do Transvaal, repudiando sua máxima de que “para fazer dinheiro é necessário escravidão”; e acrescenta: “mas esse dinheiro é cunhado com o sangue e lágrimas de africanos, no estertor das vítimas e com o anátema de Jeová sobre os filhos dos filhos dos monstruosos algozes ʻaté a terceira e quarta geraçãoʼ.”
Rebouças ainda expõe, em várias cartas, sobretudo a Joaquim Nabuco e Taunay, seus mais queridos amigos, além de sua recusa de voltar ao Brasil e trabalhar para os republicanos golpistas, sua máxima veneração a d. Pedro II – o “imperador-martir, imperador Jesus” –, e sua intenção de, com eles, escrever uma obra em homenagem ao monarca. Diz ele, em missiva do dia 13 de setembro de 1892:
“Nós – Nabuco, Taunay e André Rebouças – fomos, durante os últimos anos de reinado de d. Pedro II, de 1880 a 1889, os propagandistas de todas as ideias nobres, progressistas e liberais nas sociedade de Abolição e Imigração. Não podemos fazer maior benefício à posteridade brasileira do que legar-lhe um livro, que será o ʻEvangelho de d. Pedro IIʼ; evangelho de mor sincero ao Brasil; de trabalho e de abnegação em prol da pátria e da humanidade.”
Vale aqui uma digressão: muito de fala dessa exacerbada fidelidade de André Rebouças à família imperial diante de um sistema escravista que se manteve, debaixo de seus olhos e com a sua anuência, por mais de três séculos. No entanto, é preciso considerar algumas coisas: primeiro que, como já dito em artigo anterior, a família imperial sempre foi, em sua vida privada, abolicionista, e a continuidade da escravidão se dava por uma série de fatores políticos e econômicos alheios à sua vontade. Segundo que a consideração da família imperial para com a família Rebouças era notória e vinha de anos. Seu pai fora um dos conselheiros do imperador e advogado do Conselho de Estado; homem importantíssimo no processo de Independência. E d. Pedro II acompanhou André desde pequeno, chegando a lembrá-lo, já a bordo do Alagoas, de uma chamada oral que lhe fizera no Colégio Kopke, em 1850, quando ele tinha apenas doze anos; e foi um entusiasta de seu trabalho como engenheiro, sendo o principal incentivador de sua atividade, combatida frontalmente pela elite racista da época. Ou seja, a amizade para com o monarca não é sem propósito. Marca o reconhecimento do caráter da família imperial – hoje questionado por pessoas que tergiversam das fontes primárias –, de sua integridade e seu esforço para acabar com a escravidão no país. A amizade ao monarca só fez crescer ao longo do tempo e se intensificou no exílio.
Por fim, o que vemos nas cartas africanas de André Rebouças é, sobretudo, a alma de um dos pensadores mais argutos de nossa história, alguém que, como diz Nabuco, entrou na “sarça ardente e viu o Eterno face a face”. Um homem de ideias progressistas, no sentido de desejar o progresso e a modernidade para o Brasil, mas que, ao mesmo tempo, demonstrava os mais perfeitos exemplos de uma verdadeira disposição conservadora – antirrevolucionária, por assim dizer –, de amor aos mais altos valores éticos expressos por sua mística cristã e pelo exemplo de um Jesus Cristo renaniano – que também era admirado por Luiz Gama; de Homero e os mais célebres gregos – “é preciso ter sempre diante dos olhos um heleno”; de Liev Tolstói, que ele muito admirava, classificando seu modo de vida, no exílio, como tolstoico; de Pitágoras, como um amante da matemática; e, antes de qualquer coisa, de amor incondicional pelo Brasil, um país destruído pelo “elementos mórbidos” do Jesuitismo, do Fazendeirismo e do Militarismo, com diz em carta de 28 de novembro de 1892, ao amigo Rangel da Costa: “O jesuitismo, mentindo e corrompendo o povo com bentinhos e com milagres; o militarismo, matando, fuzilando e bombardeando. No Brasil, além do jesuitismo e do militarismo, houve o domínio da escravidão, com seus hábitos de preguiça , de parasitismo, de medo e de covardia na luta pela vida.” Infelizmente, o Brasil que Rebouças sonhou ainda está longe de existir, mas seu exemplo pode nos inspirar.
O volume ainda conta com uma apresentação, um competente posfácio da organizadora – apesar de endossar a teoria do racismo estrutural, sempre criticada por mim e que, julgo eu, também o seria por André Rebouças –, algumas fotos, notas, bibliografia e cronologia. Obra indispensável para pensarmos o Brasil do passado – e o Brasil do futuro.
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