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Marsha Ambrosius se apresentando em Londres, em dezembro de 2010.
Marsha Ambrosius se apresentando em Londres, em dezembro de 2010.| Foto: Marc Storey/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution 2.0 Generic license

“Eu acredito que Deus criou o hip-hop com o propósito de autoexpressão para os despossuídos. Quando há o bem, Satanás entra e tenta destruir. Muitos dos novos rappers têm a missão de levar o rap de volta à sua forma original, quando o hip-hop era divertido e permitia uma saída para desabafos positivos a uma população que de outra forma seria silenciada. Acredito que o bem prevalecerá.” (Kurtis Blow, rapper veterano, em R&B – The essential guide)

Que o leitor tão dedicado desta coluna me perdoe por, novamente, trazer algo tão pessoal a ela. Mas não pude resistir. O Rhythm and Blues (R&B) contemporâneo é o estilo de música que mais ouço, com o qual tenho mais afinidade e que povoa com mais intensidade a minha memória afetiva. Tenho uma playlist de mais de 13 horas só com sucessos da chamada golden era do Hip Hop/R&B (anos 1990), e é a que mais toca em meu serviço de streaming. Tenho inúmeras lembranças com o gênero; a profusão de artistas solo, duplas e grupos; as batidas pesadas e envolventes, os vocais vigorosos, os timbres e melodias inesquecíveis, para mim são das coisas mais prazerosas de ouvir, uma das melhores expressões artísticas produzidas pela cultura americana.

Mas R&B é uma espécie de gênero “guarda-chuva”, que abriga uma vastidão de estilos, desde os anos 1950, e que foi mudando, se modernizando e se tornando mais comercial ao longo do tempo. Música nascida do negro spiritual, do gospel, do coração da América Negra, e que se tornou tão ou mais popular, por exemplo, que o country. Como diz o historiador musical Bob Gulla, em seu Icons of R&B and Soul: An Encyclopedia of the Artists Who Revolutionized Rhythm:

“ʻRhythm and bluesʼ foi um termo usado para descrever uma série de formas de música popular americana do pós-guerra, como boogie-woogie, blues de 12 compassos e jump blues. Todas essas formas possuíam uma batida de fundo, elemento que mais tarde se tornaria fundamental para o rock and roll. Enquanto o Delta Blues é frequentemente visto como música de resignação, o R&B, apesar do seu nome comum, é na verdade mais antitético a ele. É vista como uma música dançante, erótica, escapista e espiritual. Também expressou esperança, orgulho, desafio, solidariedade e renascimento.”

Minha vivência com o R&B – que é uma música predominantemente romântica – vem da soul music que ouvia desde criança por influência de meus irmãos mais velhos

E o cantor e ator Huey Lewis, no prefácio de R&B – The essential guide, de Gary Graff, Josh Freedom du Lac e Jim McFarlin, diz: “O termo Rhythm & Blues foi supostamente cunhado pelo lendário produtor Jerry Wexler, para descrever um conjunto de trabalhos gravados durante o final dos anos 1950 e 1960, em Memphis, Muscle Shoals e outros estúdios no Sul”. E adiante, após apresentar um pequeno histórico do gênero, complementa – chegando à época que particularmente me interessa:

“A década de 1980 foi a realização econômica dessa criatividade. Há apenas 30 anos, artistas negros estavam confinados às paradas de R&B; mas agora o R&B […] dominava as paradas pop, e artistas como Whitney Houston, Michael Jackson, Lionel Richie, Prince, Anita Baker e Tina Turner se tornaram as maiores estrelas da época. Nos anos 1990 e no novo milênio, o R&B está muito bem, obrigado. A música continua a evoluir com o hip hop, o rap e o R&B alternativo. Mudou. Está diferente. No entanto, algo permanece igual. Talvez porque, tendo, inicialmente, vindo da igreja e da música gospel, o R&B tenha mantido sua inspiração divina. Talvez seja o ritmo: o jazz tem o swing, o R&B tem o groove. Muito provavelmente tem ligação com o compromisso emocional que o cantor deve ter, pois o R&B é um estilo muito voltado para cantores.”

Pessoalmente, tenho muitas preferências no gênero e poderia listar artistas à exaustão. Entretanto, pouparei o paciente leitor dizendo apenas que tenho dois episódios (o primeiro, aqui), de um podcast de áudio que fiz por um tempo com um amigo, no qual falamos sobre vários artistas do gênero e de nossas preferências. Minha vivência com o R&B – que é uma música predominantemente romântica – vem da soul music que ouvia desde criança por influência de meus irmãos mais velhos. Nos anos 1990, com a explosão do rap, o R&B, que vinha da década anterior ainda tocado por bandas (com artistas como Luther Vandross e Stephanie Mills, por exemplo), acompanhou as transformações como um gênero-irmão, também influenciado pela revolucionária MPC (Music Production Center), da Akay, ganhando batidas eletrônicas pesadas, baixos graves e imponentes, e uma variedade melódica impressionante. Lembro-me, por exemplo, do impacto de ouvir Nobody, de Keith Sweat, na danceteria Sunset, comandada à época pela lendária equipe Chic Show, em São Paulo.

Não quero transformar esse artigo num tratado sobre R&B, mas é importante salientar que, ao longo das últimas três décadas, muitos artistas interessantes e importantes do gênero, que continua em alta, surgiram (e continuam surgindo), e, atualmente, sua força parece se renovar a cada lançamento de estrelas como Beyoncé, Rihanna, Bruno Mars, Justin Bieber etc. Mas sou saudosista, ouço bem pouco os artistas atuais e mantenho-me fiel à golden era – ouvindo SWV, Johnny Gill, K-Ci and Jojo, Mary J. Blige, Blackstreet, Aaliyah, Boyz II Men etc. –, concedendo algum tempo para descobrir coisas novas como, por exemplo, H.E.R, PJ Morton, Jazmine Sullivan, October London e SZA.

Em relação às produções, durante os anos 1990 muitos produtores de talento especial surgiram e mudaram a história do gênero. Desde o veterano Quincy Jones, passando por LA Reid, Babyface, Jimmy Jam, Terry Lewis, Jermaine Dupri, Missy Elliot, Teddy Riley, J. Dilla, Timbaland e outros; até Pharrell Williams, Ester Dean, Kanye West e WondaGurl, são profissionais cuja criatividade deu à luz a muitos sucessos no gênero e os fez receber muitos prêmios. Mas há um nome que se destaca especialmente na produção, criando algumas das bases e melodias mais marcantes do universo musical americano; um rapper e um dos cérebros por trás do icônico grupo de rap NWA – cuja cinebiografia, Straight Outta Compton, foi um sucesso de público e crítica –, que construiu uma carreira solo com um álbum revolucionário (The Chronic), produziu alguns dos maiores sucessos e foi responsável por lançar alguns dos artistas mais importantes da história do hip hop, como Snoop Dogg, Eminem e 50 Cent, e ter produzido outras estrelas, como Jay-Z e Tupac Shakur. Estou falando de Andre Romell Young, mais conhecido como Dr. Dre.

Dr. Dre é não só um rapper e produtor de sucesso, reconhecido como um dos criadores do G-funk da Costa Oeste, um subgênero do hip hop de produção mais lenta e pesada, caracterizada pelo uso hábil de sintetizador; mas é conhecido como um verdadeiro expert na engenharia de som e um empresário de sucesso, tendo fundado, em 2008, a Beats Eletronics – daquele que foi, por muito tempo, o headphone preferido dos artistas e atletas da NBA, como nos mostra o excelente documentário The Defiant Ones (2017) – que ele e seu sócio, Jimmy Iovine, venderam, em 2014, por US$ 3 bilhões, à Apple, fazendo de Dre um dos empresários mais ricos do hip hop.

Sou saudosista, ouço bem pouco os artistas atuais e mantenho-me fiel à golden era, concedendo algum tempo para descobrir coisas novas

Em janeiro de 2021, Dre sofreu um aneurisma cerebral e, durante a internação, teve três derrames. Mas esse não foi só um ano de problemas de saúde para ele. Em 12 de dezembro do mesmo ano, Dre publicou uma foto em seu Instagram, num estúdio, em que mostrava uma orquestra ao fundo e a legenda alvoroçou o mundo do hip hop: “Acabei de gravar um álbum com Marsha Ambrosius, Casablanco, e foi demais!! Este é um dos meus melhores trabalhos!!” No dia seguinte, a própria cantora britânica – conhecida por seu duo Floetry, com Natalie “The Floacist” Stewart – publicou uma foto com Dre, com a legenda: “Acabei de gravar um álbum com o Dr. Dre, Casablanco. Foi um tempo maravilhoso!! Este é um dos meus melhores trabalhos!!!” Apesar de ter lançado vários singles nos últimos anos, o último álbum de Marsha tinha sido Nyla, de 2018. Em 2014, no álbum Friends & Lovers, ela gravou uma faixa com Dre, Stronger; e, em 2015, participou de Compton, o último álbum solo de Dre. Por isso, mesmo ela tendo assinado com a Interscope Records, de Dre, em 2007, e saído em 2009 sem gravar nenhum trabalho consistente, imaginava-se que essa parceria um dia rendesse frutos mais maduros. Então, saber que outro trabalho dos dois estava chegando animou a todos, pois certamente haveria de ser excelente.

Dois anos e meio após o anúncio de ambos, nas primeiras horas de 28 de junho de 2024, eu não acreditava no que estava escutando em meus fones. As mãos mágicas de Dr. Dre tinham produzido uma verdadeira obra-prima. Casablanco é uma usina sonora cheia de referências, homenagens, variações rítmicas e melódicas dignas de um gênio. E Marsha Ambrosius, com seus vocais tensionados e inconfundíveis, carregados de melismas precisos e scats ao melhor estilo Ella Fitzgerald; seus agudos próximos ao whistle register (apito vocal) de Minnie Riperton, sua habilidade para o rapping, e, sobretudo, suas letras dignas de uma artista que já compôs para Michael Jackson e Alicia Keys, deu conta do recado com maestria.

A primeira faixa, Smoke, inicia introduzindo uma espécie de compilação dos motivos musicais que permearão todo o álbum para, em seguida, dropar uma batida de G-funk utilizando samples de Yesterday, do trompetista de jazz Clifford Brown. Tunisian Nights, a segunda faixa, mas a primeira a ser produzida, decola e nos leva a uma viagem pelo país norte-africano, com uma orquestração envolvente, uma virada de veudeville, um sample usado por NAS em N.Y. State of Mind, e um discreto uso de Flight Time, de outro trompetista, o multisampleado Donald Byrd. A terceira, One Night Stand, começa com um mescla de música oriental e desemboca no sample de Remind Me, de Patrice Rushen, e vocais que evocam e transformam a letra da clássica All Night Long, de Mary Jane Girls, com as vocalizes da versão de Mary J. Blige. Cloudy With a Chance of…Real, a quarta e uma das melhores do álbum, também possui uma orquestração diferenciada, e utiliza samples da maravilhosa Smilling Billy Suite – Part 2, do jazzístico The Heath Brothers. Aos 2 minutos e 45 segundos, a música dá uma reviravolta estupenda, puxada por um agudíssimo do trompete, para cair num pesado beat que lembra Walk On By, de Burt Bacharach, na clássica gravação de Isaac Hayes. Greedy, a quinta, coproduzida por DJ Khalil & Phonix, inicia com um guitar/voice licking ao estilo de George Benson, e Marsha inicia a letra com uma versão de This Mascarade, do próprio.

Chegamos à metade da jornada com Self Care/Wrong Right, que inicia com uma vocalize modificada de Too High, de Stevie Wonder e uma orquestração de jazz sofisticada, mas que vai mudando para uma batida R&B. Aos 2m36, o beat muda de novo e inclui o único vocal masculino do álbum, de Sly Piper. Em seguida, a belíssima Wet, a sétima, com samples de In The Rain, da soul band The Dramatics; Marsha inicia com o quádruplo “There I Go”, do standard Moody’s Mood For Love, cuja gravação célebre de Quincy Jones, em seu Qʼs Jook Joint, é uma das coisas mais lindas já produzidas. Thrill Her, a oitava faixa, inicia com o piano de As Long as Iʼve Got You, do The Charmels (imortalizado pelo Wu-Tang Clan), e, na sequência, recria o inconfundível piano de In A Sentimental Mood, dos titãs Duke Ellington e John Coltrane, e Marsha inclui em seus vocais uma versão modificada da frase “Annie, are you okay?”, de Smooth Criminal, de Michael Jackson, como homenagem ao Rei do Pop. O piano de The Greatest, a nona, é simplesmente hipnotizante; e a orquestração, mais uma vez, se destaca. A penúltima música do álbum é a extraordinária Best I Could Find, que não poderia ficar melhor ao “convidar” Stevie Wonder e sua Visions, recriada por Dre. Essa faixa finaliza com um solo de trompete seguido pelos vocalizes agudíssimos de Marsha Ambrosius.

A derradeira, Music Of My Mind, mostra a que veio o álbum, fazendo uma homenagem a vários artistas do gênero, não só com menções vocais e trechos instrumentais, mas nomeando uma série deles. Até – pasme o leitor – Garota de Ipanema é citada num trecho vocal. Um verdadeiro deleite para os amantes da arte. Que álbum espetacular! Como disse Marsha Ambrosius em entrevista à Billboard, “cada faixa é como um ovo de Páscoa com joias dentro”.

As mãos mágicas de Dr. Dre tinham produzido uma verdadeira obra-prima. Casablanco é uma usina sonora cheia de referências, homenagens, variações rítmicas e melódicas dignas de um gênio

Em matéria da RevoltTV, Marsha diz que ela e Dre estavam pensando no álbum no fim de 2020, quando, no início do ano seguinte, a notícia do aneurisma de Dre fez o coração dela parar. Ela complementa: “Recebi uma ligação do Dre e, em fevereiro de 2021, estava trabalhando com ele. Então, a reabilitação dele, sua recuperação e retorno ao desejo de fazer música para fazer as pessoas se sentirem bem, foi do que eu precisava. No fim das contas, foi do que ele precisava. E este álbum foi, de certa forma, nosso vínculo traumático”. O álbum foi gravado em miraculosas duas semanas. Sobre o título, ela diz à Billboard:

“O título veio da primeira música criada para o álbum, ʻTunisian Nightsʼ. Foi nesse momento que soubemos o que o álbum seria. Eu disse ao Dr. Dre que só queria produzir e escrever. Achei que já tinha feito meus álbuns, já tinha feito toda a coisa de ser artista. Mas, uma vez que conseguimos essa coisa muito específica que íamos fazer, parecia o filme Casablanca. Estava dando uma sensação de Hollywood vintage. Também parecia um lugar sereno, um destino para o qual tínhamos sido transportados através dessa música. Então Dre sugeriu que, em vez de Casablanca, que tal chamarmos de Casablanco para ser um pouco mais gângster. E isso simplesmente fez um sentido lindo, louco e caótico quando realmente nos aprofundamos no álbum.”

Sobre o momento marcante da primeira música finalizada, ela diz: “Foi como se houvesse uma intervenção divina permitindo que cada pessoa na sala fizesse o que deveria fazer para torná-la o que é. Senti isso várias vezes ao longo da minha carreira. No entanto, é raro. Eu amo criar música. Amo entrar no estúdio. Amo escrever uma música ou melodia. Mas quando elas são ótimas e atemporais, é um sentimento que você mal consegue descrever. Deus diz: ʻIsso é seu. Faça o que quiserʼ. E você realmente não tem escolha. Você só tem de seguir suas ordens”.

E posso confirmar: em tempos em que se discute se quem ouve hip hop é inteligente ou não, vocês realmente fizeram algo não só genial, mas divino.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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