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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Filme

“Close”: amizade e masculinidade em perspectiva avassaladora

Cena de "Close", filme do belga Lukas Dhont. (Foto: Divulgação)

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“E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como à sua própria alma. E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma.” (1 Samuel 18,1-3)

“Parece que o amor é uma emoção e a amizade é uma disposição do caráter; de fato, pode-se sentir amor também por coisas inanimadas, mas o amor recíproco pressupõe escolha e a escolha tem origem numa disposição do caráter; além disto, desejamos bem às pessoas que amamos pelo que elas são, e não em decorrência de um sentimento, mas de uma disposição do caráter.” (Aristóteles, Ética a Nicômaco)

Uma de minhas maiores preocupações enquanto pai e professor é o tema da amizade. Primeiro porque sou e sempre fui uma pessoa, se não de muitos amigos, que valoriza – e muito! – a amizade. Inclusive já falei disso aqui (e aqui), nesta Gazeta do Povo. Segundo porque, sabendo que nossa época é muito propícia à superficialidade e a uma pseudoproximidade por conta das redes sociais, a solidão e, consequentemente, a depressão têm sido um drama, sobretudo entre adolescentes.

Uma vida sem bons amigos, sem ter com quem compartilhar nossas alegrias e nossas dores, mas, principalmente, sem ter a quem fazer bem, é uma vida menos plena, quando não triste

Aprendi muito sobre amizade com Aristóteles – cuja obra que trata do tema, citada em epígrafe, é um clássico absoluto – e C.S. Lewis. Esses autores me fizeram compreender aquilo que, intuitivamente, sempre soube – nas palavras do mestre de Estagira: a amizade é “extremamente necessária à vida”. Uma vida sem bons amigos, sem ter com quem compartilhar nossas alegrias e nossas dores, mas, principalmente, sem ter a quem fazer bem, é uma vida menos plena, quando não triste. Como diz C.S. Lewis em Os quatro amores, “ninguém conhece outra pessoa tão bem quanto o seu ʻcolegaʼ”, e a amizade, ainda segundo Lewis, se dá naquele momento em que duas pessoas se encontram e dizem uma à outra: “O quê? Você também? Eu pensava que era o único!” E complementa:

“Quando, seja com imensas dificuldades e com conversa mal articulada, seja com aquilo que poderia parecer a nós uma velocidade impressionante ou elíptica de comunicação, eles compartilham sua visão – é, então, que a Amizade nasce. E, instantaneamente, eles estarão juntos numa imensa solidão. Os amantes buscam privacidade. Os Amigos encontram essa solidão ao seu redor, essa barreira entre eles e o grupo, quer queiram, quer não.”

Nesse sentido, o novo filme do jovem cineasta belga Lukas Dhont, Close – disponível na plataforma Mubi –, é uma das reflexões mais profundas sobre amizade que já vi em minha vida. Uma história sensível e catártica sobre essa intimidade – e sua ruptura – que só os verdadeiros amigos conhecem. Mas não só: Close também levanta uma discussão importantíssima para tempos em que, cada vez mais, a masculinidade tem sido posta à prova.

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(Contém spoilers.)

Léo e Rémi – interpretados de maneira estupenda pelos estreantes Eden Dambrine e Gustav de Waele, respectivamente – são amigos inseparáveis, de 13 anos de idade, às portas do ano letivo escolar. Os dois moram um pouco distantes um do outro, pois Léo é de uma família de floricultores, gente do campo, de modo que é de costume dele dormir na casa de Rémi quando não está ajudando seus pais na lavoura; os dois têm tamanha intimidade que até dormem na mesma cama. Há, nesse sentido, logo de início, uma sugestão muito, muito sutil de homoafetividade; entretanto, Dhont foi extremamente prudente em estabelecer os limites dessa amizade, não deixando transparecer nada que não fosse um afeto inocente entre dois meninos, o que não é incomum nessa idade.

A ideia do filme veio a ele após ler um livro que ganhou de um amigo: Deep Secrets: Boys’ Friendships and the Crisis of Connection, resultado de uma pesquisa realizada por Niobe Way, professora de Psicologia Aplicada da Universidade de Nova York, com 150 meninos, por cinco anos. Conforme diz Dhont, numa entrevista à revista Vanity Fair:

“Quando ela os entrevistou aos 13 anos e eles falaram sobre seus amigos, o modo como se expressaram foi como se fossem histórias de amor. Eles se atrevem a usar a palavra ʻamorʼ de um para com o outro da maneira mais terna e bonita. E então, enquanto ela os acompanha, você lê como esses meninos, à medida que envelhecem e as expectativas de masculinidade se tornam mais fortes, eles se desconectam completamente dessa linguagem. Sinto que vivemos numa sociedade onde masculinidade e intimidade são conceitos muito difíceis de unir. Sinto que dizemos aos homens que o único lugar no qual eles podem encontrar intimidade neste mundo é através do sexo e que expressar amor e vulnerabilidade para outro homem parece algo incrivelmente complexo. Muitas vezes temos imagens de comportamento tóxico – de violência, de guerra – representadas quando se trata de masculinidade, mas raramente vemos uma amizade íntima e bonita em que dois meninos se deitam juntos na cama e só querem estar tão próximos quanto possivelmente podem.”

A masculinidade foi forjada, a partir de um determinado momento, a não exprimir sensibilidade, e o homem a ser o machão, o viril. Mas uma masculinidade enviesada pode ser causadora de males terríveis

Ou seja, o que vemos são dois meninos que são amigos, íntimos, e que não têm vergonha alguma de manifestar essa intimidade, que é, inclusive, celebrada pelos pais como algo puro e fraterno. Dhont diz ainda: “Sempre disse aos atores de Close: ʻNão me importo com a sexualidade desses personagens, se Léo e Rémi são gays ou nãoʼ. Quando leio os testemunhos desses meninos, alguns deles podem ser queer, outros não. Mas eles compartilham essa experiência de estarem desconectados uns dos outros pelos códigos de comportamento ligados ao corpo em que nasceram. Para mim, trata-se de nos fazer sentir que matamos a bela amizade entre meninos desde muito jovens”.

E é exatamente o que ocorre com Léo e Rémi quando chegam à escola. Os novos colegas de sala começam a estranhar a proximidade entre os dois, e uma menina chega a sugerir que eles são um casal, ao que Léo responde: “Ficamos de mãos dadas, nos acariciamos? Não! [...] Ficamos perto porque somos melhores amigos”. Mas a explicação não convence, uma vez que as chamadas exigências da masculinidade não admitem que meninos sejam íntimos dessa maneira. A consequência é que a desconfiança dos demais passa a incomodar Léo, que, instintivamente, tenta se afastar de Rémi. Quer se enturmar com um grupo, entra para o time de hóquei no gelo, tudo isso na tentativa de se desvincular de de seu amigo, que logo percebe. Essa tentativa de afastamento será trágica para os dois.

A amizade entre homens é tema de debates e desconfianças há séculos – se não milênios. A masculinidade foi forjada, a partir de um determinado momento – não creio que seja algo que pertença à antiguidade, pelos exemplos que citarei abaixo –, a não exprimir sensibilidade, e o homem a ser o machão, o viril. A citação bíblica em epígrafe, sobre a amizade entre Davi e Jônatas, é fruto de debates hermenêuticos acalorados até hoje. Seria possível dizer de um homem que amou a outro homem “como à sua própria alma”? Mesmo a ideia do “discípulo a quem Jesus amava” (João 13,23), João, que se reclina sobre o peito do mestre, é questionada. Ou o próprio Jesus e sua sensibilidade exacerbada. Também a amizade entre Aquiles e Pátroclo, na Ilíada, sofre o mesmo tipo de especulação. Eram só amigos ou eram amantes? Como o mítico (e másculo) soldado Aquiles senta-se à frente de outro homem a cantar canções numa lira (Canto IX)? Ou que chore sua morte em desespero (Canto XVIII)? Ou, ainda, que, após a morte, seus ossos sejam colocados na mesma urna do amigo (Odisseia, Canto XXIV)?

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De minha parte, penso que nunca tive esse tipo de preocupação, pois meu pai era um homem bastante afetuoso, gostava de abraçar, beijar, e dizia que amava com muita naturalidade. Sempre tive amigos próximos, e tive amigos de infância aos quais era “grudado”; e se nossa intimidade não foi, digamos, literária, foi cercada de afeto, companheirismo e, por vezes, aquele ciúme próprio da imaturidade – como o que ocorre entre Rémi e Léo. Mas nem todos têm a mesma sorte, sobretudo nos tempos atuais. O mundo contemporâneo é caracterizado pelo individualismo e, consequentemente, pelo isolamento. As amizades, em grande medida, são superficiais como superficial é a própria existência – que a pandemia acentuou. O aumento de suicídio entre jovens tem chamado a atenção de pesquisadores, e entre as causas está o isolamento ou a falta de “sentir-se parte de algo”. E, vale lembrar, os jovens LGBT (permitam-me a abreviação da sigla, que, ideologicamente, só aumenta) tendem a sofrer mais com esse isolamento, obviamente pelo preconceito e pela não aceitação. Precisamos não só falar sobre isso, mas combater aquilo que se tem chamado de masculinidade tóxica – que existe, sim, e é causadora não só desses problemas, mas também da inaceitável, e cada vez maior, violência contra as mulheres.

O que o filme de Lukas Dhont faz de maneira magistral – e absolutamente brutal – é levantar esse importantíssimo debate e mostrar como uma masculinidade enviesada pode ser causadora de males terríveis, e como o isolamento provocado, muitas vezes, pela dificuldade de contemporizar as fases de transição de nossa vida, pode ser desastroso. E ele o faz, se me permite o leitor progressista, de maneira conservadora, sem transformar o seu filme num panfleto LGBT, apesar de ele próprio ser homossexual. O filme é sensível e, ao mesmo tempo, desconcertante; a fotografia, belíssima, contrasta com o drama profundo que se desenrola. E não macula o masculino, não fere o estatuto cultural do homem como portador de força. Nesse sentido, não é revolucionário, é denso e provocador.

E, uma vez que ao conservadorismo – ou ao que se imagina que seja o conservadorismo – tem sido atribuída a causa do aumento da violência contra a mulher e do preconceito contra a comunidade LGBT – em parte por conta do abandono conservador desses dramas sociais por tê-los colocado, todos, no balaio das ideologias (já falei sobre isso em relação ao racismo) –, é preciso que tragamos essas questões, que fazem parte da vida e das contradições humanas, para serem debatidas no nosso campo, sob uma perspectiva conservadora saudável, não ideológica e não moralista, a fim de darmos uma resposta a elas. E Close é um filme perfeito para isso.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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