O homem da parte mais baixa da escala social existente é lisonjeado ao lhe ser dito que ele é mais virtuoso, em outras palavras, detentor mais completo da bondade espontânea do estado de natureza do que o homem que está no topo dessa escala. Todavia, por mais preparado que esteja para acreditar que é superior em sentimento, ele não gosta, afinal de contas, de se considerar incapaz de pensar. A multidão, diz Aristóteles, não pode fazer distinções. (Irving Babbitt, Democracia e liderança)
Mais uma vez o reacionarismo mais tacanho e radical toma conta do debate público em nome do conservadorismo, em nome da “tradição”. Mais uma vez as redes sociais se tornaram palco daquele já famigerado e cansativo “nós contra eles”, no qual tudo o que importa é demonizar o outro. Não há o mínimo esforço – nem mesmo daqueles cujo lema é fazer as coisas “sem viés ideológico” – para compreender e refletir a respeito da natureza dos conflitos ou mesmo de atingir o seu cerne das questões, a fim de dissipar o erro; o que importa é neutralizar o “lacre”, reagir intempestivamente contra, sei lá, o avanço do globalismo, o politicamente correto, o delírio identitário... Mesmo que, para isso, seja preciso flertar com a intolerância, com a discriminação irrefletida e com a frouxidão moral. No entanto, podemos tentar fazer, como diz o ditado, desse limão uma limonada.
Dessa vez a polêmica foi em torno da escolha da jovem atriz e cantora Halle Bailey para representar a sereia Ariel na nova produção de A Pequena Sereia, da Disney. O motivo: a garota é negra, e a Ariel “original” é ruiva. Como se isso fizesse alguma diferença – e, como veremos, não faz. Alguém argumentou que, no próprio conto original, de Hans Christian Andersen, ele se refere à sereiazinha como a mais bela, cuja pele era “clara e delicada como uma pétala de rosa”. E é verdade, a palavra, no original (dinamarquês), é klar. No entanto, as traduções podem variar. Eugenio Amado, por exemplo, em sua tradução para as Obras Completas de Andersen, editadas pela Villa Rica, omite o “clara” e utiliza somente o “fina como uma pétala de rosa”. Não que eu concorde com a omissão; mas isso muda o contexto? Absolutamente não.
Andersen – sobre o qual já escrevi aqui, nesta Gazeta do Povo –, foi um gênio da imaginação moral. Suas histórias, por vezes aterradoras – pelo tanto de sofrimento que faz alguns de seus personagens passarem –, demonstram que o sofrimento, a perseverança e a fé são redentores. Histórias como A pequena vendedora de fósforos, O patinho feio, O soldadinho de chumbo e tantas outras são exemplos dessa perspectiva moral (cristã, por assim dizer) das histórias de Andersen. E não é diferente com A pequena sereia. A saga da sereiazinha e de seu amor pelo príncipe humano imprime claramente a ideia de Andersen de que, como diz Maria Tatar – especialista em literatura infantil da Universidade de Harvard –, “o sofrimento é a insígnia da superioridade espiritual, e seus protagonistas tiranizados emergem triunfantes por sofrerem humilhações aparentemente infindáveis”. A negação de sua identidade, a mudez, a dor lancinante a cada passo dos pés que substituíram sua bela cauda; tudo isso, diante do amor não correspondido pelo príncipe (pelo menos não do modo que ela desejava), nos faz sofrer com a sereia até que ocorre a “virada jubilosa” – como diz Tolkien –, ao se negar a assassiná-lo e receber, então, a possibilidade de obter a imortalidade.
Agora, diga-me, estimado leitor: que diferença faz se a sereia fosse negra? Qual o prejuízo para o conteúdo da história o fato da “mudinha rejeitada” ou “enjeitadinha”, conforme a tradução, não ser, como seu autor, dinamarquesa – supondo que sereias tenham nacionalidade? Nenhum. Porque a natureza dos contos de fada não é material, mas moral; “os contos de fada”, como diz Chesterton em sua obra Contos de fadas e outros ensaios (Resistência Cultural), “são por natureza não apenas morais no sentido de serem inocentes, mas morais no sentido de serem didáticos, morais no sentido de moralizarem”. Pois a felicidade, nos contos de fada, é sempre condicional, sempre exige sacrifícios. “Essa grande ideia, pois, é a espinha dorsal de todo folclore – a ideia de que toda felicidade depende de uma pequena proibição; de que toda alegria positiva depende de uma negativa”. Nesse sentido, a origem étnica da sereia não faz diferença alguma. E mais: na verdade, o desejo profundo da Pequena Sereia é muito superior, e está expresso numa conversa que tem com a sua avó: “Por que também não temos uma alma imortal? […] Eu trocaria meus trezentos anos de vida por um só dia como ser humano, desde que isso me permitisse o acesso à eternidade dos céus”. Assim como ocorre com muitos outros contos de Andersen, há um profundo senso de transcendência na história.
A polêmica gerada em torno da atriz negra para representar Ariel, acusando a suposta “lacração” para dar voz à sanha por representatividade dos movimentos identitários, é no mínimo ridícula
Mas o leitor familiarizado com a animação da Disney, lançada em 1989, deve estar pensando: “mas não tem isso na história 'original'”. Pois é, a história contada pela Disney não é a original. Na animação, a sereia se casa com o príncipe; não há qualquer menção à imortalidade ou mesmo à sua avó. Trata-se de uma adaptação do estúdio americano; adaptação essa que, provavelmente, o autor nem aprovaria. Portanto, os puristas de última hora deveriam atentar para isso, não? A história original, repleta da espiritualidade cristã de Andersen, foi substituída pelo materialismo romântico da Disney.
Ou seja, a polêmica gerada em torno da atriz negra para representar Ariel (nome também inventado pela Disney), acusando a suposta “lacração” para dar voz à sanha por representatividade dos movimentos identitários, é no mínimo ridícula. Primeiro, porque estão defendendo uma história que não é original como se fosse; segundo, porque, mesmo para a adaptação da Disney, a cor da sereia não tem absolutamente nenhum efeito sobre o conteúdo. Ainda que transformassem Ariel numa moradora de favela – como Vinícius de Morais fez com Orfeu e Eurídice em sua peça Orfeu da Conceição –, mantidos o roteiro da história original, as adaptações funcionam como a “reatualização”, para usar um termo de Mircea Eliade, de uma situação arquetípica – mítica, por assim dizer. De acordo com o mitólogo romeno, ao longo da história houve um processo de desmitificação, retirando o conteúdo religioso dos mitos e os transformando em lendas ou histórias infantis. O conto maravilhoso, de acordo com Michèle Simonsen, especialista em literatura popular da Universidade de Copenhague, “de estrutura complexa, comporta elementos sobrenaturais, originalmente não cristãos (encantadores, metamorfoses, objetos mágicos etc.)” e tende, “às vezes, a incorporar todos os contos populares”, a saber: mitos, lendas, sagas, contos e anedotas. Eis o contexto de Hans Christian Andersen, eis a natureza de seus contos.
Mas não, para nossos “cruzados da disneylândia” é fundamental preservar a história como está “gravada no imaginário das crianças” – essa foi uma das justificativas que li – “pois poderia confundi-las”. Se a sereia da Disney é ruiva, deve permanecer ruiva, pois é nórdica. Certamente nossos guerreiros da batalha contra o politicamente correto nunca leram Chesterton, do contrário saberiam que o mais importante é o espírito das leis que há nos contos de fada – não seu aspecto meramente material –, que nos imprime, segundo ele, “um certo modo de olhar para a vida”. Por exemplo: “Há a lição de Cinderela, que é a mesma do Magnificat – exaltavit humiles. Há a grande lição de A Bela e a Fera, dizendo que uma criatura precisa ser amada antes de ser amável. Há a terrível alegoria de A Bela Adormecida, dizendo como a criatura humana foi abençoada com todos os seus dons recebidos ao nascer, e, no entanto, amaldiçoada com a morte; e como a morte pode ser suavizada em sono”. Que diferença faz a cor da pele da Cinderela ou das Belas? De novo: nenhuma. Uma criança que, diante de um conto de fadas, se importa mais com a cor do personagem do que com a história em si e sua moral, está sendo mal conduzida pelo caminho da Terra dos Elfos.
Houve quem fizesse pior. Quem dissesse que, pelos meus argumentos, o Saci de Monteiro Lobato poderia ser branco. Mal sabe o candidato a polemista que a concepção do Saci Pererê é exatamente a resposta nacional de Lobato à influência estrangeira em nossa cultura. Disse ele, num ensaio crítico sobre a concepção do Saci – em sua obra Ideias de Jeca Tatu:
Um caso: possuímos um satirozinho de grande pitoresco que ainda não penetrou nos domínios da arte, embora já se cristalizasse na alma popular, estilizado ao sabor da imaginativa sertaneja: o saci. No entanto, para animar os gramados do Jardim da Luz, importamos nibelungos alemães, sacis do Reno!
A cor da sereia não tem absolutamente nenhum efeito sobre o conteúdo
Ou seja, não é que o Saci pode ser branco; mas o fato é que ele é um sátiro preto! É um espírito zombeteiro (minha homenagem ao Chaves), um arquétipo de travessura – tais como Loki, da mitologia nórdica, e Exu, da mitologia iorubá. A pesquisa para o Saci, Lobato a fez por meio de inquérito popular, com pessoas contando causos nos quais o satirozinho aparecia. O resultado dessa coleta foi compilada no livro O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito, publicado por Lobato anonimamente.
E para não dizerem que estou sendo condescendente ou mesmo implicando com a reação natural dos fãs, tenho um exemplo em contraponto. Em 2012 fui assistir à montagem de uma ópera que amo, O crepúsculo dos deuses, da tetralogia O anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Mas o que vi foi a completa descaracterização, não só da história, mas dos personagens, do figurino e cenário. Sob a justificativa pública da transgressão pura e simples, o diretor de arte, André Heller-Lopes, disse: “Fazer como Wagner fez não me interessa. Quero encenar uma ópera antropofágica, tropicalista, que comunique com o público daqui”. E montou um Anel dos oprimidos. Podes ler um artigo que escrevi à época, aqui.
Percebe, esclarecido leitor, que com um pouco de esforço é possível escapar às discussões inúteis para nos atermos ao que realmente importa? No entanto, o que fazem nossos ilustres conservadores de redes sociais? Preferem reagir a tudo quanto é armadilha pregada pela mídia para chamar a atenção, causando uma batalha quixotesca que transforma o conservadorismo numa caricatura grotesca. Generalizo? Evidentemente. E que vista a carapuça quem quiser.
Por isso, tenho insistido em chamá-los de reacionários, pois o indivíduo de temperamento e disposição conservadoras, de acordo com Michael Oakeshott em Conservadorismo, “é precavido, e está sempre disposto a indicar se concorda ou discorda, nunca em termos absolutos, mas em graus. Seu paradigma o obriga a enxergar dada situação de mudança nos termos da propensão para disruptar a familiaridade dos aspectos de seu mundo”. E Samuel Huntington, citado por João Pereira Coutinho em seu As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários, diz que “à medida que o tempo passa, o ideal do reacionário distancia-se cada vez mais de qualquer sociedade real que tenha existido no passado. O passado é romantizado e, no fim, o reacionário acaba por defender o regresso a uma Idade de Ouro idealizada que nunca de fato existiu. Ele torna-se indistinguível de outros radicais, e normalmente exibe todas as características singulares da psicologia radical”.
Se você, meu prezado e fiel leitor, deseja distinguir-se dessa malta cada vez mais barulhenta e menos racional, faça como eu tenho tentado, todos os dias, fazer: seja prudente.
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