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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Conservadorismo de gabinete

Martin Luther King (ao centro) durante a marcha pelos direitos civis em Washington, em 1963. (Foto: Rowland Scherman/National Archives at College Park/Domínio público)

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Quando desperto, custo adormecer. Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz, que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salário mínimo, aí eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei Luiz visse os seus filhos comendo gêneros deteriorados, comidos pelos corvo e ratos, havia de revoltar-se, porque revolta surge das agruras. (Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo)

O caríssimo leitor deve ler este artigo como um complemento a outro que escrevi, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, sobre a necessidade de um conservadorismo que não passe ao largo de questões sociais sensíveis. Não que conservadores devam aderir a protestos e ideologias radicais, mas que reconheçam que, dentro de uma perspectiva da imperfeição humana, devemos adequar as ideias à realidade e não o contrário. Em seu último discurso, em 3 de abril de 1968 – um dia antes de sua morte, portanto –, Dr. Martin Luther King Jr. foi categórico: “Não nos engajamos em nenhum protesto negativo nem nos envolvemos em discussões negativas. Dizemos que estamos determinados a ser homens. Estamos determinados a ser um povo. Dizemos (…) que somos filhos de Deus e que, se somos filhos de Deus, não precisamos viver como nos forçam a viver”. E dá o contexto que me servirá de guia nesta breve reflexão:

Lembro de Birmingham, Alabama, quando estávamos naquela luta fabulosa e saíamos às centenas da igreja batista da Rua 16, dia após dia. E Bull Connor soltava sobre nós os seus cachorros, que não se aproximavam. Seguíamos cantando diante dos cachorros: “Ninguém me fará recuar”. Bull Connor dizia então: “Usem os jatos d’água”. E, como lhes disse outra noite, Bull Connor não conhecia história. Ele conhecia uma física que de algum modo não se harmonizava com a metafísica que conhecíamos. Pois havia um fogo que nenhuma água poderia apagar. E parávamos diante dos jatos poderosos, pois conhecíamos a água. Se fôssemos batistas, diríamos que fomos imersos. Se fôssemos metodistas, diríamos que fomos aspergidos – mas conhecíamos a água. Ela não nos deteria. Seguíamos diante dos cachorros e diante dos jatos d’água, seguíamos cantando “Repousa sobre mim a liberdade”. E então nos jogavam em camburões e às vezes nos amontoavam como sardinhas na lata. Jogavam-nos ali dentro, e o velho Bull dizia: “Levem todos daqui”, e eles levavam; e seguíamos no camburão cantando “Nós triunfaremos”. De vez em quando, éramos presos e víamos os carcereiros olhando pelas janelas e se comovendo com nossas preces, se comovendo com as nossas palavras e as nossas canções. E havia ali um poder que Bull Connor não podia liquidar; e, assim, terminamos por transformar o “touro” num novilho e vencemos nossa luta em Birmingham.

Martin Luther King não falava de direitos abstratos nem de situações imaginárias: o problema era desgraçadamente real

Dr. King, um homem de temperamento conservador, não estava divagando; descrevia uma situação absurdamente real, e advertia seu país sobre a necessidade de uma “revolução de valores”, e conclamava o povo, em plena Guerra do Vietnã, num sermão proferido na Igreja Riverside, em 4 de abril de 1967, “a uma crença positiva na democracia, percebendo que a nossa melhor defesa contra o comunismo é assumir uma postura ofensiva em nome da justiça. Com uma ação positiva, buscaremos acabar com as condições de pobreza, insegurança e injustiça que são o solo fértil no qual a semente do comunismo germina e floresce”.

Buscando aplacar os ventos revolucionários que sopravam do Oriente, King liderava um dos maiores movimentos pelos direitos civis da história da humanidade, que fazia frente a quase 100 anos de leis racistas, que provocaram não só a separação entre negros e brancos em vários estados do Sul dos EUA, mas também uma normalização da violência contra pessoas negras com rotineiros linchamentos e assassinatos cruéis por enforcamento – o estranho fruto pendurado nos choupos de Billie Holiday –, e levaram os negros americanos, logo após a abolição da escravidão – por uma guerra que vitimou quase 1 milhão de pessoas –, a uma situação de desumanização desesperadora. King não falava de direitos abstratos nem de situações imaginárias: o problema era desgraçadamente real.

A Lei dos Direitos Civis (Civil Rights Act), assinada em julho de 1964, pôs fim às restrições legais e à crueldade estatal sistêmica. Porém, as feridas expostas da nação mais próspera do mundo, ao que tudo indica, estão longe de sarar, pois uma série de descaminhos ideológicos (fatos que busco analisar, em parte, aqui) levou os negros americanos a flertarem com um ideal de igualdade que vai de encontro ao princípio de liberdade adotado desde a fundação do país, dando ensejo às narrativas por reparação, de cunho marxista, e, consequentemente, a uma fidelidade canina ao Partido Democrata, que investe pesadamente no ressentimento como arma política – Dinesh D’Souza denuncia essa prática em seu filme Hillary's America – A história secreta do Partido Democrata –, levando a maioria da população negra ao que costumo chamar de escravidão ideológica.

As enormes controvérsias dessas narrativas são amplamente criticadas, inclusive por intelectuais negros como Thomas Sowell e Walter Williams, e, apesar de aparentemente não surtirem efeito, têm feito muitos acordarem para a realidade dos fatos. Entretanto, como eu disse, as feridas ainda abertas facilitam o trabalho de ideólogos e políticos inescrupulosos. Movimentos como o Black Lives Matter – que já analisei com certa profundidade aqui – têm conseguido, a cada investida impulsionada por eventos de violência policial perpetrados, supostamente, por motivações “raciais”, avançar com sua agenda que visa a, dentre outras coisas – como diz em seu site –, romper com estruturas ocidentais de organização social. Os protestos que se seguiram após o brutal assassinato de George Floyd têm colocado os EUA em estado de alerta por causa da violência com que grupos organizados como o Antifa agem, causando mais violência e até mortes; como eu disse em artigo recente, os protestos estão cheios de corações vazios, pois “é absolutamente necessário que, na legítima defesa das pautas sociais e no clamor por justiça, nossas mãos e consciências permanecem limpas, honrando nosso compromisso com o próximo, com as leis e com a sociedade em geral”.

Mas, como sói acontecer, tais eventos – que ensejam uma enorme carga de envolvimento emocional – têm recebido o apoio público de um número considerável de artistas e atletas que, hipocritamente, parecem sonhar com essa América idílica dos reformadores sociais. Ou seja, infelizmente a “revolução de valores” de King foi substituída, na cabeça de muitos, pela revolução socialista de Marx e seus apaniguados. Some-se a isso a pandemia do novo coronavírus, a inextinguível birra criada pelos democratas com a eleição de Donald Trump, e a aproximação das novas eleições, e o radicalismo encontra espaço para se manifestar nas mais variadas formas.

Diante do exposto, reitero que devemos, sim, questionar tais grupos e suas ideologias. Porém, me parece que alguns conservadores (e liberais) estão se esquecendo da realidade concreta – e dos próprios princípios conservadores (e liberais) – para defenderem tradições abstratas em nome de uma polarização que só causa a perpetuação de narrativas reacionárias – bem ao gosto, aliás, do governo de turno. As situações devem ser analisadas dentro de sua realidade factual, observando suas complexidades e contradições, bem como aplicando o princípio fundamental da prudência diante de todos os sucessos e excessos humanos. Um conservador, diz a paráfrase conhecida de Bernardo de Chartres, olha mais longe por estar assentado no ombro de gigantes; por isso não é possível, prescindindo de uma cuidadosa compreensão e contemporização histórica, analisar o presente.

Alguns conservadores (e liberais) estão se esquecendo da realidade concreta para defenderem tradições abstratas em nome de uma polarização que só causa a perpetuação de narrativas reacionárias

Não há, por exemplo, como disse um comentarista de política brasileiro, “ingratidão” dos jogadores da NBA com o “sistema capitalista” por terem apoiado o Black Lives Matter (um movimento que quer destruir o capitalismo), pois eles não são fruto, mas motor – com seu trabalho que movimenta bilhões de dólares por ano – desse sistema. Eles não se transformaram em notáveis jogadores por causa do capitalismo, mas por seu talento. O capitalismo, enquanto sistema de trocas voluntárias, lhes deu oportunidade de enriquecer – a si e a muitos. Mas, num país que manteve a população negra escravizada por séculos, falar em ingratidão é, no mínimo, um disparate. Como diz Roger Scruton em Como ser um conservador, “o equívoco de reduzir a ordem política às operações do mercado equipara-se ao erro do socialismo revolucionário de reduzir a política a um plano”. A provável hipocrisia dos astros do basquete pode ser fruto dessa predisposição a revirar o passado, seduzidos por essas narrativas igualitárias e sentimentalistas. Mas suas convicções não serão mudadas com meros dados estatísticos; é um problema dessa geração ser pautada pelos sentimentos e não pela razão. Por isso, creio que a América necessita de um novo pacto social, ou da concretização da “revolução de valores” de King, que é nada mais nada menos que uma profunda reforma de sua imaginação moral. Mas, para isso, é preciso tornar o debate mais plural (nesse sentido, vivemos o mesmo aqui no Brasil).

Há uma realidade profunda a ser considerada, que não pode fechar os olhos à ferida provocada pelo que expus na primeira parte deste artigo. Foram séculos de escravidão, somados a quase um século de violenta segregação que ainda exibem seus fantasmas. Sem contar que os EUA, infelizmente, ainda vivem sob a égide de um separatismo tácito, materializado geograficamente por bairros e cidades, e ainda alimentam, infelizmente, um sentimento de nação racializado. Por isso ideologias igualitárias e de reparação são tão facilmente assimiladas. Ao evocar uma tradição, não se pode, abstratamente, prescindir da história, pois, diz Scruton, “ao debater a tradição, não estamos discutindo normas arbitrárias e convenções, mas respostas que foram descobertas a partir de questões perenes. Essas respostas estão implícitas, compartilhadas e incorporadas nas práticas sociais e nas expectativas inarticuladas. Aqueles que as adotam não são necessariamente capazes de explicá-las e ainda menos de justificá-las”.

Não se pode substituir a prudência por um ideal conservador pautado em nossas vivências particulares – muitas vezes cercadas de proteções herdadas. Conservadorismo é mais do que conservar nossos privilégios. É, antes de tudo, adverte sabiamente Scruton, saber que “nossa condição não é a do Homo oeconomicus, buscando em tudo um modo de satisfazer os desejos privados. Somos criaturas que constroem lares, em busca de valores intrínsecos e o que nos importa são os fins, não os meios, de nossa existência”. E que “a livre associação nos é necessária não só porque ‘nenhum homem é uma ilha’, mas porque os valores intrínsecos surgem a partir da cooperação social”. Aliás, citando outro grande conservador, Scruton observa:

Oakeshott acreditava que a associação civil fora cada vez mais substituída pela associação empresarial, sob pressão das elites políticas, gestores, partidos e ideólogos. Não foram somente os socialistas que contribuíram para essa substituição com metas de igualdade e justiça social. A tentativa liberal de adotar os contornos de uma ideia universal e abstrata de justiça e de direitos humanos; a busca supostamente conservadora pelo crescimento econômico como a origem da ordem social e da finalidade do governo – ambas também têm uma tendência a substituir a associação civil por um novo tipo de prática política em que as instituições da sociedade estejam propensas a cumprir um objetivo que possa ser incompatível com a dinâmica interna.

No Brasil, há um costume de conservadores e liberais basearem suas críticas às ideologias igualitárias usando os excelentes argumentos econômicos de Thomas Sowell. Porém se esquecem de suas ideias sobre o “conflito de visões”, em que concorda com Adam Smith e sua “teoria dos sentimentos morais”, cuja visão restrita admite que “o desafio moral e social” diante das “limitações dos homens em geral e seu egocentrismo em particular” deve ser “fazer o melhor possível diante dessa limitação, em vez de gastar energias em uma tentativa de se mudar a natureza humana – uma tentativa que Smith tratou tanto como vã quanto sem sentido”. E mais: “uma sociedade não pode funcionar humanamente, se é que é possível, quando cada indivíduo age como se seu dedinho fosse mais importante que a vida de cem milhões de outros seres humanos […]. Não podemos ‘preferir a nós mesmos sobre os outros de forma tão descarada e cega’ quando agimos, disse Adam Smith, mesmo quando esse comportamento se mostra como a tendência natural de nossos sentimentos”. Ou seja, a economia não está acima da moral comunitária que um conservador deve observar. O conservadorismo não é uma teoria de gabinete, que pode ser defendida abstratamente – como um “sistema” ou “tradição” apartados da vida real –, mas uma ordem social duradoura que, como diz Scruton, “depende das relações de afeto e lealdade que só podem ser construídas de baixo para cima, por uma interação face a face”.

Há ainda uma consideração a fazer: a redução da discussão, por conservadores e liberais, a meros dados estatísticos, nos têm feito incluir um “mas” – mas ele estava drogado, mas ele estava armado, mas ele tinha passagem por isso ou aquilo, mas x% de assassinatos etc. – todas as vezes que exibem alguém (geralmente um negro) morto pelas forças policiais – ainda que de forma absolutamente reprovável, como foi o caso de George Floyd. Sim, atento leitor, confrontar as ideologias com dados é fundamental – eu mesmo já fiz isso várias vezes. Sabemos que a realidade dos assassinatos é muito mais complexa se comparada adequadamente. No entanto, é preciso, diante da persistência das narrativas, ir além, sob o risco de parecermos insensíveis e incapazes de compreender nossos próprios defeitos. Tal comportamento dá a entender que uma pessoa pode simplesmente ser eliminada por ter antecedentes criminais, numa perpetuação da ideológica sentença: bandido bom é bandido morto.

E não se trata de defender condutas criminosas, mas de perceber que um conservador é alguém consciente das limitações de seus próprios juízos e um cético em relação ao poder do Estado. Diante disso, é sua obrigação saber, como diz Russell Kirk em A política da prudência, que “qualquer medida pública deve ser julgada pelas suas consequências de longo prazo, não apenas por vantagens ou popularidade temporárias”. E devemos, a todo custo, como diz Kirk, tomar cuidado com os “jovens ideólogos que se imaginam conservadores”, bem como com os “jovens conservadores esperando apaixonadamente se converterem em ideólogos”. São esses que estão aos montes, nas redes sociais, espalhando discursos cujo radicalismo reacionário nega o problema em vez de compreendê-lo, consequentemente, alimentando o ódio. Sejamos, antes de tudo, pacificadores.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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