“Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. O pão te garantia o êxito; o homem se inclina diante de quem lhe dá, porque é uma coisa incontestável, mas, se um outro se torna senhor da consciência humana, largará ali mesmo o teu pão para seguir aquele que cativa sua consciência”. (Dostoiévski, Os irmãos Karamázov)
Os tempos são difíceis. O Brasil está envolvido numa espécie de convulsão social velada que, apesar de ainda não ter tomado as ruas, já faz do ambiente virtual um verdadeiro campo de batalha. A reação aos mais de dez anos de governos petistas, fruto dos gravíssimos escândalos que deles sucederam e que foram revelados pela Operação Lava Jato, fez nascer uma bipolarização como há muito não se via em nosso país – a ponto de, no período eleitoral, presenciarmos um verdadeiro surto de amigos e familiares brigando por causa de política. E aqueles que ousaram não escolher um “lado” foram chamados de “isentões”, covardes, tucanos e outros epítetos indignos de serem aqui reproduzidos.
Surgiu, difuso, conforme analiso melhor em outro artigo, um movimento conservador – que eu prefiro chamar, por ora, de reacionário, posto ainda reativo –, clamando por uma “restauração da ordem”. Tal movimento alegrou o pequeno contingente daqueles que já militavam, havia muitos anos e com muita dificuldade, pela difusão de ideias conservadoras e liberais (no sentido econômico) no país, sufocados, sempre, por aquele pensamento irrefletido, embora hegemônico, de que a esquerda se preocupa com questões sociais – pobres, proletários e afins –, enquanto a direita se preocupa com os ricos e empresários. No entanto, rapidamente e quase numa completa subversão do princípio fundamental do conservadorismo – a prudência –, essa direita canalizou-se numa candidatura que, embora arriscada, parecia ser a única capaz de uma ruptura total com o sistema lulopetista. E mais – sina das sinas: representava também aquilo que a esquerda mais teme na face da terra: os militares. E, enquanto o cheiro de 1964 subia às narinas dos políticos, da imprensa e dos artistas engajados, a reação se tornava cada vez mais forte e a candidatura de seu inimigo, mais consolidada. O resto é história.
O problema é que esse processo, tenso e muito disputado, gerou uma militância que, nascida dessa reação, se tornou tão ou mais aguerrida que a anterior – da esquerda, que sozinha dominou, por anos e anos, tanto o ambiente virtual quanto as redações de jornais e a classe artística. E também um bom contingente de oportunistas que, tento vislumbrado a possibilidade de integrar o novo governo numa possível vitória, engajaram-se tão absolutamente que foram, de fato, alçados a cargos comissionados posições de apoio institucional – à custa de sua independência, se é que um dia a tiveram.
Essa nova militância é absolutamente implacável e, tendo surgido no exato momento em que as redes sociais, definitivamente, entraram no debate público e na política, transfigurou-se numa patrulha virtual que fica, 24 horas por dia, monitorando comentários e postagens a fim de, prontamente, agir, de maneira enérgica e viral, em favor dos concordantes e, mais energicamente ainda, na tentativa de destruir e silenciar os discordantes. Não importa que tenhas te declarado conservador, ou que sejas alguém que, muito antes dessa militância surgir, tenhas trabalhado incansavelmente pela propagação de tais ideias e visão de mundo; caso tua adesão ao governo verdadeiramente de direita não tenha sido completa e irrestrita e, por isso, ousares criticar ou denunciar aquilo que julgas necessário, prepara-te para a invasão bárbara de teu perfil pessoal ou página, não só argumentando contra a tua crítica – o que é absolutamente legítimo –, mas te xingando e te acusando, incansavelmente, até que te cales, agradecendo a Deus por não ter sido, se esse for o caso, prejudicado profissionalmente. É a Nova Era.
Tal situação tem obrigado muita gente a radicalizar sua posição contra o governo de Jair Bolsonaro, pois, não vendo possibilidade de discordar civilizadamente – criando um ambiente de discussão dentro da própria direita e fomentando o que João Camilo de Oliveira Torres, em O elogio do conservadorismo, chama de “lei da ambiguidade histórica, que nos leva a formular juízos de valor contraditórios a respeito de qualquer época”, pois seria “funesto um conservadorismo sem contrastes” –, alguns têm, simplesmente, subido o tom e se tornado alvo dessa militância histérica; o que é absolutamente danoso tanto para o governo quanto para a consolidação do renascente conservadorismo brasileiro. Absorver as críticas é importantíssimo, pois demonstra aquela maturidade conservadora caracterizada pelo que nos aponta Russell Kirk em A política da prudência: “é arriscado ponderar cada fato ocorrido tendo por base o julgamento e a racionalidade privados”; e cita Edmund Burke, que disse: “o indivíduo é tolo […], mas a espécie é sábia”. Ou ainda, seguindo o preceito bíblico: “na multidão de conselhos há sabedoria” (Provérbios 11,14).
No entanto, parece que a nova militância ainda respira o gás tóxico da dependência estatal – crendo que a solução dos problemas da sociedade está no governo –, e padece de um reacionarismo fruto da impossível tentativa de ruptura radical com os antigos regimes (tucano e lulopetista). Sim, impossível, pois, como diz João Camilo, “em história nunca há separação absoluta […] Por isso, na situação de ruptura, algo permanece; não houve nem jamais haverá ruptura absoluta em história”. É preciso ponderar sempre se quisermos solidificar uma cultura conservadora (e não reacionária) em nosso país; afinal de contas, governos passam e a sociedade fica. É preciso que nos estruturemos culturalmente, em absoluta liberdade e independência do poder burocrático governamental. É muito mais difícil e demorado – mas é, de fato, conservador.
De minha parte, tenho procurado manter minha liberdade de consciência fundamentada no que afirma que Platão, pela boca de Sócrates, no diálogo Críton: “não devemos de forma alguma preocuparmo-nos com o que diz a maioria , mas apenas com a opinião dos que têm conhecimento do justo e do injusto, e com a própria Verdade”.