“O imenso perigo e a urgência, ainda e desde sempre premente, de tirar a humanidade da barbárie próxima mandam que se vá direto ao objetivo humano. É preciso que a criança conheça o poder que ela tem de se governar, e primeiro que não creia em si; é preciso que também tenha o sentimento de que esse trabalho em si mesma é difícil e belo.” (Alain, Considerações sobre a Educação)
No artigo da semana passada abordei a enorme dificuldade que temos de conseguir dados para uma séria avaliação do sucesso (ou fracasso) do sistema de cotas raciais no ano de sua revisão. Grande parte das informações que encontramos é mera propaganda, e analisar sua efetividade real é de suma importância para que saibamos se o investimento feito foi, de fato, bem empregado.
É óbvio que, se o objetivo do sistema de cotas raciais era, parafraseando a página do Senado Federal sobre o tema, “ampliar a inclusão, a diversidade nas universidades e impactar milhares de famílias”, não há dúvidas de que ele funcionou. Minhas questões são: o que isso significa em termos gerais? Qual o impacto das cotas na vida dos mais necessitados? E, mais do que isso: Qual o impacto disso no real e incontornável problema, o ensino básico?
O maior efeito colateral das cotas é que elas não só não atacam como acentuam o seu gravíssimo problema de origem: a educação básica
De acordo com os dados de 2018, temos mais de 50% de alunos negros matriculados nas universidades públicas. De acordo com o MEC, de um total de 8,4 milhões de estudantes matriculados no ensino superior, 24,6% estão nas universidades públicas. Ou seja, se os dados não se alteraram muito, fazendo uma conta simplificada, temos pouco mais de 1 milhão de estudantes que se autodeclaram pretos ou pardos matriculados nas universidades públicas. Não é um número desprezível, mas é absolutamente insuficiente para causar um impacto verdadeiramente significativo no padrão de vida das pessoas mais pobres – as negras, por sinal. E é fácil provar isso quando olhamos para ensino básico.
Vejam esse dado da Pnad, de 2019: “11 milhões de brasileiros são analfabetos e 52% da população acima de 25 anos não concluiu o ensino básico”. Ou, ainda:
- Na análise por cor ou raça, 3,6% das pessoas de 15 anos ou mais de cor branca eram analfabetas, porcentual que se eleva para 8,9% entre pessoas de cor preta ou parda (diferença de 5,3 pontos porcentuais);
- 51,2% da população de 25 anos ou mais de idade não havia completado a educação escolar básica;
- A desigualdade é maior entre raças: 57% dos declarados brancos haviam terminado o ciclo básico de estudos em 2019; entre negros [pretos] e pardos o porcentual foi de 41,8%, diferença de 15,2 pontos porcentuais.
Note que, nos dados de 2019 – ou seja, com o sistema de cotas raciais no ensino superior em vigor havia sete anos –, quase 60% das pessoas maiores de 25 anos autodeclaradas pretas ou pardas não haviam concluído o ensino básico. Essas pessoas são computadas na hora de avaliarmos o sucesso das ações afirmativas em educação? Não, por óbvio.
Mas há mais: Entre pessoas de 18 a 24 anos, 11% estavam atrasados, frequentando algum dos cursos da educação básica; 4,1% haviam completado o ensino superior e 63,5% não frequentavam escola. E entre os jovens de 14 a 29 anos, quase 50 milhões de pessoas, 20,2% não completaram o ensino médio, seja por terem abandonado a escola ou por nunca tê-la frequentado. Nesta situação, portanto, havia 10,1 milhões de jovens, dentre os quais 58,3% eram homens e 41,7%, mulheres. Considerando-se cor ou raça, 27,3% eram brancos e 71,7%, pretos ou pardos. (todos os grifos são meus). Os dados são bem animadores, não é mesmo?
E quando olhamos para a prova do Saresp de 2021 e vemos que 96% dos alunos da rede estadual de São Paulo concluíram o ensino médio sem saber resolver equação de 1.º grau (grifo meu)? Quantos engenheiros teremos, oriundos do sistema de cotas, a partir desses dados? O atento leitor pode descontar a catástrofe da pandemia, mas não se esqueça de que equação de 1.º grau é matéria do 7.º ano do ensino fundamental. E, claro, podemos contar entre os cotistas com os 4% restantes. Agora avalie o impacto disso na educação como um todo, na formação como um todo, na vida profissional e na mobilidade socioeconômica dos brasileiros mais pobres como um todo.
Em termos de educação, o sistema de cotas representa a tentativa de se enxugar um iceberg com uma toalha de rosto
Por isso, para mim, o maior efeito colateral das cotas é que elas não só não atacam como acentuam o seu gravíssimo problema de origem: a educação básica. E se provam, pelo entusiasmo sádico de seus defensores mais ardorosos, um problema não de educação, mas de disputa política. Em termos de educação, o sistema de cotas representa a tentativa de se enxugar um iceberg com uma toalha de rosto. Além do quê, os cotistas, assim que saem da universidade, belos, conscientes (ou militantes) e formados, terão ainda de enfrentar o oponente que evitaram no ingresso: o graduado oriundo das melhores escolas – bilíngue, com intercâmbio e dinheiro para iniciar a carreira. E dá-lhe mais enxugar de gelo implantando sistemas de cotas para ingresso em cargos de executivos nas grandes empresas. E assim seguiremos eternamente, com a imensa maioria de nossas crianças e jovens absolutamente abandonados no ensino básico (ou fora dele).
Ao fim e ao cabo, as cotas estão destinadas a uma “elite” do ensino público, que, em geral, possui boa estrutura, educação e apoio familiares, e é naturalmente estudiosa. Em minha experiência como professor, estes representam um porcentual baixíssimo dos alunos; a imensa maioria tem chegado ao fim do ensino médio sem qualquer perspectiva ou mesmo ambição. Como diz Thomas Sowell: “Como as políticas de ação afirmativa são destinadas a compensar desvantagens econômicas existentes, seu objetivo é minado quando os benefícios de tais políticas se destinam desproporcionalmente para aqueles indivíduos dentro dos grupos indicados que estão em situação menos desvantajosa – ou talvez estejam em posição mais favorável do que os integrantes da população geral do país”. Com isso, proporcionalmente, possuem pouco impacto nas desigualdades absurdas que temos em nosso país. As cotas são uma Vitória de Pirro, que massageia o ego de seus defensores, mas mantém o panorama geral inalterado.
Ao fim e ao cabo, as cotas estão destinadas a uma “elite” do ensino público, que, em geral, possui boa estrutura, educação e apoio familiares, e é naturalmente estudiosa
Um detalhe importantíssimo: o total apocalipse da educação básica, já tratado por mim em duas séries de artigos nesta Gazeta do Povo – aqui e aqui –, mostra que, quando falamos de educação, não deveríamos estar falando de algo meramente direcionado para o vestibular e a faculdade. As escolas de elite, sobretudo, trabalham em função dos vestibulares mais concorridos, criando competição e classificação internas entre grupos, professores e alunos. Não se fala mais de educação como formação de caráter, de cidadania, de virtudes. Como diz o mestre Ernesto Carneiro Ribeiro, o meu Patrono da Educação Brasileira,
“separar [...] as faculdades ou capacidades naturais do espírito, cujo desenvolvimento na vida normal do homem se não pode conceber insuladamente, segundo o atesta a observação e o confirma a filosofia, é ou considerar a educação falha e incompleta, sem as irradiações das ideias que tanta luz projetam nas determinações da vontade, nos hábitos e na formação do caráter, nos costumes e em todos os atos da atividade livre, ou privar a inteligência e os seus produtos daquela feição moral que, como o óleo purificador, se infiltra em todas as regiões e recessos do intelecto, abrandando, dulcificando, suavizando a vida do agente moral em todas as suas relações da sociedade de que é membro.”
Disso as cotas, definitivamente, não tratam. Por isso, para mim, fracassaram.
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