“Pois, não importa o quão anacrônica seja nossa reação, nossa surpresa diante de [Alexander] Crummell e daqueles dentre seus contemporâneos sionistas que compartilharam de sua visão racializada, está em que, como vítimas do racismo, eles endossaram teorias racialistas.” (Kwame Anthony Appiah, Na casa de meu pai)
Em 1894, o médico maranhense – e racista – Raimundo Nina Rodrigues reclamava da falta de uniformidade étnica do mestiço brasileiro e das “dificuldades de avaliação científica dessas populações”. E a Gazeta Médica da Bahia advertia, conforme nos mostra Lilia Schwarcz em seu O espetáculo das raças, de maneira absolutamente insólita, que:
“A mestiçagem deve ser, até certo ponto, encarada psicologicamente como fator de degeneração. Entre nós, é constituída de elementos de várias procedências, portadores de caracteres étnicos diversos e condições especiais que, sob as influências mesológicas, devem trazer uma perturbação inevitável na organização do equilíbrio inobstável. A mestiçagem extremada aqui encontrada... retarda ou dificulta a unificação dos tipos, ora perturbando traços essenciais, ora fazendo reviver nas populações caracteres atávicos de indivíduos mergulhados na noite dos tempos. É preciso mudar as raças...”
As “comissões de heteroidentificação” são uma consequência natural da racialização institucionalizada que tanto temiam os críticos das cotas e fruto da jogada de mestre dos movimentos negros em adotarem o one drop rule americano no Brasil
Ou seja, o mestiço – que atualmente é chamado de pardo – constituía um elemento de preocupação em nossa tão celebrada comunidade científica, pois maculava a pureza tanto africana quanto europeia, causando uma indefinição racial prejudicial ao desenvolvimento humano. O elemento africano, ainda que inferior – pois num processo evolutivo diferente, atrasado –, era melhor definido em pureza do que em mistura. Tal abordagem foi base para a teoria do branqueamento da população brasileira, divulgada por João Batista de Lacerda no Congresso Universal das Raças, em 1911, na qual o fomento da imigração europeia e a determinação para que casassem somente entre si eliminaria, no prazo de 100 anos, o elemento africano da sociedade brasileira.
Ou seja, a ideologia cientificista das raças humanas, iniciada no século 18 e só desbancada – pasme, leitor! – no ano de 2003, com a conclusão parcial do Projeto Genoma Humano, serviu de base não só para a construção do racismo, como também para todo o projeto de refundação do Brasil, sob bases racistas e eugenistas, a partir do golpe militar de 1889 e a instauração da República. Por isso, sempre afirmo que o racismo que conhecemos hoje é mais fruto da República que da escravidão colonial.
Só na década de 1930 Gilberto Freyre solaparia as teorias eugênicas, declarando que o grande trunfo da sociedade brasileira é justamente a miscigenação. Mas seu ideário de um Brasil virtuoso e mestiço não duraria muito. Seus críticos o acusarão de edulcorar a escravidão e de ser defensor do mito da democracia racial, a falsa impressão de que negros e brancos vivem em absoluta harmonia. Já tratei disso nesta Gazeta do Povo, aqui e aqui.
O caríssimo leitor pode já estar se perguntando o que isso tem a ver com o sistema de cotas raciais. Explico: uma das principais ressalvas daqueles que eram (e são) contra as cotas raciais era seu problema de origem: a insuficiência da autodeclaração e necessidade de criação das – para usar o nome bonitinho (e pseudocientífico) que deram – comissões de heteroidentificação; ou, para dizer em bom português: os tribunais raciais.
Que haveria fraudes era de uma obviedade gritante. Não porque “a branquitude, seja de direita ou de esquerda”, quer “manter seus privilégios”, como dizem os militantes em seu eterno conspiracionismo; mas porque estamos no Brasil, o país da Lei de Gérson. No entanto, os famigerados comitês são, por analogia, a retomada dos pressupostos racistas do século 19. Não há o que tergiversar. Caso a proposta viesse, ainda que igualmente absurda, em sentido contrário, usada para garantir o ingresso de pessoas brancas pelo sistema de ampla concorrência, a acusação de racismo seria imediata. E a desculpa de que não poderiam fazer isso porque não são vítimas de um sistema de opressão ou do racismo estrutural só convenceria aos próprios militantes. Tais comissões são uma consequência natural da racialização institucionalizada que tanto temiam os críticos das cotas e fruto da jogada de mestre dos movimentos negros em adotarem o one drop rule americano no Brasil.
O fato inescusável é que, diante dos tribunais raciais, o mestiço é, de novo, o suspeito. É ele que, de novo, é o fator de degeneração. É ele que, de novo, “retarda ou dificulta a unificação dos tipos”. Se as matérias sobre fraudes ganham ampla repercussão, aquelas que tratam dos erros nos tribunais são pouquíssimo exploradas. Uma matéria do jornal O Dia, de 2020, traz depoimentos de alunos que passaram por constrangimentos absurdos na UFRJ. E mesmo a Gazeta do Povo já publicou extensa matéria sobre o problema. Os pardos rejeitados pelas comissões muitas vezes têm de recorrer à Justiça para ter o seu direito assegurado, não sem antes serem classificados como fraudadores – e, inclusive, expostos em criminosos perfis de redes sociais.
Diante dos tribunais raciais, o mestiço é, de novo, o suspeito. É ele que, de novo, é o fator de degeneração. É ele que, de novo, “retarda ou dificulta a unificação dos tipos”
Está tudo errado, e a Vitória de Pirro é, também, um Leito de Procusto, cobre-se os pés e descobre-se a cabeça (e vice-versa). Como diz o filósofo ganês Kwame Appiah: “A verdade é que não existem raças: não há nada no mundo que possa fazer tudo o que pedimos que a raça faça por nós. Como vimos, até mesmo a noção do biólogo tem apenas usos limitados, e a noção que Du Bois requeria [de grupos ligados biológica e culturalmente], e que fundamenta os racismos mais odiosos da era moderna, não se refere a absolutamente nada que exista no mundo. O mal que se faz é feito pelo conceito e por suposições simplistas, mas impossíveis, a respeito de sua aplicação”.
E retomar a ideia de raça para que remediemos um problema muito mais profundo, o ensino básico – como demonstrei no artigo anterior –, é não só um retrocesso, mas uma crueldade.
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