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Candidatos fazem prova do vestibular para a Universidade de São Paulo: lei de cotas nas universidades completa dez anos em agosto.| Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“Se o estudo da história é uma das maneiras de evitar repeti-la, existe muito da história das políticas de ação afirmativa ao redor do mundo que jamais deve ser repetido. Em muitos países, tais políticas se transformaram em formas de produzir benefícios relativamente pequenos para uns poucos e problemas enormes para a sociedade como um todo.” (Thomas Sowell, Ação afirmativa ao redor do mundo)

A Lei 12.711/12 completa dez anos esse ano, e o artigo 7.º da lei diz: “No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”. Portanto, em pleno ano eleitoral, na situação eleitoral em que nos encontramos, o sistema de cotas deve ser revisado. E o desespero começou.

A quantidade de estudos, estatísticas, pareceres, opiniões e achismos sobre o sistema de cotas que estão sendo produzidos, a toque de caixa, com a dificuldade absurda que temos para coletar dados no Brasil, me deixa um tanto confuso. Fui atrás de informações sobre os resultados desses dez anos e me surpreendi com a dificuldade para coletá-los condensados.

Não teremos, inclusive pelo apagão estatístico de mais de dez anos sem um mísero Censo, dados minimamente confiáveis do sucesso, fracasso ou indiferença do sistema de cotas no ano de sua revisão

Por exemplo, quando procuramos dados sobre a evasão dos universitários oriundos do sistema de cotas, nos deparamos com imbróglios como esse aqui: “Conceitualmente, cabe definir sobre qual evasão estamos falando: temporária ou definitiva e se é do curso, da instituição ou do sistema. Analiticamente, temos de reconhecer seu caráter multicausal e multifatorial, o que implica em assumir o vasto conjunto de motivações que levam à desistência (preferências por outro curso/instituição, mudanças de expectativas profissionais, dificuldades acadêmicas, questões de saúde física e mental, dentre outras) e fatores institucionais (curso, turno, políticas de apoio à permanência, acesso à bolsa de pesquisa etc.) e socioeconômicos (origem social, renda, local de moradia, conjugalidade, parentalidade etc.) que impactam na evasão”. Ou seja, assim é impossível saber, com precisão, por que cotistas evadem; mas sabe-se que evadem muito, sobretudo dos cursos de exatas. Mas não cotistas também evadem em número não desprezível, embora menor.

Portanto não teremos, inclusive pelo apagão estatístico de mais de dez anos sem um mísero Censo, dados minimamente confiáveis do sucesso, fracasso ou indiferença do sistema de cotas no ano de sua revisão. Vencerá esse debate aqueles que conseguirem torturar mais os dados para que eles confessem suas teses. Dizer que o sistema de cotas foi um sucesso porque a “quantidade de alunos universitários que se autodeclararam negros cresceu 192% desde a Lei de Cotas”, ignorando todas as transformações socioeconômicas que ocorreram na sociedade nos últimos dez anos – inclusive o aumento da autodeclaração (forçada, muitas vezes, pelos movimentos negros) – e a ampliação exponencial da oferta, com a criação, durante os governos do PT, de 18 universidades federais e 173 câmpus, é uma falácia estatística grosseira. Como diz acertadamente Thomas Sowell:

“Mesmo onde os dados estatísticos sobre o progresso dos grupos aquinhoados com tratamento preferencial são adequados – e quase sempre eles não existem –, permanece sendo um desafio determinar quanto do progresso se deve às políticas de preferências e não a outros fatores que estejam operando ao mesmo tempo. As simples comparações ʻantes e depoisʼ não funcionam, porque isso seria supor que nada mais havia mudado quando, na verdade, a própria dinâmica do estabelecimento de programas de ação afirmativa normalmente reflete alterações que já estavam se processando antes do início dos grupos preferenciais. Dificilmente existe uma situação estacionária à qual determinada ʻalteraçãoʼ é adicionada.”

Ainda à época da implantação do sistema de cotas raciais havia uma legítima preocupação, advinda de acadêmicos e intelectuais e da própria sociedade civil, de que a racialização da sociedade brasileira, há muito assimilada num caldeirão mestiço, poderia trazer mais prejuízos do que benefícios. Como diz a querida antropóloga e professora emérita da UFRJ Yvonne Maggie – que travou, mas perdeu, uma batalha hercúlea com alguns de seus pares contra as cotas raciais:

“Na altura acreditávamos que os antropólogos, nossos colegas no Brasil e alhures, iriam compartilhar nossa preocupação, pois somos herdeiros de uma tradição radicalmente antirracista desde os trabalhos de Franz Boas, que lançou as bases da antropologia moderna no início do século 20. Também, como ensinou outro fundador da disciplina, Bronislaw Malinowski, é fundamental levar a sério ʻo ponto de vista nativoʼ e, por isso, examinamos algumas cartas de leitores do jornal O Globo discordando das cotas raciais em vários pontos e se revelando brasileiros que se pensavam misturados. Estes se declararam defensores das cotas para pobres. Afinal, como nós, reconheciam a existência das desigualdades materiais entre cidadãos de várias cores e que de qualquer maneira as cotas sociais beneficiariam um maior número de ʻpardos e pretosʼ que se encontram entre os mais pobres. Mas estávamos enganados. A maioria dos nossos colegas se declarou favorável às leis raciais, alguns até tomando a liderança na implementação de sistemas de cotas raciais em suas universidades, afirmando a necessidade de distribuir justiça tratando ʻdesigualmente os desiguaisʼ, argumento sociológico que embasou a decisão do STF anos mais tarde.”

A professora Yvonne, junto a outro grande antropólogo e amigo, Peter Fry, também professor da UFRJ – ambos especialistas e muito ligados a assuntos que envolvem o continente africano –, se uniram a outros acadêmicos e intelectuais, e produziram um livro de título provocativo, Divisões Perigosas – Políticas raciais no Brasil contemporâneo, a fim de discutir as implicações dessa investida tão controversa dos movimentos negros, comprada por outros acadêmicos, políticos e até pelo Supremo Tribunal Federal – que reconheceu a constitucionalidade das cotas em 2012: reconstruir e ressignificar o conceito biológico de raças a fim de usá-lo a seu favor. No livro reuniram artigos de figuras como o poeta Ferreira Gullar, o geógrafo Demétrio Magnoli, o historiador José Murilo de Carvalho, o jornalista Luís Nassif e até pessoas ligadas aos movimentos negros, como Roque Ferreira, à época membro do Conselho da Comunidade Negra, e José Carlos Miranda, à época coordenador nacional do Movimento Negro Socialista e, atualmente, diretor do PSol-SP. Na apresentação do livro, os organizadores são categóricos:

“O novo racialismo a que assistimos no Brasil contemporâneo é um empreendimento de restauração do conceito de raças humanas. Os racialistas começam desvalorizando o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei e terminam atribuindo identidades raciais a cada pessoa. A divisão da sociedade em raças oficiais, ou seja, em grupos raciais catalogados pelo Estado, é o alicerce para um sistema de preferências e privilégios legais concedidos a título de ʻreparaçãoʼ. Na sociedade racializada, os direitos universais à educação, à saúde e ao emprego passam a um plano secundário”.

A questão para mim não é mais ser a favor ou não das cotas, mas analisar se a sua suposta efetividade não produziu efeitos colaterais danosos

Não estavam errados: o caminho para o identitarismo radicalíssimo a que assistimos hoje estava traçado.

Num artigo contundente, publicado na Folha de S.Paulo em 21 de abril de 2006 e reproduzido no livro, sobre as controvérsias da classificação “racial” do povo brasileiro e o famigerado Estatuto da Igualdade Racial – que ele chama de “monstruosidade jurídica e conceitual”, o sociólogo Simon Schwartzman assevera (e acerta):

“A antiga imagem de integração e homogeneidade coexistia com a manutenção de milhões de pessoas à margem dos benefícios e da cultura oficiais, falando mal a língua, incapazes de entender a educação das escolas, e sentindo-se inferiorizados pela cor da pele e por seus antepassados negros e indígenas. A reorientação dos anos recentes buscou inverter por completo os termos do problema. Dali em diante, a interpretação ʻcorretaʼ passou a ser: ʻo Brasil é um país racista, marcado pelo preconceito e a discriminação. A igualdade formal e harmonia entre as raças são apenas discursos ideológicos para a ocultação das diferenças. É necessário denunciar tais mitos, criar leis que reconheçam as diferenças, atribuir novos direitos aos discriminados e compensá-los pelas perdas e sofrimentos do passado. Ao invés da falsa harmonia das três raças, as crianças devem aprender nas escolas a história maldita da discriminação e do preconceito. A cultura a estimular não deve mais ser a cultura erudita, dos brancos, mas a cultura popular, das comunidades pobres e dos negros’. O projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que o Congresso está a ponto de aprovar, pretende consagrar e transformar em ideologia oficial essa nova interpretação da sociedade brasileira”.

Ou seja, o embrião da teoria do Racismo Estrutural havia sido gerado.

No fim das contas, a preocupação daqueles tempos foi quase superada, e ser contra as cotas atualmente é lutar contra moinhos de vento. Creio, parafraseando Sowell, que, ainda que essas políticas sejam defendidas como temporárias, a verdade é que elas não só se tornam permanentes como aumentam – e as recentes cotas na empresas são um exemplo. No mais, tenho certeza de que a política de cotas raciais não será revogada e dificilmente acabará um dia. Por isso, a questão para mim não é mais ser a favor ou não das cotas, mas analisar se a sua suposta efetividade não produziu efeitos colaterais danosos. Eu defendo que sim. Mas sobre isso falaremos na próxima semana.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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