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“A primeira requisição para a vida civilizada é que o homem esteja disposto a reprimir seus instintos e apetites mais ferozes. O fracasso no estabelecimento desse primeiro requisito tornará o homem, devido à faculdade da razão, um ser muito pior do que as feras da natureza.” (Theodore Dalrymple)
Há tempos que estava para escrever ao menos umas poucas linhas sobre o mais recente filme do polêmico cineasta canadense David Cronenberg, o perturbador – repugnante até –, mas muito necessário Crimes do Futuro, a que assisti em julho do ano passado, na pré-estreia, mas que atualmente está em exibição na excelente plataforma Mubi.
Confesso que Cronenberg não é um diretor de minha predileção; seus filmes não me atraem quase nada e gostei muito pouco dos que vi – exceção, talvez, para o clássico nojentão A Mosca, de 1986. Entretanto, fui assistir a Crimes do Futuro a convite de meu amigo Roberto Sadovski, crítico de cinema do UOL; afinal de contas, não se despreza um cinema de graça. E qual não foi minha estupefação, minha surpresa com o que vi na tela! O filme se passa num futuro indefinido, distópico, com um toque pós-apocalíptico, em que as pessoas não sentem mais dor e as experiências com o corpo passam a ser sua diversão predileta. Mais do que isso: as modificações corporais, feitas ao vivo, em performances artísticas realizadas em locais obscuros que atraem bastante público, são eventos disputados e os artistas se esforçam para ver quem parece mais bizarro – a nós, pois, para eles, a coisa toda tem um sentido de realização que beira o sublime.
Crimes do Futuro é perturbador – repugnante até –, mas muito necessário
Bisturis penetrando corpos, navalhas rasgando rostos, órgãos sendo retirados, bocas e olhos costurados e até implantes de várias orelhas espalhadas pelo corpo dão o tom do que vemos nas pouco mais de uma hora e 40 minutos, numa atmosfera de penumbra que mistura aparelhos tecnológicos e médicos de alta complexidade – apesar da aparência arcaica – e um cenário de catástrofe, de ruas sujas e pessoas maltrapilhas, vestidas muitas vezes à maneira medieval, se esgueirando pelos becos escuros, mutilando-se para sentir prazer. A propósito, esse é o mote, dito por uma personagem, que parece ser a epígrafe do filme: “a cirurgia é o novo sexo”.
(Contém spoilers)
Saul Tenser (Viggo Mortensen) é um artista mundialmente conhecido, cujo corpo produz órgãos esquisitos e sem função alguma – a Síndrome de Evolução Acelerada, outra característica desse futuro distópico, juntamente com pessoas que se alimentam de plástico e outras sandices; com sua amiga Caprice (Léa Seydoux), ele realiza apresentações de retirada desses órgãos através de uma máquina de autópsia, com bisturis controlados por um controle remoto que tem a forma e semelhança de um sapo – marrom e gosmento –, cheio de botões coloridos que piscam. Estranho? Muito. Tais apresentações – ou melhor, cirurgias laparoscópicas – têm um componente estranhamente erótico, que é transmitido à plateia que assiste, filma e fotografa tudo. Tenser, por essa característica, vive um desconforto constante, com dificuldades para comer ou mesmo respirar, dormindo e se alimentando em engenhocas que se movimentam e, respectivamente, controlam as alterações em seu organismo, sua dor, e lhe auxiliam na alimentação. É tudo por demais repulsivo – mas, como disse e explicarei, necessário.
Timlin (Kristen Stewart) e Wippet (Don McKellar) são dois burocratas desse mundo estranhíssimo, que trabalham no Registro Nacional de Órgãos, que catalogam e acompanham – com verdadeira fascinação, na verdade – todo esse processo “evolutivo” que está ocorrendo. Wippet diz a Tenser, com preocupação, em seu primeiro encontro – respondendo à sua própria pergunta sobre o conhecimento dos artistas a respeito da necessidade do registro de órgãos:
“A evolução humana é a preocupação, pois está indo na direção errada. Ou seja, descontrolada, insurrecional... Isso pode nos levar a um lugar ruim. Veja o que aconteceu com os limiares de dor, por exemplo. O mundo é um lugar muito mais perigoso, agora que a dor praticamente desapareceu. De que adianta só um punhado de sortudos de nós sentir dor durante o sono? A dor tem uma função. É um sistema de alerta que não temos mais, e como isso aconteceu? O que isso significa? Ou... o que acontece com as infecções? Infecções! O que aconteceu com elas? Ninguém mais lava as mãos. O que é isso? O que é essa nova moda... como eles chamam isso? Cirurgia de interface! Em público. É repulsivo!”
Essa preocupação sincera de Wippet não o impede de, na sequência seguinte, assistir, com Timlin, cheios de interesse, a uma apresentação de Tenser e Caprice. E é após essa apresentação que Timlin pergunta a Tenser: “Aquela cirurgia é sexo, não é?” E emenda, afirmativamente, após a evasiva do artista: “Enquanto assistia a Caprice abrir você, [...] eu queria que você estivesse me abrindo. Foi assim que eu soube” – complementando com a frase supracitada, sobre a cirurgia ser o novo sexo. Em outra cena, Timlin tenta seduzir Tenser, e escuta deste que não tem mais habilidade para o “antigo sexo”.
Para além de tudo isso, Tenser é informante da polícia e se encontra secreta e regularmente com um detetive que está tentando desmantelar um grupo de evolucionistas rebeldes, que criou em laboratório uma modificação genética que lhes permite se alimentarem de plástico, algo que nos remete à sequência inicial do filme, em que uma criança é morta asfixiada por sua própria mãe, após aparecer comendo a lixeira do banheiro. Essa criança é filha de Lang Dotrice (Scott Speedman), o líder dessa facção, que usou o filho de cobaia e agora pede a Tenser e Caprice que façam a autópsia da criança publicamente, para que isso sirva de divulgação da nova evolução. Após relutar um pouco, a dupla decide realizar a autópsia na criança, mas, ao abrirem o seu peito, constatam que seus órgãos haviam sido substituídos – descobre-se, depois, que o trabalho foi realizado por Timlin, a pedido da polícia, a fim de assegurar o segredo da evolução.
Dotrice é misteriosamente morto por duas agentes da Forma de Vida, empresa que, aparentemente, produz as engenhocas que ajudam Tenser a comer e dormir. Tenser decide não mais ajudar a polícia e, por fim, experimentar uma das barras de plástico que alimentam os rebeldes. Sentado na cadeira-engenhoca, filmado por Caprice, ele dá uma mordida no “doce”, mastiga, a cadeira pára e ele esboça um sorriso, ficando inerte em seguida. Fim.
Do body modification ao transumanismo, o caminho para um desejo de autonomia total do ser humano sobre seu corpo, bem como seu domínio sobre a natureza, está traçado
Do ponto de vista técnico, o filme é muito interessante. A fotografia, escura, neo-noir, é muito boa; a combinação que o diretor faz de elementos modernos e tecnológicos, com roupas e ambientes quase medievais, é também digna de nota. As atuações e a direção são inquestionáveis.
Agora, o que há de importante nesse filme repugnante e por que assisti-lo? Lembro-me da conversa espetacular que tive, no meu podcast, o Noir, com a Bancada Feminista do PSol – pois é, caro leitor, é possível conversar tranquilamente com quem discordamos. Foi um papo riquíssimo, em que o exercício de falar e ouvir foi respeitado e pudemos expor nossas ideias e visões, por vezes diametralmente opostas, sem animosidades. Em determinado momento, enquanto falávamos sobre as controversas questões relacionadas a essa multiplicidade de gêneros que estão surgindo, questionei – algo que já fiz com meus alunos e tratei em artigo aqui, nesta Gazeta do Povo – se é possível traçar uma linha no chão que demarque nosso horizonte civilizatório. Caso contrário, penso que caminhamos a passos largos para a barbárie, para um lugar de não retorno. Minhas convidadas discordaram. Mas o filme de Cronenberg acabou por, de certo modo, prever esse futuro.
Do body modification ao transumanismo, o caminho para um desejo de autonomia total do ser humano sobre seu corpo, bem como seu domínio sobre a natureza, está traçado. O modo como as personagens do filme se relacionam com seus corpos e o desejo que têm de ultrapassarem, cada vez mais, os limites impostos pela natureza (ou por Deus) são um alerta das aterradoras possibilidades do nosso futuro. Nesse sentido, é um filme profético.
O modo como as personagens do filme se relacionam com seus corpos e o desejo que têm de ultrapassarem, cada vez mais, os limites impostos pela natureza (ou por Deus) são um alerta das aterradoras possibilidades do nosso futuro
Jacob Shatzer, Ph.D., professor assistente e reitor adjunto da Escola de Teologia e Missões da Union University, em seu livro Transumanismo e a imagem de Deus, publicado recentemente pela Edições Vida Nova, traz reflexões importantíssimas nesse campo, sobretudo para os cristãos como eu. Citando a escritora e palestrante Dorcas Cheng-Tozun, ele define o transumanismo como a “fé na tecnologia para expandir enormemente as capacidades dos humanos.” E complementa:
“Há nele uma filosofia de vida, um movimento intelectual e cultural, bem como uma área de estudos […]. O movimento transumanista procura aperfeiçoar a inteligência humana, a força física e os cinco sentidos por meios tecnológicos. Ele demanda a evolução contínua da vida inteligente além de sua forma humana atual – e, portanto, para além das limitações humanas – por meio da ciência e da tecnologia, as quais são guiadas por princípios e valores que promovem a vida. O transumanismo é a ʻhumanidade que assume o controle de seu destino evolucionárioʼ. Para o transumanista, todo aprimoramento é, por definição, bom.”
Creio não ser necessário detalhar os perigos dessa cosmovisão, não é mesmo, atento leitor? Diz o prof. Shatzer que “de acordo com essa perspectiva, a natureza humana não é uma coisa estática, imutável, mas simplesmente um ponto no caminho do desenvolvimento. Portanto, o objetivo do transumanismo não é o humano ideal do humanismo iluminista, mas algo que transcende o que rotularíamos atualmente de ʻhumanoʼ.” E ao que parece, esse é um caminho sem volta.
Portanto, como fez C.S. Lewis com a publicação de sua Trilogia Cósmica sob toda euforia cientificista da primeira metade do séc. 20 e os horrores tecnológicos da Segunda Guerra – inclusive experimentos com seres humanos – , precisamos estar atentos a essa visão de futuro utópico, que vem sendo fomentada por bilionários como Mark Zuckerberg e Elon Musk, que, não sabendo mais onde colocar dinheiro, passaram a investir nesse ideal de eternidade terrena (ou interplanetária). E o filme de Cronenberg traz uma importante antevisão do que nos aguarda caso insistamos em desafiar nossas limitações para além do que nos é permitido.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos