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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Religião e política

Não seja um cristão “ou… ou”

"Cristo na casa de Marta", de Georg Friedrich Stettner". (Foto: Wikimedia Commons)

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“Deves saber que, desde o início do mundo, príncipe sábio é ave rara, e mais raro ainda é um príncipe honesto. Em geral são os maiores tolos e os piores patifes da terra; por isso tem de se esperar deles o pior e pouca coisa boa, especialmente em relação às coisas divinas, que dizem respeito à salvação de alma.” (Martinho Lutero, Da autoridade secular)

A relação dos cristãos com a política sempre foi controversa – como se pode atestar em minha trilogia sobre religião e política que inicia aqui. Uma ignorância ingênua pode facilmente nos enredar no oportunismo alheio e nos fazer pecar. Sendo o cristianismo uma religião complexa, cuja compreensão, mesmo básica, exige algum estudo sistemático – por isso o investimento, ainda que precário, em catequese, escolas dominicais, seminários etc. –, não é fácil manter um nível mínimo de ortodoxia necessária a uma fé saudável, que não se deixe enganar pela sabedoria do mundo; os cristãos estão sempre à beira da heresia, da apostasia ou mesmo dos pecados mais grosseiros. Mas como disseminar conhecimento de uma religião cuja fundamentação teológica é toda livresca, num país onde o analfabetismo atinge quase 7% da população e que tem outros 30% de analfabetos funcionais? E olha que eu, como professor, considero tais números extremamente otimistas.

Então temos um gravíssimo problema: o cristão médio brasileiro depende inteiramente não só da interpretação alheia, mas da boa didática e da retórica daquele que lhe transmite (ou deveria lhe transmitir) a mensagem do Evangelho. Se o pregador for alguém instruído e bem-intencionado, o estrago é menor. Mas sabemos que não é bem isso que ocorre, pois parte considerável de pregadores está entre aqueles 30% que nem sequer entendem o que leem. O caso mais escandalosamente notório é daquele pastor que usou a Bíblia para ter relações sexuais com uma mulher casada, pois confundiu o adjetivo “adúltera” com o imperativo “adultera”. Quantos iguais a esse senhor temos por aí, nos púlpitos das igrejas? Muitos, sem dúvida. No entanto, esse era o risco que Martinho Lutero achou que valeria a pena correr quando defendeu a livre interpretação – e eu concordo com ele –, apesar de insistir que a educação, inclusive o aprendizado das línguas originais, era fundamental para uma boa interpretação. Disse o reformador: “não conseguiremos preservar o Evangelho corretamente sem as línguas. As línguas são a bainha da espada do Espírito”. Mas que evangélicos de hoje conhecem Lutero?

O cristão médio brasileiro depende inteiramente não só da interpretação alheia, mas da boa didática e da retórica daquele que lhe transmite (ou deveria lhe transmitir) a mensagem do Evangelho

Não é à toa, portanto, que cristãos têm se colocado na controversa posição de, diante da polarização ideológica que norteia o debate político atual, tomarem posição a favor de um candidato que, em outras circunstâncias, seria inaceitável, sob a alegação de ele supostamente defender os princípios cristãos. A maioria, convencida por seus pastores; outros, esmerados em seus projetos pessoais cujo público cativo do bolsonarismo lhes interessa, mas todos justificando suas escolhas em nome de Jesus Cristo. Mas não só. Igrejas e fiéis estão pressionando seus membros e irmãos a votarem em Bolsonaro, e até desestimulando o voto nulo usando o texto bíblico de Apocalipse 3,15. Tem, inclusive, grupo católico dizendo – pasme, caro leitor! – que voto nulo é pecado.

Mas qual a legitimidade dessa submissão que, de repente, tomou corpo, sobretudo no meio evangélico, em favor de Bolsonaro? Será que a alegação de que ele é contra o comunismo – apesar de ser a favor de tortura e de elogiar ditaduras –, a favor da família, contra o aborto e a ideologia de gênero são virtudes suficientes para fazer com que sejam aceitas as denúncias que pairam sobre ele e sua família, seu flagrante patrimonialismo, sua criminosa gestão da pandemia (fora o descaso), seu comportamento absolutamente reprovável – e essa de comer carne humana?! –, seu cristianismo híbrido? Tais falhas são aceitáveis em contraposição a tudo o que Lula representa? Mas como defender bíblica ou teologicamente tal posição? Eu, como cristão e conservador (sim, são coisas diferentes) que sou, não sou obrigado a me submeter ao julgamento do tempo presente quando uma controvérsia tão grande se instaura, pois creio ser mais apropriado olhar com prudência para o passado, para as experiências e comportamentos análogos e observar criticamente o que dizem a Bíblia e teólogos consagrados. Infelizmente, pelo que disse acima, são poucos os que têm condições de fazer isso; é mais fácil ser um cristão ou ou. Mas aqueles que têm e não fazem pecam por prevaricação.

Tudo o que tenho a dizer sobre o fenômeno Bolsonaro e seu governo desastroso eu já disse à exaustão nesta coluna, inclusive já esbarrei nesse mesmo tema mais de uma vez. No entanto, esses dias, revisitando um ensaio excepcional de um dos maiores teólogos protestantes do século 20, Karl Barth (1886-1968), de título O cristão na sociedade, retirado de uma palestra proferida em 1919, sob os estertores da Primeira Guerra Mundial, a associação com o que vivemos na atualidade foi inevitável. Aqui, esse ensaio foi publicado na coletânea Dádiva e louvor, de Editora Sinodal.

O que Barth pretende nos mostrar é a absoluta soberania de Deus em nossa vida diante da transitoriedade do mundo, e que o cristão nada deve fazer além de obedecer a essa soberania e à vontade de Deus. Ele inicia dizendo:

“Muito verdadeira é a lembrança evangélica de que a semente é a palavra e o campo é o mundo. Mas o que é, afinal de contas, a palavra, e quem de nós a tem? E será que não deveríamos, antes de mais nada, ficar uma vez amedrontados ante a tarefa de semeadores da palavra para o mundo, ante a tarefa que tanto amedrontou a um Moisés, um Isaías, um Jeremias? Teria a recusa inicial desses homens em relacionar o divino com a vida das pessoas menos razão de ser do que nossa pronta disposição? Será que a fuga de Jonas diante do Senhor pode ser explicada, digamos, apenas pela presunção da religião? Um pouquinho de experiência, intuição e boa vontade não resolvem nada aqui, ao que parece. O divino é algo inteiro, completo em si, por natureza novo e diferente do mundo. Não pode ser aplicado, usado como rótulo, adaptado. Nem se deixa dividir e repartir, justamente por ser mais que religião.”

Aqui temos a prudência do próprio teólogo na aproximação de seu objeto. Não podemos comparar a proclamação do evangelho a nada que existe e pode ser conhecido no mundo. Sua natureza não é terrena e não pode ser confundida sequer com a religião que organizamos em torno dela. E assevera: “Como é difícil empreender, de coração puro e com todo respeito, diante do que é santo e sagrado, o menor passo que seja, na sociedade com Cristo! [...] Como é perigoso permitir que insira Deus nas questões, preocupações e agitações sociais!” Ou seja, Deus, aquele que ficou conhecido, na teologia de Barth, por Totalmente Outro, não pode ser trazido à arena de nossas discussões sociopolíticas sem temor e tremor. Ele não se permite enredar por nossas definições e ideologias. O divórcio na atualidade é ainda maior: “Se hoje, ainda mais hoje, o sagrado se afirma, para nossa dor de cabeça, a sua autonomia diante do profano; o profano agora, igualmente, afirma sua autonomia ao sagrado. A sociedade simplesmente está dominada por seu próprio Logos, ou melhor, por toda série de hipóstases e potências de semelhança divina. Comparemo-nos hoje aos melhores e mais devotos homens da era helenista ou também da era anterior à Reforma. Que os ídolos são uns nadas isso começamos a perceber, mas nem por isso está quebrado o seu poder demoníaco sobre nossas vidas”.

Qual a legitimidade dessa submissão que, de repente, tomou corpo, sobretudo no meio evangélico, em favor de Bolsonaro?

Barth fala sob escombros, a destruição da guerra é a paisagem do momento; a desolação e, mais do que isso, a propensão ao famigerado desencanto do mundo são o caminho mais fácil. Outro caminho seria a adesão. Mas a fé e o conhecimento do jovem pastor e teólogo o obrigam a não ceder ao impulso humano, e foi isso que fez dele um dos maiores expoentes da resistência cristã ao nacional-socialismo na década de 1930. Barth foi o redator da Declaração Teológica de Barmen, um documento que visava a orientar as igrejas protestantes alemãs ante a ideologia nazista, e foi um dos líderes da Igreja Confessante juntamente com o mártir Dietrich Bonhoeffer e outros. Diante de tanta confusão reinante, Barth é categórico:

“Compreender – permitam-me resumir o sentido desse movimento unido da vida para dentro da morte, e saindo da morte para a vida, na qual encontramos nesta uma palavra: compreender. Compreender e aprender, queremos, a grande perturbação do ser humano por Deus, e por isso o grande estremecimento dos fundamentos do mundo. Compreender e aprender tudo o que está movendo e sendo movido também em seu estado ateu [de ímpio] primitivo. Compreender nossos contemporâneos, desde [Friedrich] Naumann a [Jonann Christoph] Blumhardt, de [Woodrow] Wilson a [Vladimir] Lênin em todos os diversos estágios do mesmo movimento nos quais os enxergamos. Compreender nossa época e seus sinais, compreender também a nós mesmos sem nossa estranha inquietação e movimentação. Compreender significa: reconhecer a partir de Deus que tudo isso tem de ser assim, e não diferente. Compreender significa: em temor a Deus tomar sobre si toda a situação, e em temor a Deus entrar no movimento da época. Compreender significa: receber perdão para poder perdoar. A isto é que somos impelidos porque disso precisamos. Pois não nos iludamos: esta inquietação através de Deus, que nos leva a um distanciamento crítico frente à vida, contém a conquista mais positiva e frutífera que se pode conceber. O juízo de Deus sobre o mundo e a instalação de sua própria justiça. Deixar lançar-se de volta ao princípio não é uma frustrante negação se realmente formos lançados ao princípio, a Deus. Pois somente com Deus é que podemos ser positivos. Positiva é aquela negação que parte de Deus e se refere a Deus, ao passo que todas as posições que não se fundam em Deus são negativas. Compreender em Deus o sentido de nossa época, entrar, portanto, na inquietação através de Deus, bem como no distanciamento crítico frente à vida, significa ao mesmo tempo dar à nossa época seu sentido em Deus.”

Escolher um político ou outro é tomar uma decisão mundana, por nosssa conta e risco, e não em nome de Deus

A nossa postura diante do movimento do mundo é entrar nele diante de Deus, criticamente, pois “quem passou pelo estreito portão da negação crítica – tudo é fugaz, disse o Pregador, tudo é fugaz –, este pode e tem de falar assim novamente. No reconhecimento da absoluta vanidade da vida sob o sol, sob a luz da vida supraceleste de Deus se encontra justamente também o reconhecimento da relativa e não tão insignificante e obscura possibilidade e direito dessa vida fugaz”. E arremata: “Estamos mais fundo no não que no sim, mais fundo na crítica e no protesto que na ingenuidade, mais fundo na ânsia pelo futuro que na participação no presente. Nós não podemos honrar o Criador do mundo original de outra forma senão gritando pelo Redentor do mundo presente”.

Ou seja, nossa posição não deve ser de apoio, rejeição ou mesmo de crítica a políticos com base em nossos valores e avaliações mundanas – ainda que as disfarcemos de divinas. Nossa relação com o mundo é de quem vive nele, mas não pertence a ele (João 17,14-16), e o mundo e suas vicissitudes só podem existir para nós a partir e diante de Deus, e os perigos que o mundo nos oferece, oferecemos igualmente a Ele.

Por isso não faz sentido apoiar ou escolher um político porque ele supostamente defende valores; nossa vida está, antes, escondida em Deus e acima dos valores. Escolher um político ou outro é tomar uma decisão mundana, por nossa conta e risco, e não em nome de Deus. Deus é soberano. E mesmo o governante, que existe para ser espada de Deus (Romanos 13,4), tem autonomia relativa, age sempre para a glória de Deus ainda que não percebamos. A escolha de dois políticos igualmente reprováveis não é uma posição de isenção, é uma posição legítima de quem escolhe Deus e resiste criticamente a ser um cristão ou ou mundano. E escolher Deus é sempre escolher contra o mundo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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