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“Assim que, quanto ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos, sabemos que o ídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus, senão um só. Porque, ainda que haja também alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra (como há muitos deuses e muitos senhores), todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por ele.” (1 Coríntios 8,4-6)
Como o fiel leitor desta coluna sabe, sou cristão; protestante, crente, evangélico, como queira. Convivo há mais de 20 anos com evangélicos, sou um estudioso (já fui mais) da teologia e tenho mestrado em Ciências da Religião. Tenho lugar de fala, portanto, se for esse o caso. Também tenho a meu favor que sempre fui um cristão bastante atento à ortodoxia teológica do cristianismo e, durante muito tempo, fui um apologista aplicado. Minha aproximação com a filosofia, inclusive, se deu por meio de meu aprofundamento teológico, ao perceber que, como diz Aristóteles, na escala de importância, ainda que a teologia tenha a excelência, as outras ciências teoréticas são mais necessárias ao homem (Metafísica, 983a).
Desde minha conversão, tenho plena convicção de que o cristianismo é uma religião exclusivista, ou seja, Jesus Cristo é o único caminho, verdade e vida (João 14,6); a única maneira de ir dessa para uma melhor é através da confissão dos pecados, do arrependimento e da declaração de que Cristo é o único e suficiente senhor e salvador. É isso, não tem conversa. Também é de conhecimento de todos que todo cristão tem o dever de ir “por todo o mundo” e pregar “o evangelho a toda criatura”. De posse dessa convicção, é egoísmo e pecado não querer que todos sejam redimidos e que ninguém fique para trás. O proselitismo, nesse sentido, é um ato de amor e misericórdia.
Se você é cristão e quer que outros também o sejam, evangelize de maneira que não afaste as pessoas em vez de aproximá-las; ser impertinente pouco ajuda
Mas como proceder num mundo eivado de religiões, que, inclusive, veem o cristianismo tão somente como mais uma? Como convencer aquele seu parente, que encontrou refúgio e acolhimento, sei lá, no budismo, que ele deve abandonar a sua religião e seguir a Cristo? Como pregar minha crença absolutista num mundo completamente relativizado? Pois é; se você é cristão, você que lute, que peça estratégia e discernimento ao Espírito Santo – sim, cremos num Deus triuno – e faça de maneira que não afaste as pessoas em vez de aproximá-las; e, se posso afirmar uma coisa com certeza, é que ser impertinente pouco ajuda. Mas minha intenção aqui, neste pequeno artigo, não é dar dicas de evangelização, tampouco convencer você, leitor que não crê, da verdade de minha fé. Meu propósito é outro, mais específico.
Essa semana um fato noticiado trouxe-me à memória uma reflexão que há muito me atormenta. Um exemplar do livro infantil Amoras, do rapper Emicida – que, segundo a descrição na Amazon, tem o objetivo de, “através de seu texto e das ilustrações de Aldo Fabrini”, mostrar “a importância de nos reconhecermos no mundo e nos orgulharmos de quem somos – desde criança e para sempre” – foi, segundo o portal G1, “vandalizado” pela mãe de um aluno em uma escola de Salvador. O livro, que “foi indicado como sugestão de obras didáticas para o projeto Ciranda Literária”, da escola Clubinho das Letras, foi todo anotado pela mãe, que reagiu ao conteúdo que exalta a cultura negra e a mitologia iorubá. A mãe, ao ver uma ilustração do que seria uma divindade desse panteão, logo disparou que tais divindades não são deuses, são “anjos caídos”; ou, ao ver a descrição do continente africano como o “berço da humanidade”, onde “a raça humana começou”, anotou na margem da página que “essa info[rmação] é fake”, e emendou: “informação verídica sobre a raça humana está escrita no livro de Gênesis, do 1 ao cap. 9 e 10. Essas ideologias com origem africana, com base em religiões anticristãs (é blasfêmia contra o Deus vivo), vulgo o Criador”, dentre outras observações.
Ou seja, a mãe, preocupada com o conteúdo do livro, decidiu anotar suas críticas e mandar o livro, que foi comprado por ela, para a escola – pelo que entendi, a compra é feita pelos pais, mas o livro fica na escola para uso dos alunos. Outro responsável, ao pegar o livro, informou à escola. Mas a mulher se defendeu, dizendo que comprou “a obra sugerida pela escola por achar que seriam abordadas apenas questões raciais. Porém, identificou que a obra também falava sobre religiões, assunto que, segundo ela, a escola havia informado que não seria tratado neste ano. Como no livro o cristianismo não era abordado, ela decidiu escrever as passagens bíblicas à mão, para que, desta forma, os pais dos alunos pudessem ler, se quisessem, diferentes versões para seus filhos”.
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A meu ver, a preocupação da mãe é até legítimas, mas creio haver uma confusão aí, que, inclusive, é fruto de outros tipos de confusões e preconceitos. Vejamos:
Em minhas aulas de Filosofia no ensino médio, sempre que tenho de tratar sobre mitologia, incluo mitologia africana na conversa; leio – juntamente com os mais comuns, gregos e nórdicos – mitos iorubás e bantu. Os alunos, obviamente, estranham os nomes; mas explico-lhes que, se não estranham Odin e Zeus, não devem estranhar Oxalá e Exú. Por quê? Simplesmente porque todos os povos, de todo o planeta, têm mitologias. O mito, segundo Mircea Eliade em O sagrado e o profano, “conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio”, e “descreve as diversas e às vezes dramáticas irrupções do sagrado do mundo”. São narrativas de origem, que os seres humanos criaram a fim de explicar “como uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição humana”. As religiões, olhando friamente, nada mais são do que a ritualização e dogmatização dos mitos.
Essa não é uma reflexão fácil para aqueles acostumados a pensar no cristianismo como a religião verdadeira em detrimento de todas as outras, e na Bíblia como um texto que deve ser lido, em sua inteireza, de modo literal. Para um cristão comum, dizer que há algo de mítico no cristianismo – ou mesmo no Antigo Testamento – é blasfemar. Porém, de maneira breve, que não pretendo aprofundar aqui, alio-me a mentes brilhantes como a de J.R.R. Tolkien, um católico, e C.S. Lewis, um protestante, na ideia absolutamente genial de que Cristo é o mito que se tornou fato. Lewis argumenta, no ensaio Mito que se tornou realidade, presente na sua obra-prima ensaística Deus no banco dos réus: “Mito é a montanha de onde procedem todos os diferentes rios que se tornam verdades aqui em baixo, no vale; in hac valle abstractionis. Ou, se preferir, mito é o istmo que liga o mundo peninsular do pensamento ao vasto continente a que realmente pertencemos. Ele não é, como a verdade, abstrato; nem está, como a experiência direta, ligado ao específico”. E completa:
“Ora, assim como o mito transcende o pensamento, a encarnação transcende o mito. O cerne do cristianismo é um mito que também é fato. O velho mito do deus que morre, sem deixar de ser mito, desce do céu da lenda e da imaginação para a Terra da história. Ele acontece — em uma data específica, em um lugar específico, seguido por consequências históricas definíveis. Passamos de um Balder ou um Osíris, que morrem ninguém sabe onde nem quando, para uma Pessoa histórica crucificada (está tudo em ordem) sob Pôncio Pilatos. Ao tornar-se fato, ele não deixa de ser mito; o milagre é esse.”
O exclusivismo cristão deve ser equilibrado pela ideia de que todas as religiões, enquanto religiões, são legítimas, são manifestações de fé e tentativas de compreensão da realidade
O leitor que não é cristão não precisa concordar comigo; mas o cristão deve, ao menos, pensar por um instante. Isso resolve uma série de problemas e nos abre um leque gigantesco de compreensão das semelhanças histórico-religiosas que conhecemos. Tipo: Osíris é um deus que morre e ressuscita; o dilúvio bíblico é semelhante a algo que ocorre na Epopeia de Gilgamesh; os sacrifícios de todas as religiões arcaicas apontam para a solução final em Cristo. Ou mesmo o conhecido “fator Melquisedeque”, a ideia de que Deus plantou a semente do evangelho nas mais diversas culturas do mundo.
Agora, observe, atento leitor: se não podemos pedir esse nível de compreensão a uma mãe, é preciso que admitamos que as catequeses e as escolas dominicais falham muito em não trazer essa abordagem para ser discutida entre seus fiéis. Pecamos pela ignorância – como sempre.
Mas há ainda um ponto específico de que quero tratar: a demonização das religiões de matriz africana, que impede sua distinção das mitologias africanas. O fundo é obviamente racista, fruto da escravidão e catequização colonial. Se olharmos bem, os vikings incorporavam divindades e ninguém estranha. Da mesma forma que ninguém estranha o Oráculo de Delfos nem o “daimon” socrático. Sim, pois não há mais gregos adorando Afrodite, nem nórdicos clamando a Thor. Mas o fato de existirem, ainda hoje, religiões de matriz africana ligadas às mitologias africanas confunde e dificulta demais a compreensão. De uma perspectiva meramente filosófica, a universalidade das mitologias liga deuses com características semelhantes. Por exemplo: o Exú africano nada mais é do que o correspondente do nórdico Loki; ou seja, são divindades sagazes, espirituosas e, às vezes, enganadoras.
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De posse desse conhecimento, ainda que não concorde com ele, passo a compreender que as coisas não são tão simples e não devem ser reduzidas a anjos e demônios. O exclusivismo cristão deve ser equilibrado pela ideia de que todas as religiões, enquanto religiões, são legítimas, são manifestações de fé e tentativas de compreensão da realidade. As discussões sobre suas práticas e doutrinas podem e devem ser debatidas e confrontadas com aquilo que cremos ser a verdade verdadeira, mas, em hipótese alguma, devem ser reduzidas a coisa maligna, pois, na medida em que todas as coisas que não são de Deus são malignas, não deveríamos apreciar a mitologia grega, nem a nórdica, nem vermos filmes da Marvel, e passarmos os nossos dias a assistir A paixão de Cristo e The Chosen – se não for heresia retratar Jesus no audiovisual.
Mas reitero, falando aos meus: ainda que creiamos como cremos, ainda que não haja espaço para qualquer relativização – mesmo diante de nossa condição humana, falha, miserável – das religiões, nossa função, enquanto cristãos, é sermos luz, que ilumina, e sal, que tempera e conserva; não obscurantistas (que impedem a luz) nem amargos ou azedos, difíceis de digerir. Pense no que Cristo faria, como Ele procederia. Se abandonarmos a lógica veterotestamentária, de leis e guerras, e olharmos para a atitude do Mestre, veremos que a única vez em que Ele se irou, de fato, foi contra os seus – os judeus, que chamou até de filhos do Diabo. Ele não foi atormentar as outras religiões (e muitas havia). Ele foi firme no anúncio do Reino, mas foi compassivo com os homens. Nosso proselitismo não pode ser feito pela espada, pelo ódio, mas sentando à mesa com todos e compartilhando o amor e a misericórdia de Deus – como fez Paulo no areópago grego. Nosso reino não é deste mundo, não aderimos à ideologias. Amamos, só .
Voltando à mãe em questão, encher um livro de anotações reducionistas é a maneira mais estúpida de contestar seu conteúdo. Que levasse a preocupação à escola e argumentasse os pontos de conflito; é válido. Mas, se a violência é o refúgio dos ignorantes, nós, cristãos, desobedecendo a ordem do Cristo (Mt 10,16), temos pecado muito nisso. E, em suma, o que devemos entender é que: a complexidade da relação entre cristianismo e religiões de matriz africana deve 1. levar em consideração os efeitos do racismo; e 2. ultrapassar a superficialidade fundamentalista. Conhecimento e compaixão são a fórmula, a única. Que Ele cresça e nós diminuamos, sempre.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos