A criação artística exige do artista que ele “pereça por inteiro”, no sentido pleno e trágico destas palavras. (Andrei Tarkovski, Esculpir o tempo)
No início de sua obra máxima – e um dos mais belos livros sobre crítica de poesia já escritos –, O arco e a lira, Octavio Paz nos brinda com uma definição de tirar o fôlego:
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Ideia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho. atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo […].
As palavras de Paz são catárticas, e diante de sua profundidade é possível termos um vislumbre daquilo que a poesia, de fato, é; ou pelo menos de sua fundamental importância. A poesia é, num sentido arquetípico do termo – tal qual apresentado por Paz –, um modo de participação na origem de tudo. Como diz Tarkovski: “O poeta não usa ‘descrições’ do mundo; ele mesmo participa de sua criação”. Portanto, sua origem se confunde com a origem do cosmos e da própria humanidade, pois no princípio era a Palavra. E Décio Pignatari, em seu Comunicação poética, diz que o poema é um ser de linguagem.
Todas essas definições são importantes, pois atestam algo pouco notado até pelos – hoje raríssimos – leitores habituais de poesia: o poeta é um consagrado. É aquele a quem são revelados mistérios que ele compartilhará com os mortais. E o preço dessa vocação é o sofrimento e, por fim, o martírio – palavra de origem grega que significa testemunho. O poeta é uma testemunha dos princípios e dos fins, e carrega consigo a verdade absoluta expressada na arte. Tais afirmações, tão categóricas e tão elevadas, pareceriam fantasiosas se os exemplos não abundassem, se a história não nos tivesse legado um número considerável de mártires das artes e, sobretudo, das letras. Seria um exagero se, por exemplo, um Cruz e Sousa – cuja vida foi uma expressão exata do que significa martírio – fosse apenas fruto de nossa imaginação. Mas não é. A vida do Dante Negro foi um verdadeira via crucis, e sua poesia foi a “peregrina irradiação celeste” que iluminou o seu calvário.
João da Cruz e Sousa nasceu em Nossa Senhora do Desterro – hoje, Florianópolis –, em 24 de novembro de 1861, filho de Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e de Carolina Eva da Conceição, lavadeira e cozinheira; os dois eram escravos alforriados. Cruz e Sousa teve um irmão, de nome Norberto da Conceição Sousa, nascido em 1864, que foi tanoeiro (que faz e conserta barris/tonéis), mas desapareceu da história da família ao rumar em direção à MG ou SP, entre 1888 e 1890. Os dois tiveram educação esmerada no Ateneu Provincial, excelente escola da época na região, onde seus pais batalharam muito por uma vaga para seus filhos. Aliás, como nos atesta Uelinton Farias Alves, biógrafo do poeta, em Cruz e Sousa, Dante Negro do Brasil (Pallas):
A educação dos filhos passou a ser uma prioridade, praticamente uma obsessão para os pais escravos e humildes. Eles se preocupavam com o futuro dos filhos. Era a forma de fazerem a passagem de uma geração civilizada na base do chicote, da farinha de mandioca com água do poço, para a luz do conhecimento que só os livros poderiam trazer. Quando houve a possibilidade de verem seus filhos se abrigarem sob o manto dessa bendita luz sagrada, o ensino de Humanidades, os pais do futuro poeta teceram suas armas como numa batalha renhida, em que se mata ou se morre, e partiram em busca da conquista daquilo que pensavam – muito sabiamente para a época, em se tratando de dois negros bastante ignaros – a verdadeira redenção, a alforria da alma e da razão humana pelo conhecimento.
E complementa, à frente: “portanto, a educação do poeta e do irmão foi parte de um projeto de vida dos pais de Cruz e Sousa”.
Cruz e Sousa foi um excelente aluno, sempre destacando-se nas matérias; ainda na adolescência, nos anos de 1870, deu aulas particulares para ajudar no sustento da família, e também já publicava alguns poemas em jornais locais. Em 1881, inicia, com os amigos Virgílio Várzea, Santos Lostada e José Artur Boiteux, um folhetim semanal de nome Colombo. E é pela singular inteligência que Cruz e Sousa vai driblando o preconceito de cor e galgando espaços sociais antes nunca ocupados por um negro não-mestiço.
Em 1892, conhece Francisco Moreira de Vasconcelos e a Companhia Dramática Julieta dos Santos. Cruz e Sousa era fã incondicional da atriz-mirim que dava nome à trupe, e escreveu vários poemas e textos em prosa dedicados a ela. Seu empenho em colaborar com a companhia era tanto que fez com que, no início do ano seguinte, fosse convidado para acompanhá-los em sua turnê, fazendo o trabalho de secretário e de “ponto” – ou seja, soprar passagens de textos esquecidos pelos artistas, além de escrever anúncios e editais. A turnê durou aproximadamente dois anos e passou por várias cidades do Brasil. No Rio de Janeiro, por intermédio do amigo de infância Oscar Rosas – que migrara para a capital do império em 1870 – conhece José do Patrocínio, que, infelizmente, não lhe dá muita atenção por estar totalmente envolvido com sua primeira viagem à Europa. Na Bahia, é reconhecido e homenageado por associações abolicionistas, como nos atesta seu biógrafo: “o poeta, menos pelas suas características raciais, cujo fenótipo era bem conhecido de todos no Brasil oitocentista, e mais pela desenvoltura do intelecto, do comportamento e da maneira de ser, causou grandes impressões ao povo baiano, merecendo da imprensa, principalmente da Gazeta da Tarde, da Bahia, deferimento jamais visto, inclusive dando destaque de sua presença através da publicação e anúncios e editais, convidando o povo a participar de uma de suas palestras em Salvador”.
João da Cruz e Sousa, o nosso Dante Negro, foi um mártir de sua arte; viveu e morreu por ela
E é em Salvador que Cruz e Sousa profere sua palestra abolicionista mais conhecida, publicada posteriormente em suas obras completas. O poeta era conhecido como orador arguto, e foi ovacionado pela audiência que estava na redação da Gazeta da Tarde, onde ocorreu o evento promovido pela associações abolicionistas Luiz Gama e benemérita Libertadora Baiana. Reproduzo aqui um trecho longo, mas importantíssimo para afastar de todo a ideia de que o Dante Negro não estava preocupado com a condição dos seus – acusação infundada que também fazem a Machado de Assis –, sendo ele mesmo filho de escravos:
Estamos em face de um acontecimento estupendo, cidadãos: A abolição da escravatura no Brasil.
Neste momento, do alto desta tribuna, onde se tem derramado em ondas de inspiração, o verbo vigoroso e másculo de diversos outros oradores, eu vou tentar vibrar nas vossas almas cidadãos, no fundo de vossos corações, brasileiros, os grandes sentimentos emanados da abolição; eu vou apelar para vossas mães, para vossos filhos, para vossas esposas.
A abolição, a grande obra do progresso é uma torrente que se despenca; não há mais pôr-lhe embaraços à sua carreira vertiginosa.
As consciências compenetram-se dos seus altos deveres e caminham pela vereda da luz, pela vereda da Liberdade, igualdade e fraternidade, essa trilogia enorme, pregada pelo filósofo do Cristianismo e ampliada pelo autor dos Châtiments, o velho Hugo.
Já é tempo cidadãos, de empunharmos o archote incendiário das revoluções da ideia e lançarmos a luz onde houver treva, o riso onde houver pranto, a abundância onde houver fome.
[…]
A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos protestos da razão humana, do patriotismo e caráter nacional ante tão bárbara e absurda instituição – a do escravagismo.
A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca, à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadura do sol, dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para a organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas, que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos nem interesses: discute princípios, discute coletividade, discute fins gerais.
Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.
Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que parece a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da mesma forma a palavra senhor.
Tanto tem de absurda, de inconveniente, de criminosa, como aquela. Se a humanidade do passado, por uma falsa compreensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizá-lo, compete-nos a nós que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.
[…]
A escravidão recua, o Abolicionismo avança seguro, convicto, como uma ideia, como um princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que parte a manutenção e a sustentação dos indivíduos dos pais dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado. Por isso no país não há indústria, não há índole da vida prática social, não há artes.
Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos, nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem construtores, porque estão na vida farta e fácil, sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as academias.
De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados a doutorarem-se porque se lhes diz muito 'isso não custa' e que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial etc. é uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas, dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô nascido e criado no conforto, no bem-estar, no gozo material da moeda dada pelo braço escravo.
Como podemos observar, as palavras do poeta são pungentes, cortantes como lâminas afiadas.
Em 1885, já de volta à terra natal, enamora-se de Pedra Antioquia da Silva. Mas as muitas viagens do poeta fazem com que o relacionamento não vingue. Pedra também era preta, e há uma informação curiosa, fornecida por seu biógrafo, sobre a preferência de Cruz e Sousa por mulheres pretas. Ele diz: “O mulato Araújo de Figueiredo […] chegou a indagar ao amigo Cruz e Sousa, numa espécie de provocação: ‘Por que não procuras uma rapariga pelo menos cor de jambo, para aperfeiçoares a raça?’. A resposta veio imediata e contundente: ‘Para que ela, meu Araújo, julgando-se quase branca, não me chame maliciosamente de negro!’” . Tal indagação, mesmo em caráter de troça, é muito curiosa – para não dizer absurda –, pois revela o racismo eugenista que, à época, ganhava espaço na sociedade brasileira, fomentado por figuras como Arthur de Gobineau. Mas, ironia das ironias, é feita por um amigo a um dos maiores intelectuais de seu tempo, o próprio Cruz e Souza. Como assim, “melhorar a raça”?!
Pedra Antioquia deu algumas entrevistas que são reveladoras. Numa delas, afirma: “Cruz e Sousa amava-me verdadeiramente e fui eu a inspiradora de seus primeiro versos. Era extremoso, amoroso, apaixonado, ardente mesmo; mas ai!, meu caro senhor – era sobretudo um sonhador. Nas horas em que conversávamos juntos, não se fartava de devanear. Um futuro luminoso nas letras e na política era seu permanente desejo; e quase sempre eu ouvia dos lábios de Cruz e Sousa que, ao meu lado, parecia falar a alguém que não estava ali: – Ainda hei de ser governador de Santa Catarina! Ou então: – Hei de morrer, mas hei de deixar nome!”. Adiante faz uma afirmação bastante curiosa: “Apesar de muito querido dos homens cultos de raça branca, não desprezava os pretos como ele: sempre saudava cortesmente e frequentava sociedade e reuniões familiares de gente de cor, onde se fazia ouvir ao piano e ao violão”. Muito interessante saber não só do apreço que tinha pelos de sua cor, mas também dos dotes musicais do grande poeta.
Quando da assinatura da Lei Áurea, que poria, definitivamente, um fim na escravidão no Brasil, Cruz e Sousa, ainda em Desterro, preparava sua mudança (quase) definitiva para o Rio de Janeiro. Eu meio aos festejos do 13 de maio, publica, na Tribuna Popular, um soneto belíssimo:
À pátria livre
Nem mais escravos e nem mais senhores!
Jesus desceu as regiões celestes,
Fez das sagradas, perfumosas vestes
Um sudário de luz pra tantas dores.
A terra toda rebentou em flores!
E onde havia só cardos e ciprestes,
Onde eram tristes solidões agrestes
Brotou a vida cheia de esplendores.
Então Jesus que sempre em todo mundo
Quis ver o amor ser nobre e ser profundo,
Falou depois a escravas gerações:
– Homens! A natureza é apenas uma...
Se não existe distinção alguma
Por que não se hão de unir os corações?!
No final de maio, para sua total decepção, chega à capital do império e o que vê não é, nem de longe, a situação que esperava. Os ex-escravos estavam envolvidos na incontornável discussão a respeito da indenização dos senhores de engenho, que D. Pedro II negava-se, terminantemente, a pagar. André Rebouças, o gênio da campanha abolicionista, os criticava duramente nos jornais. Tal situação se arrastou até o golpe republicano do ano seguinte, lançando, definitivamente, os libertos na total marginalidade. O poeta consegue alguns trabalhos, mas nada fixo, e passa e sofrer muito com suas dificuldades financeiras, dependendo sobremaneira de seus amigos, sobretudo Oscar Rosas. No ano seguinte – mais precisamente em 17 de março de 1889 –, volta para Desterro e reencontra os velhos companheiros Virgílio Várzea, Santos Lostada, Horácio de Carvalho e Carlos de Faria. Assume novamente suas funções na Tribuna Popular.
Mas isso também dura pouco tempo; Desterro é uma terra sem oportunidade, pequena para os anseios do grande poeta – e dandy –, que, segundo o amigo Araújo Figueiredo, “sempre trajou com certa regularidade, usando roupas apertadas que lhe davam ao corpo bastante elegância. Queria os sapatos muito brunidos, porque com os sapatos sujos, enlameados, não podia ter ideias”. Então, entre os dias 23 e 24 de dezembro de 1890, chega de novo ao Rio de Janeiro, agora para trabalhar como redator no jornal A Cidade do Rio, de José do Patrocínio.
É no Rio de Janeiro que toma contato mais profundo com o gênero de poesia que o notabilizaria e do qual será o maior representante brasileiro e um dos maiores do mundo, o Simbolismo – de acordo com Edmund Wilson, em O castelo de Axel, “uma tentativa, através de meios cuidadosamente estudados – uma complicada associação de ideias, representada por uma miscelânea de metáforas – de comunicar percepções únicas e pessoais”. Um dos poemas que mais caracterizam sua veia simbolista é Antífona, que abre sua obra-prima Broquéis. Segue um trecho:
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
[…]
Ou, ainda, a arquiconhecida passagem de "Violões que choram", de Faróis:
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
[…]
Seu emprego no jornal de Zé do Pato dura pouco, pois este, voltando de sua segunda viagem à Europa, se desentende com o poeta – um homem de difícil trato – e o expulsa do jornal. Agora Cruz e Sousa errará, de um lugar a outro até que, por influência, mais uma vez, de seus amigos, consegue uma vaga de arquivista na Companhia Estrada de Ferro Central do Brasil – nessa época, já era casado com Gavita Rosa Gonçalves, sua amada esposa, que lhe dará quatro filhos, todos mortos ainda na infância – exceto João da Cruz e Sousa, um filho póstumo (que nasceu após a sua morte), que viveu até os 16 anos. Gavita, mulher negra que Cruz e Sousa amou profundamente, sofre com o poeta as agruras da pobreza e da falta de reconhecimento. Os dois passavam tanta necessidade que, em sua primeira gravidez, por anemia, Gavita teve um surto nervoso e ficou por seis meses delirando em estado de histeria. Esse período extenuou por completo o poeta, que passou a sofrer de tuberculose.
Gavita melhorou subitamente, dentro da ambulância que a levava ao hospício. De repente, vira para o marido e lhe pergunta qual o motivo daquele passeio. Ela melhora, mas ele piora cada vez mais. Sem dinheiro e, agora, licenciado do trabalho, passa a sofrer acamado, magro, fraco e com tosses terríveis. Eram os meses finais de 1897. A situação era tão grave que, em 27 de dezembro, enviou uma carta dramática ao amigo Nestor Vítor, dizendo:
Não sei se estará chegando realmente o meu fim; mas hoje pela manhã tive uma síncope tão longa que supus a morte. No entanto ainda não perdi nem perco de todo a coragem. Há 15 dias tenho tido uma febre doida, devido, certamente, ao desarranjo intestinal em que ando. Mas o pior, meu velho, é que estou numa indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada, para nada! Um horror! Minha mulher diz que eu sou um fantasma que anda pela casa [...].
No ano seguinte, mais uma vez, com a ajuda de amigos, consegue, por recomendação médica – muito provavelmente equivocada –, viajar com Gavita para Minas Gerais, região da Serra da Mantiqueira, por conta do clima. Chegando à estação de Sítio em 16 de março de 1898, o casal (os filhos ficaram com a mãe de Gavita) dá entrada no hotel, mas o proprietário exige o pagamento antecipado das diárias, pois a aparência de Cruz e Sousa, com menos de cinquenta quilos, causava espanto. O fato é que o dinheiro não foi necessário; três dias depois, em 19 de março, morria Cruz e Sousa, delirando e tendo um vislumbre de seu próprio enterro.
Gavita voltou ao Rio de Janeiro para morrer, também de tuberculose, em 13 de setembro de 1901.
Sim, João da Cruz e Sousa, o nosso Dante Negro, foi um mártir de sua arte; viveu e morreu por ela. Pereceu por inteiro – como recomenda Andrei Tarkovski na epígrafe deste artigo – em seu nome. No entanto, sua obra continua viva. Broquéis, Faróis, Últimos Sonetos e O Livro Derradeiro, são suas obras de poesia; Missal, Tropos e Fantasias, Evocações – acrescida de Outras Evocações e Dispersos, são suas obras em prosa. Toda ela disponível para o deleite dos amantes da mais pura arte poética. Sobre a arte de Cruz e Sousa, no-lo afirma, de modo belíssimo, o também poeta – excelente poeta! – Ângelo Monteiro, em seu notável Arte ou desastre (É Realizações):
Toda obra de arte, independente da intenção do artista, é, ao mesmo tempo, um símbolo. É indiferente que o artista, em sua expressão, seja naturalista ou simbolista. Há um símbolo quando algo da plenitude do sentido das coisas penetra a mente o humana e é captado e apresentado de tal maneira que a plenitude do sentido – inexaurível para o conhecimento humano – seja misteriosamente insinuada. Desse modo, toda arte verdadeira é uma espécie de revelação, e a produção artística, um mistério sagrado.
Eis a arte de Cruz e Sousa, o poeta-mártir.