“O homem pode ser um indigno da linguagem, um utilizador ambíguo, apto a desviar esse utensílio de seu modo originário de emprego. Ou melhor, porque o homem é livre e decaído, pode igualmente utilizar a língua seja pela linha da verdade, seja pela da mentira”. (Gabriel Liiceanu, Da Mentira, Vide Editorial)
O polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996) é considerado um dos maiores cineastas de todos os tempos. Dono de um estilo intimista e profundo, foi daqueles diretores que, à medida que sua obra foi amadurecendo, foi se tornando cada vez mais metafísica, tratando mais de conflitos interiores que exteriores do ser humano.
Em seus primeiros filmes, dava mais ênfase a questões sócio-políticas (como em Personnel, de 1975, e Camera Buff, de 1979); já seus últimos filmes, como os sucessos A dupla vida de Véronique e a célebre Trilogia das Cores – A liberdade é azul, A igualdade é branca e A fraternidade é vermelha – tratam de temáticas mais simbólicas e emocionais – e espirituais. Marek Haltof, um de seus biógrafos, diz que “no início de sua carreira, Kieślowski operou em uma escala menor, acreditando no poder da representação fiel e detalhada da realidade. Mais tarde, passou de observações documentais e realistas de pessoas e lugares para filmes agrupados em séries”; passou, por assim dizer, a tratar de temas mais universais.
Sua obra mais ambiciosa foi O Decálogo, de 1989, uma série de dez filmes feitos para a televisão polonesa, baseados nos Dez Mandamentos bíblicos. A grande maioria dos críticos afirma que essa associação aos Mandamentos é livre, com alguns episódios, inclusive, contendo dilemas ligados a mais de um mandamento; no entanto, para o filósofo Slavoj Žižek, que escreveu um livro sobre a obra de Kieślowski – The Fright of Real Tears: Krzysztof Kieślowski Between Theory and Post-Theory (2001) –, essa ligação não é livre, mas funciona como uma “mudança de marcha” (the shift of gear), com o Decálogo I relacionando-se com o segundo mandamento, o Decálogo II relacionando-se com o terceiro, e assim por diante, com o último filme evocando o primeiro mandamento.
O Decálogo VIII, sobre o oitavo mandamento – Não dirás falso testemunho contra o teu próximo – é particularmente interessante para meus propósitos nesse artigo. Peço que me acompanhes, caro leitor.
O episódio conta a história de Zofia, uma renomada professora universitária que dá aulas de Ética na Universidade de Varsóvia. No início, após um prólogo de pouco mais de um minuto no qual uma criança é conduzida por um adulto, de mãos dadas, por um local sombrio – sequência que compreenderemos posteriormente –, acompanhamos a rotina de exercícios físicos da prof.a Zofia, senhora de certa idade e cuja expressão, embora jovial, dá sinais de profunda solidão. Já na universidade, recebe a visita de Elżbieta Loranz, uma americana que trabalha no Instituto de Investigação dos Judeus Sobreviventes do Holocausto, tradutora dos livros de Zofia para o inglês. Ela se diz muito interessada no trabalho docente de Zofia e pede permissão para assistir a suas aulas.
Na aula, Zofia está discutindo com seus alunos o que ela chama de “inferno moral”, sobre alguns eventos relacionados à Segunda Guerra e ao Holocausto. Após uma aluna expor o dilema de um casal – cujo marido está com câncer e a mulher, grávida de outro homem, lida com a possibilidade do marido viver e ela ter de abortar o bebê, ou ele morrer e ela tê-lo sem constrangimentos –, Elżbieta pede permissão para contar uma história verídica. Na história, que também se passa durante a Segunda Guerra, um casal de cristãos poloneses promete adotar uma criança judia cujo pai corria risco de ser preso pelos nazistas; porém, a mulher se recusa a mentir sobre o falso batismo da criança a fim de preservá-la (e aqui o oitavo mandamento é citado indiretamente e de forma invertida) e a menina é enviada para a América. A menina é Elżbieta, e a mulher é Zofia.
O desenrolar da história trata de curar as feridas desse reencontro – entre as duas e consigo mesmas.
Porém, prezado leitor, gostaria de evocar o oitavo mandamento para tratar de um tema que assombrou a nossa sociedade recentemente (e ainda assombra): o processo eleitoral e os percalços provocados pela intensa polarização política que nosso país vive. Como sabemos, não foram poucos os amigos que se afastaram, parentes que brigaram e não poucos constrangimentos públicos e privados foram registrados. O meme mais popular do momento é aquele que diz: “onde você vai passar o Natal já que brigou com todo mundo?”. O processo de reconciliação parece que vai demorar um pouco – em alguns casos, nem ocorrerá. Cada um dos contendores ainda se apega, com energia incontida, às certezas extremamente voláteis da realidade política nacional.
Na oposição encontram-se aqueles que, atualmente, resistem a um governo que não começou – ou seja: a nada. A corrida por uma filigrana, um deslize passado, um pelo no ovo, uma agulha no palheiro está a toda prova. Grande imprensa, jornalistas “independentes”, blogueiros, artistas e toda a camarilha que a esquerda aglutina em torno de sua ideologia de justiça social trabalham para macular o resultado das urnas.
Na situação estão os que, aos trancos e barrancos, tentam colocar em pé um governo no qual 55% dos brasileiros depositaram seu voto, mas que, na verdade, até que as coisas se concretizem, vive na mais temerária esperança. Dedos cruzados e orações.
Em meio a tanta confusão, alguns saíram do eixo da razão e mergulharam fundo no delírio messiânico; uns por carência, outros por cargo, todos por desespero. Descuidaram dos mais básicos preceitos de boa convivência humana e inflamaram-se no perigoso triunfalismo ideológico. Como o povo de Israel, impaciente por tanto tempo no deserto, trocaram a simplicidade dos Mandamentos pela arrogância de quem, sentindo-se seguro por ter vencido os egípcios, esquece que de Deus ninguém escapa.
O falso testemunho, um atentado contra o oitavo mandamento, é um pecado grosseiro, motivado pela soberba que enfraquece o espírito e o faz rastejar no limbo do ressentimento.
O Catecismo da Igreja Católica torna culpado:
– de juízo temerário, aquele que, mesmo tacitamente, admite como verdadeiro, sem prova suficiente, um defeito moral do próximo;
– de maledicência, aquele que, sem motivo objetivamente válido, revela os defeitos e as faltas de outrem a pessoas que os ignoram;
– de calúnia, aquele que, por afirmações contrárias à verdade, prejudica a reputação dos outros e dá ocasião a falsos juízos a seu respeito.
De acordo com Martinho Lutero, em seu Catecismo Maior, o “falso testemunho é tudo o que não se pode provar devidamente. Razão por que ninguém deve tornar público nem dar como verdadeiro o que não é manifesto em virtude de provas suficientes”.
Exorta, portanto, o reformador: “Se topares uma boca danada que espalha coisas a respeito de outro e o calunia, lança-lho francamente em rosto, para deixa-lo corado de vergonha. Assim, hão de calar a boca muitos que, de outra forma, transformam um pobre infeliz em vítima de maledicência da qual dificilmente voltará a libertar-se. Porque honra e bom nome facilmente se tiram, mas não é fácil restituí-los”.
O dilema ético colocado pelo filme de Kieślowski – se, à visita dos nazistas, a verdade sobre a origem da criança deveria ser dita incondicionalmente, lançando-a nas mãos de seus algozes – é relativizada por Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão morto, em 1945, a mando do próprio Hitler, da seguinte maneira: “É o cínico que, na pretensão de ‘falar a verdade’ em qualquer lugar, a qualquer hora e a qualquer pessoa de igual maneira, só exibe uma imagem idolátrica e morta da verdade. Ao aparentar fanatismo pela verdade, que não pode ter consideração pelas fraquezas humanas, ele destrói a verdade viva entre as pessoas. Fere o pudor, profana o mistério, desmerece a confiança, trai a comunidade em que vive e sorri, arrogantemente, do descalabro que provocou, da fraqueza humana que ‘não aguenta a verdade’. Diz ele que a verdade é destruidora e exige suas vítimas; sente-se como um deus acima das criaturas fracas, e não sabe que está servindo a Satanás”. (Ética, Sinodal)
Ou seja, tanto a maledicência quanto a verdade a qualquer custo são profanações do oitavo mandamento e devem ser evitados.
Que Deus restabeleça entre nós a ordem das coisas e garanta que cada um viva sua vida sem prejudicar quem quer que seja – ainda mais a quem, ontem mesmo, chamava de amigo.
PS.: Há controvérsia quanto a enumeração dos mandamentos. Utilizei a que segue a Igreja Católica, consagrada por Santo Agostinho, e a Luterana.
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