“Este é exatamente o tempo no qual os artistas devem trabalhar. Não há tempo para desespero, não há lugar para autopiedade, não há necessidade para o silêncio, não há espaço para o medo. Nós falamos, nós escrevemos, nós fazemos linguagem. É assim que as civilizações se curam.” (Toni Morrison, escritora)
O ano estava terminando e pensei que já tivesse dito tudo o que precisava dizer sobre como os negros – na verdade todos, mas quem leu os artigos, aqui e aqui, entendeu o meu foco – devem ser os maiores defensores da liberdade de expressão e os primeiros a se levantarem contra a censura, seja ela de que origem for. Ler o inigualável Luiz Gama dizer que a liberdade é “eterna e inquebrantável” e, mais de um século depois, o rapper e ativista Killer Mike dizer, com o mesmo espírito, que “quando leis são promulgadas a fim de usar o governo como uma força política para silenciar aqueles dos quais discordamos, muitas vezes as primeiras e maiores afetadas são as pessoas negras”, são provas suficientes da seriedade do tema, atualmente subvertido por negros de esquerda que parecem ter esquecido o básico.
Mas qual não foi a minha surpresa ao me deparar, no último dia do ano, com o novo especial de comédia stand-up de Dave Chappelle na Netflix: The Dreamer. Já não é possível negar que estamos diante de um acontecimento histórico importantíssimo, que muitos nem sequer entenderam ainda. Não se trata de fazer piadas ofensivas, de atacar minorias, de ser insensível ao sofrimento alheio; mas de defender a razão pela qual a complexidade da vida pode ser vislumbrada em todas as suas nuances. Trata-se, outrossim, de colocar em perspectiva toda a hipocrisia de que grupos organizados se valem para, em nome de um suposto direito de existir que não está sendo negado por ninguém, cobrirem a si próprios de privilégios que nenhum ser humano teve na história – muito menos os negros.
Se você faz parte de algum grupo minoritário e se recusa a ceder ao despertar, você é um traidor e merece ser perseguido, como tentaram fazer com Dave Chappelle – mas falharam miseravelmente
Junto aos dois especiais anteriores – Sticks & Stones e The Closer –, The Dreamer forma o que passei a chamar de trilogia da liberdade, o mais radical, irreverente, profundo e intelectualmente brilhante manifesto contra a censura ideológica do século 21. O que estamos presenciando é o florescer da geração mais autoritária de todos os tempos. Formada majoritariamente por jovens que dizem ter sido despertos (woke) para os males do mundo e estarem determinados a construir um mundo melhor, sua tática é simples. Como disse meu amigo e colega de Gazeta do Povo Francisco Razzo, a coisa toda consiste em “vigiar e punir. Bom, noutros termos: a vigilância constante em relação a expressões e comportamentos que possam ser considerados ofensivos a grupos minoritários. Se você não faz parte de um grupo minoritário, nem adianta reivindicar posição, apenas peça desculpas”. Acrescento: e se você faz parte de algum grupo minoritário e se recusa a ceder ao despertar, você é um traidor e merece ser perseguido, como tentaram fazer com Dave Chappelle – mas falharam miseravelmente.
Falharam porque Chappelle é um homem livre e tem plena consciência disso. Ao recusar, em 2004, a renovação do contrato de U$ 50 milhões com o canal Comedy Central para a terceira temporada de seu Chappelle Show, um sucesso absoluto de público e crítica, virar as costas para a indústria do entretenimento, viajar para a África do Sul e passar praticamente dez anos quase como um anônimo, ele mostrou que estava disposto a tudo para ter a sua independência. Como ele mesmo disse em The Closer:
“Eu apoiei o movimento ʻMe Tooʼ, mas o tempo todo eu achei que elas estavam lidando com ele de forma burra. Era burro, era branco, era tipo… Elas faziam umas paradas, tipo, ir aos Golden Globes. E todas ficavam: ʻVamos ao Golden Globes usando vestidos pretos. Vamos mostrar aos homens o que achamos delesʼ. Isso aí não vai dar certo. Vocês imaginam o Martin Luther King chegando: ʻQuero que todo mundo continue andando de ônibus, mas com roupas iguais?ʼ Você tem que descer do ônibus e ir andando. Isso é sério. É sério, foi um movimento bobo […]. Aí eu falei sobre isso num especial, e um monte de atrizes veio pra cima de mim […]. Elas ficaram: ʻQuem é ele pra dizer alguma coisa?ʼ Vou dizer exatamente quem sou eu: sou aquele que desceu do ônibus, deixou 50 milhões de dólares dentro dele e foi andando.”
Mas como eu estava dizendo, The Dreamer segue o roteiro dos dois especiais anteriores, com piadas construídas de maneira genial, cujas punchlines – a quebra de expectativa do final das piadas – absolutamente inesperadas atingem o estado da arte e nos levam, além das gargalhadas (claro, se você não for woke), à reflexão. Os outros especiais de Chappelle não são menos interessantes, mas nesses três ele parece estar determinado a mostrar ao mundo que os verdadeiros comediantes são, de fato, os last men standing no mundo do entretenimento. Aqueles que permanecem em pé, que não cederam ao patrulhamento e que, como eu disse em artigo recente, entendem e defendem que o humor é ficção, que a piada bem-feita é arte, e que a comédia stand-up exige muito estudo e muitos anos de treino.
Aliás, em episódio do meu podcast, o Noir, tive oportunidade de conversar longamente com o comediante Arthur Petry, um dos mais proeminentes da cena nacional, e falávamos exatamente sobre isso: o quão difícil é fazer stand-up; a dificuldade de entreter o público, de fazê-lo acompanhar o seu raciocínio até a punchline; como a falta de uma tradição de stand-up no Brasil – nos EUA, centenário berço do gênero, ele está profundamente entranhado na cultura – dificulta as coisas. Petry acredita que ainda levaremos décadas até que os comediantes brasileiros fiquem realmente bons como os americanos, que essa é uma construção lenta, um trabalho de paciência, de tentativa e erro, de aprimoramento constante. Mas isso só será possível se os comediantes tiverem o direito de errar, de fazer piadas ruins enquanto criam as boas. A necessária liberdade de que os comediantes brasileiros tanto precisam está sendo tirada deles antes que tenham tempo de se aperfeiçoar. Culpa, claro, de nossa tradição autoritária e tão refratária à liberdade – ainda que as viúvas da ditadura, à esquerda e à direita, digam ser seus mais ardorosos defensores.
Voltando a Chappelle e sua cruzada contra a censura, nesses especiais ele dobra a aposta contra a militância mais organizada, rica e politicamente influente no mundo atual, a LGBT. Não que ele tenha algo contra as escolhas e orientações sexuais das pessoas, mas ele percebeu que não se trata de defender uma minoria, mas de garantir poder. Ele diz, em Sticks & Stones – que o leitor me perdoe por escrever piadas sem o devido desfecho, mas o trecho me parece ilustrativo:
“A regra é que não importa o que você faça em sua expressão artística, você nunca, jamais, poderá perturbar... o povo do alfabeto. Você sabe a quem estou me referindo. Aquelas pessoas que pegaram 20% do alfabeto para si. Eu diria as letras, mas não quero evocar a raiva deles. Ah, agora é tarde demais. Estou falando sobre os L, os B, os G e os T. As pessoas ficariam surpresas; tenho amigos de todos os tipos de letras. Todo mundo me ama e eu amo todo mundo. Tenho amigos que são Lʼs; tenho amigos que são Bʼs; e tenho amigos que são Gʼs. Mas os T me odeiam completamente. E não os culpo; não é culpa deles. É minha. Não consigo parar de contar piadas sobre esses caras. Não quero escrever essas piadas, mas simplesmente não consigo parar! Você sabe, você ouve todas aquelas letras juntas o tempo todo. ʻLBGT, LBGTʼ, e acha que é um grande movimento. Não é. Cada uma dessas letras tem seu próprio movimento; eles apenas estão viajando juntos no mesmo carro.”
O que Chappelle está discutindo é a tentação que esses grupos têm de, em nome do combate às fobias relacionadas às suas “letras”, calarem a todos indiscriminadamente – sobretudo os comediantes, minando sua arte. E ele vai além: diz que isso não passa de privilégio branco. Durante o evento que lhe deu o Mark Twain Prize for American Humor, também disponível na Netflix, há um trecho de uma apresentação em que ele diz:
“A única razão pela qual todo mundo está falando sobre transgêneros é porque os brancos querem. [...] Se fossem apenas as mulheres que se sentissem assim, ou os negros, ou os mexicanos, e dissessem: ʻEi, nos sentimos meninasʼ. Eles diriam, simplesmente: ʻcala a boca, maluco. Ninguém perguntou como você se senteʼ. É isso mesmo, cheira a privilégio branco. Você nunca se perguntou por que foi mais fácil para Bruce Jenner mudar de sexo do que para Cassius Clay mudar sua porra de nome?”
Não se trata de incitar a violência ou promover discriminação, mas de evitar que, uma vez tolhida a liberdade de uns por algo que outros subjetivamente desaprovam, a sua própria liberdade não seja posteriormente tolhida por motivos que objetivamente não existem
Ou seja, ao mesmo tempo em que Chappelle faz e defende o direito de fazer piadas com o que quiser, ele discute a origem desse discurso censor e sua real intenção. Em The Closer, após dizer que os gays brancos “são uma minoria até precisarem ser brancos de novo”, ele traz à tona a emocionante (e trágica) história de uma comediante trans que ele conheceu e da qual ficou amigo, mostrando que não se tratava de ser preconceituoso, mas de ter liberdade de fazer arte com nossas desgraças, com o que nos constrange, e que a censura e o cancelamento são muito piores que as possíveis ofensas que as pessoas sentem com piadas. Não é sobre o conteúdo, mas sobre a forma.
E em seu discurso de aceitação do prêmio, ele diz: “Conheço uns comediantes que são muito racistas. Eu os vejo no palco e todo mundo está rindo, e eu fico tipo ʻhmm, tô entendendo o que esse filho da mãe quer dizerʼ. Não fiquem bravos com eles, não os odeie, vamos lá para cima tomar uma cerveja; e às vezes é até possível apreciar a arte com a qual eles pintam suas opiniões racistas. Cara, não leve isso tão a sério. A Primeira Emenda é a primeira por uma razão. E a Segunda Emenda só serve caso a primeira não funcione. Precisamos baixar um pouco a bola; o país está ficando um pouco complicado como nunca senti na minha vida”.
Chappelle sabe unir como ninguém reflexões profundas com a comédia mais politicamente incorreta possível, como quando, em Equanimity, seu especial de 2017, fala (e faz piada) sobre o caso de Emmett Till – garoto negro brutalmente assassinado, em 1955, no Mississippi, acusado de assobiar para uma mulher branca; ou dos casos de abuso sexual relacionados a Michael Jackson e R. Kelly. Ou mesmo quando trata, em The Dreamer, do famigerado tapa que Will Smith deu em Chris Rock durante a cerimônia do Oscar. Ele nos faz pensar e rir como nenhum outro comediante é capaz de fazer. Além de ser um excelente contador de histórias, ele sabe muito bem como criar o clima para a quebra de expectativa e nos tirar da zona de conforto. Em Sticks & Stones, a piada que ele faz sobre aborto deixou a plateia claramente sem saber o que fazer, se ria ou se reclamava. Um dos momentos mais geniais da comédia atual.
Chappelle foi homenageado pela escola em que se formou e com a qual contribui regularmente, a Duke Ellington Scholl of Arts. Eles queriam dar o seu nome ao auditório que tinha acabado de passar por uma reforma. Mas houve resistência dos alunos mais novos. Então ele aceitou ir até a escola, ouvir o que tinham a dizer e responder suas perguntas. Ele diz, em seu discurso – também está na Netflix:
“Da última vez em que estive aqui, depois de The Closer, quando os garotos estavam chateados comigo, devo dizer a vocês, foi um dia e tanto. A molecada estava gritando, e lembro-me de lhes perguntar: ‘OK, o que vocês acham que fiz?ʼ E formou-se uma fila. Falaram de tudo sobre gênero e isto e aquilo; mas não falaram nada sobre arte. E essa é a minha maior reclamação com toda essa controvérsia em torno de The Closer. Não se pode falar sobre o trabalho de um artista removendo as nuances artísticas de suas palavras. É como ler um jornal que diz: ʻHomem baleado no rosto por coelho de 1,82 cm está se recuperandoʼ; e pensarem: ʻMeu Deus!ʼ – sem se darem conta de que se trata de um episódio do Pernalonga.”
Ou seja, não se trata de ter o direito de fazer piadas ofensivas, mas do direito de tão somente fazer piadas; não se trata de usar o sofrimento alheio para fazer outros rirem, trata-se de usar o sofrimento alheio para ajudar a todos – inclusive aqueles aos quais as piadas se referem – a encararem e enfrentarem o sofrimento com humor. Não se trata de incitar a violência ou promover discriminação, mas de evitar que, uma vez tolhida a liberdade de uns por algo que outros subjetivamente desaprovam, a sua própria liberdade não seja posteriormente tolhida por motivos que objetivamente não existem .
Teremos sempre de lidar com malucos, com racistas, com homofóbicos, com machistas e todo tipo de calhorda que a vida produz. Mas só teremos condições de fazer isso corretamente se soubermos discerni-los no meio da multidão, e não condenando a todos a fim de criar um mundo de seres assépticos e acéfalos, cujas sensações são as únicas coisas que lhes restam. Que Deus nos proteja – e vida longa a Dave Chappelle!
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS