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“A caridade significa perdoar o imperdoável, ou, absolutamente, não é uma virtude. A esperança significa confiar quando não há mais o que esperar, ou não é virtude alguma. E a fé significa acreditar no inacreditável, ou não há de ser virtude.” (G.K. Chesterton)
“Quando os meus [filhos] eram bem pequenos, eu fazia uma brincadeira com eles: dava um graveto para cada um e os mandava parti-los. É claro que partiam com toda facilidade. Depois mandava-os atá-los num feixe e tentar parti-los. É claro que não conseguiam. Então, dizia a eles que o feixe era como a família.” (Alvin Straight)
Iniciei o artigo anterior dessa prazerosa série, que encerro hoje, dizendo que Uma História Real (The Straight Story), de 1999, poderia ser considerado o melhor filme de David Lynch, mas que “seria estranho, pois é um filme de David Lynch que parece ter sido dirigido por outra pessoa”, por seu enredo simples e linear. No entanto, quero iniciar esta coluna trazendo a ponderação bastante pertinente de Sissy Spacek (ela e seu esposo, Jack Fisk, são amigos de longa data de Lynch), que atua maravilhosamente no filme, dizendo o seguinte no depoimento colhido por Kristine McKenna em Espaço para sonhar: “As pessoas dizem: ʻAh, História Real é diferente, não faz parte de verdade do mundo de Davidʼ; mas quem o conhece sabe que o filme também é parte de quem ele é”.
O relato de Spacek vai ao encontro do que eu mesmo evidenciei, em outros artigos dessa série, de que todos aqueles que trabalham com Lynch exaltam sua imensa generosidade e seu carisma, e também a uma resposta óbvia que o próprio Lynch dá a Bobbie Wygant, numa entrevista, quando esta lhe pergunta se ele se ressente de pessoas dizendo que “esse não é um filme típico de David Lynch”. Ele diz: “Isso é absurdo, porque fui eu que fiz”. Dito isso, afirmo: Uma História Real é uma verdadeira obra-prima de David Lynch e um dos filmes mais sensíveis da história do cinema. E o que Richard Farnsworth faz nesse filme é algo tão extraordinário que é até difícil expressar em palavras.
Uma História Real é uma verdadeira obra-prima de David Lynch e um dos filmes mais sensíveis da história do cinema
O filme é baseado na história real de Alvin Straight, um homem de 73 anos, cheio de problemas de saúde, que decide viajar 390 quilômetros num cortador de grama (que chegava, no máximo, a 8 km/h), de Laurens (Iowa) a Mont Zion (Wisconsin), para visitar e se reconciliar com seu irmão mais velho, que acabara de sofrer um infarto. Trata-se de um road movie sensível e tem, como diz McKenna, “uma grandeza elegíaca”. Farnsworth, que faz o papel de Straight – sobrenome que significa correto, honesto e gera um belo trocadilho no título do filme –, tem uma atuação absolutamente brilhante e comovente. Com 78 anos à época, conseguiu traduzir de forma perfeita todos os sentimentos, conflitos e toda a sabedoria do complexo personagem. Lynch diz:
“Não lembro quando sugeriram o nome de Richard Farnsworth, mas ele imediatamente se tornou a pessoa certa. Richard nasceu para interpretar Alvin Straight, cada palavra que dizia soava verdadeira. Richard tinha inocência, e em parte foi por isso que o quis para o papel. Alvin Straight era como James Dean, só que velho – um rebelde que fazia as coisas à sua maneira, e Richard era assim. Na verdade, as pessoas não têm uma idade, porque a essência com a qual falamos não envelhece – é atemporal. O corpo envelhece, mas só isso muda.”
E, ao ser perguntado por Bobbie Wygant sobre se teve de orientar demais Farnsworth para obter o contexto emocional que ele alcançou no filme, Lynch respondeu: “Não. Tendo nascido para o papel, ele entendeu esse personagem, e meu trabalho foi somente tornar as coisas confortáveis, criar o clima e deixar isso fluir de Richard”. E repito, caríssimo leitor, o resultado é extraordinário!
Imagine um idoso, que sofre de diabetes, enfisema pulmonar e problemas nas articulações das pernas que o obrigam a usar duas bengalas, saindo de sua casa para viajar num desconfortável cortador de grama por centenas de quilômetros a fim de se reconciliar com o irmão. Só isso já é uma lição de vida absurda. E o modo como Lynch constrói o filme, acompanhando Straight em sua jornada e reproduzindo os encontros inusitados que teve pelo caminho, que são verdadeiras pérolas morais cheias de profundidade e beleza, é algo inesquecível. Num deles, o primeiro, Straight acampava num terreno na encosta da estrada, quando se aproxima uma garota pela qual ele passara mais cedo quando ela pedia carona. Ela se aproxima e diz: “ninguém parou”. Ele oferece à jovem comida (salsicha) e um cobertor, e ele logo advinha que ela havia fugido de casa por estar grávida. Ela diz: “Minha família me odeia, e odiará mais ainda quando descobrir”. Mas Straight diz: “Podem ficar muito bravos, mas não a ponto de quererem lhe perder ou ao seu pequeno problema”. Ela diz que não tem certeza disso, e ele emenda: “Também não tenho, mas uma cama quente e um teto me parecem bem melhores que um hot dog enfiado num espeto em companhia de um velho viajando num cortador de grama”. E completa contando a história de sua filha, Rose (Sissy Spacek, estupenda!), seus problemas familiares, e ilustra com a história da união dos gravetos que está na epígrafe desse artigo.
A história de Farnsworth também traz uma melancolia gloriosa ao filme. O ator lutava contra um câncer terminal nos ossos quando aceitou o papel de Alvin Straight. Sofria muito de dores e a parcial paralisia nas pernas do personagem é sua própria; mas não disse a ninguém o quanto sofria. Lynch afirma:
“Quando fizemos o filme, Richard tinha 78 anos e Freddie Francis [o diretor de fotografia] tinha quase 81, e eles fizeram mais do que acompanhar os outros – eles marcaram o ritmo. A saúde de Freddie tampouco estava muito boa e, embora ele tenha vivido outros oito anos, História Real foi seu último filme. Para Richard foi perigoso dirigir aquela coisa. Não era o mais seguro que havia, mas ele tinha quebrado muitos ossos como dublê e era muito corajoso, e foi rejuvenescendo à medida que avançávamos. É impressionante o que ele fez. Ninguém imaginava quanta dor ele sentiu durante as filmagens – ele guardou isso para si. Era um caubói.”
As histórias de Alvin Straight e Richard Farnsworth se confundem. Pois digo que os dois são unidos pela mesma virtude, a Fortaleza
Farnsworth foi indicado ao Oscar pelo papel de Straight e, meses depois, em 6 de outubro de 2000, se suicidou em sua pequena fazenda, em Lincoln, no Novo México. Lynch afirma: “Richard foi conosco a Cannes [tanto ele quanto o filme foram indicados] conosco, e voltou para o seu sítio quando a poeira de História Real baixou. Um ano depois, talvez, ele se foi. Pensou: Quando achar que amanhã não poderei mais mover os braços vou fazer isso, e fez. Ele se matou com um tiro. É realmente uma história de caubói”.
As histórias de Straight e Farnsworth se confundem, e o ator disse de seu personagem: “Alvin é um exemplo de fortaleza e determinação”. Pois digo que os dois são unidos pela mesma virtude, a Fortaleza, já abordada por mim em outras ocasiões nesta Gazeta do Povo. O filósofo Josef Pieper, em Virtudes Fundamentais, diz que “a Fortaleza implica vulnerabilidade; sem essa vulnerabilidade não existe sequer a possibilidade de fortaleza. Um anjo não pode ser forte, porque não é vulnerável. Ser forte significa ter a capacidade para receber um ferimento. O homem pode ser forte porque pode ser ferido (...). O homem forte não aceita o sofrimento em si mesmo, mas, na medida em que, através dele, se propõe conservar ou alcançar uma incolumidade essencial mais profunda”. Ou seja, o sofrimento para o forte [Aristóteles se traduz por coragem] é um meio de atingir um bem maior.
Óbvio que, no caso de Farnsworth, que se suicidou, toda uma discussão vem à tona sobre o fato de ele ter, digamos, sucumbido. Dietrich Bonhoeffer, em sua Ética, diz: “Será difícil convencer uma pessoa que, na luta com o destino, perdeu sua honra, seu trabalho, a única pessoa amada e cuja vida com isso foi destruída, de não fazer uso dessa possibilidade, desde que lhe tenha sobrado a coragem para este ato de sua liberdade e vitória. Não há como negar que o ser humano, com este gesto, joga e faz valer mais uma vez sua humanidade – mal-entendida, talvez – contra o destino cego e desumano. O suicídio é um ato especificamente humano, e não é nada entranho que, como tal, tenha recebido, sempre de novo, apoio e justificação por pessoas de nobre espírito”. No entanto, complementa dizendo: “Se, apesar disso, temos de falar do caráter condenável do suicídio, isso não acontece diante do tribunal da moral ou dos seres humanos, mas apenas diante daquele de Deus. O suicida torna-se culpado apenas diante de Deus, o criador e Senhor da vida”.
Não quero com isso, obviamente, justificar a decisão de Farnsworth de tirar a própria vida, mas dizer que não nos cabe esse julgamento porque nem mesmo a Bíblia o faz, mas nos chama à reflexão de “que este [o suicídio] sempre de novo (ainda que não exclusivamente) aparece como consequência de grave pecado” e chama “o desesperado para a graça e a penitência”. Mas digredi demais. O que nos importa aqui, atento leitor, é exaltar a entrega total de Farnsworth no papel de Alvin Straight – que assinou um contrato para receber pela sua história, mas morreu antes de o filme ser terminado – e a genialidade de Lynch por contar essa história maravilhosa. A trilha sonora de Angelo Badalamenti é, como sempre, um espetáculo à parte, e nos guia em todas as emoções protagonizadas por Farnsworth, Sissy Spacek, Harry Dean Stanton – que faz o papel de Lyle Straight, irmão de Alvin, e, numa única aparição, ao final, dá um show – e um elenco muito talentoso que fazem desse filme uma obra-prima única de David Lynch, que nos arranca lágrimas de emoção e contentamento.
Por fim, os cinéfilos poderão objetar: “não vai falar de Twin Peaks?” Porém, meus caros, de certo modo, já falei. Twin Peaks é simplesmente a epítome de tudo o que foi dito nesses seis artigos. O magnum opus de David Lynch tem absolutamente tudo o que os demais filmes têm, elevado a uma potência de brilhantismo e genialidade ímpares. Outros filmes excepcionais, como O Homem Elefante e Império dos sonhos (seu último longa), também ficaram de fora. No entanto, penso que consegui, nessa minha curta jornada pessoal através de alguns de meus filmes preferidos de Lynch, transmitir minha admiração por esse grande diretor e estimular quem me lê a ter contato com sua obra ou, aos que já têm, retornar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos