“A vida psíquica imediatamente acessível, realmente vivida, é como a espuma que boia sobre as profundezas do mar.” (Karl Jaspers)
“A sexualidade humana é fatalmente colocada nesta alternativa: ou controla e sobreleva pelo amor o espírito, ou prostitui pelo pecado do espírito.” (Gustave Thibon)
No artigo da última semana, o primeiro da série de artigos sobre o cineasta David Lynch, decidi começar pelo começo e apresentar uma breve reflexão sobre seu primeiro longa-metragem, o catártico Eraserhead. Entretanto, por força das circunstâncias e diante da máxima que sempre gosto de repetir – escolher é excluir –, terei de, tão somente, recomendar ao cinéfilo leitor que procure pelas plataformas de streaming os excelentes O Homem Elefante, que tem, em sua realização, a presença e incentivo de ninguém menos que o lendário Mel Brooks e sua produtora; e Duna, a filmagem frustrada e cheia de percalços do livro de Frank Herbert, que acabou de ganhar uma nova versão, pois não tratarei deles. Quero concentrar-me naqueles que considero os filmes mais desconcertantes de Lynch, a começar da obra-prima Veludo Azul (Blue Velvet), de 1986.
Foi em Veludo Azul que vi pela primeira vez a perversão sexual sendo tratada de modo tão cru e violento. Eu não esperava por aquilo e me senti profundamente incomodado. Mas, de certo modo, como tudo em David Lynch, não consegui desviar o olhar de toda aquela barbárie sádica perpetrada por Frank Booth, vivido brilhantemente por Dennis Hopper, recém-saído de uma clínica de reabilitação para viciados em drogas. Aliás, por esse motivo houve certo receio em relação à contratação de Hopper para o papel, e mesmo seu agente achava que tal personagem poderia não repercutir bem para a reconstrução de sua imagem, profundamente desgastada por conta de tantos percalços pessoais. Mas a resistência se quebrou quando o próprio Hopper ligou para Lynch e disse: “Tenho de interpretar Frank Booth porque eu sou Frank Booth”. E Lynch diz: “Respondi que aquilo era uma boa e uma má notícia. Não tive dúvidas em contratá-lo”. E complementa: “Dennis foi Frank desde o primeiro instante”.
Foi em Veludo Azul que vi pela primeira vez a perversão sexual sendo tratada de modo tão cru e violento. Eu não esperava por aquilo e me senti profundamente incomodado
O personagem de Dennis Hopper é definitivamente odioso e, certamente, um dos grandes vilões da história do cinema. Ele é mau num sentido quase absoluto, e sua maldade é levemente contrastada numa cena em que ele chora, visivelmente sensibilizado (Hopper, genial!) com a apresentação de Dorothy Vallens, personagem – do qual falarei abaixo – da belíssima Isabella Rossellini, cantando a canção-título, Blue Velvet, de Bobby Vinton. A sinopse deixo, mais uma vez, com Kristine McKenna, amiga e biógrafa de Lynch, em Espaço para sonhar:
“Os detalhes da narrativa de Veludo Azul são muito simples. O estudante universitário Jeffrey Beaumont, interpretado por Kyle McLachlan, regressa à sua cidade natal quando o pai adoece, encontra uma orelha amputada num gramado, tenta decifrar o mistério que a colocou lá e é confrontado pelo mal em estado puro de Frank Booth, interpretado por Dennis Hopper. No caminho aventura-se por um mundo proibido de erotismo que até então desconhecia. A maioria das pessoas nunca topa com um conjunto de circunstâncias que as leva a conhecer as complexidades ocultas da própria sexualidade. Três dos quatro personagens principais de Veludo Azul – Jeffrey, Dorothy Vallens e Frank Booth – descobrem as suas.”
Dorothy Vallens é uma cantora cuja família foi sequestrada por Frank Booth, e este a chantageia muito violentamente com espancamentos e estupros. A primeira cena em que os dois se encontram é antológica e desconcertante, e Rossellini lembra que, sendo seu segundo trabalho como atriz e sabendo da fama de Hopper, foi um desafio e tanto – que ela não só cumpriu competentemente como se superou. Como diz McKenna: “Rossellini foi muito além de dar conta, e teve uma interpretação intensa, equiparável, em todos os aspectos, à do vulcânico Hopper, de quem, no início, se aproximou com temor”. Numa cena, Vallens senta-se numa cadeira com um robe de veludo azul, com as pernas abertas, e um psicótico Booth senta-se no chão, em frente a ela, ávido por tocá-la. Mas tem um detalhe: Rossellini deveria estar sem calcinha, a fim de não correr o risco de que a peça aparecesse na cena. Ela conta, de forma jocosa: “Naquela cena, tinha de me sentar diante de Dennis e abrir as pernas, ele se inclinava e olhava minha vagina, como num culto maluco [...]. Depois ele me esmurrou e caí, mas quando caí para trás o penhoar se abriu e se podia ver que eu estava sem calcinha. David me pediu para tirá-la e eu disse a Dennis, ʻsinto muito, mas me pediram para tirar a calcinha porque ela aparece quando caio para trásʼ. No primeiro ensaio ele se inclinou, olhou a minha vagina e eu disse ʻSinto muitoʼ, ao que ele me fitou e respondeu: ʻjá vi isso antesʼ. Aquilo me fez rir, e nesse instante percebi que ele gostava de mim”.
Booth é um sádico perverso. Sigmund Freud, em sua definição de perversão, toma cuidado para delimitar bem o seu caráter patológico, uma vez que, segundo ele, “a experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade”. Ou seja, todo mundo é um tanto perverso quando se trata de sexualidade. No entanto, “na maioria dos casos podemos encontrar o caráter patológico da perversão, não no conteúdo do novo alvo sexual, mas em sua relação com a normalidade. Quando a perversão não se apresenta ao lado do alvo e do objeto sexuais normais, nos casos em que a situação é propícia a promovê-la e há circunstâncias desfavoráveis impedindo a normalidade, mas antes suplanta e substitui o normal em todas as circunstâncias, ou seja, quando há nela as características de exclusividade e fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la como um sintoma patológico”.
De fato, há muita subjetividade no conceito de perversão, pois, para aqueles que, por exemplo, consideram somente a relação sexual para procriação como normal, qualquer outra finalidade ou variação do ato será considerada perversão. No entanto, a perversão de Booth é inequívoca, pois é fruto de sua maldade; ele é, antes de qualquer coisa, um homem mau. Grita o tempo todo, diz palavrões aos berros e sente prazer em espancar pessoas. Anda com uma máscara de oxigênio que ele aspira freneticamente – o que dá um aspecto ainda mais assustador à sua figura. Seus comparsas são tão sádicos e violentos quanto ele (Jack Nance, o protagonista de Eraserhead, é um deles).
(Contém spoilers)
O jovem curioso (que também se revela um voyeur) Jeffrey Beaumont, vivido por aquele que Lynch considera “uma espécie de americano total”, Kyle McLachlan – que havia trabalhado em Duna e seria o enigmático agente especial Dale Cooper, de Twin Peaks –, encontra uma orelha decepada num matagal, após retornar do hospital onde foi visitar o seu pai, que sofrera um mal súbito enquanto regava o jardim. A propósito: a cena inicial do filme, com um homem caindo na grama segurando uma mangueira ligada e um cão – o amado Sparky, animal de estimação de Lynch, “atuando” em seu hobby preferido – mordendo a água, é espetacular.
A perversão de Booth é inequívoca, pois é fruto de sua maldade; ele é, antes de qualquer coisa, um homem mau
Jeffrey, ao levar a orelha à polícia, conhece o detetive Williams e sua filha, a inocente e angelical Sandy Williams, personagem de Laura Dern – em seu primeiro filme de uma parceria com Lynch que renderia atuações brilhantes como em Coração Selvagem (Wild at Heart), Império dos Sonhos (Inland Empire) e na mais recente temporada de Twin Peaks. Jeffrey resolve bancar o detetive e convida Sandy, que ouvira algo sobre a ligação entre a orelha e uma cantora de boate, para acompanhá-lo. Sua curiosidade o leva à casa de Dorothy Vallens, onde ele presencia, escondido num armário, o estupro de Dorothy por Frank Booth. Ele acaba sendo descoberto por ela e descobre que ela é uma vítima, digamos, peculiar: é masoquista. Jeffrey se envolve com ela e com toda a confusão que envolve esse terrível caso de sequestro, violência e sexo.
Sobre o roteiro, Lynch diz:
“Não gostei da canção Blue Velvet quando foi lançada. Não é rock nʼ roll, e ela saiu quando nasceu o rock nʼ roll, que é onde estava o poder. Blue Velvet era tão melosa que não me disse nada. Mas uma noite ouvi a música e ela casava perfeitamente com gramados verdes à noite e os lábios vermelhos de uma mulher vistos da janela de um carro – havia uma espécie de luz forte naquele rosto branco e nos lábios vermelhos. Essas duas coisas, e as palavras ʻe ainda posso ver o veludo azul através das lágrimasʼ. Isso me impulsionou e tudo se encaixou. Se um personagem surge e você é o único escritor por ali, ele meio que se apresenta e você o conhece. Depois começa a conversar e você se aprofunda, e a aí aparecem coisas surpreendentes, porque todos somos uma mescla do bem e do mal. Quase todo mundo traz um monte de coisas por dentro, e acho que a maioria das pessoas não tem consciência de suas partes sombrias. Elas se iludem e todos achamos que somos legais e os outros estão errados. Mas as pessoas têm desejos. Como diz o Maharishi, é do ser humano sempre querer mais, e esse desejo o traz de volta. No final, todos acabam encontrando seu caminho [...] Uma parte importante de Veludo Azul me apareceu num sonho, mas só me lembrei dele muito tempo depois de ter acordado [...]. Escrevi duas coisas do sonho: um rádio de polícia e uma arma. Foi o suficiente.”
Os filmes de Lynch têm essa característica, de serem regados de conteúdos menos intelectuais que sensoriais, envolvidos em muitas camadas de imagens que só encontram eco em nosso subconsciente. Diz McKenna: “Se Lynch compreendesse totalmente a história – e quisesse que a audiência ligasse facilmente os pontos –, não teria o impulso de filmá-la. Ele prefere operar na brecha misteriosa que separa a realidade cotidiana do campo fantástico da imaginação e do desejo humanos, e busca o que desafia as explicações e o entendimento. Quer que seus filmes sejam sentidos e experimentados, mais do que compreendidos”. E é exatamente nisso que a genialidade de Lynch flui maravilhosamente bem, pois ele não tem medo de deixar sua imaginação seguir por caminhos que não são racionais; ele é alguém atento ao mistério e ao onírico. E tudo é envolvido numa atmosfera de obsessão erótica que é, de fato, uma fonte de energia e manipulação humanas poderosíssima. Lynch afirma: “Certos aspectos da sexualidade são perturbadores – o fato de ser usada como poder, ou como adquire a forma de perversões que exploram outras pessoas. O sexo é uma porta para algo muito poderoso e místico, e os filmes costumam descrevê-lo de um modo completamente raso. Ser explícito tampouco toca o seu aspecto místico. É difícil representá-lo na tela porque o sexo é algo misterioso”.
Lynch não tem medo de deixar sua imaginação seguir por caminhos que não são racionais; ele é alguém atento ao mistério e ao onírico
Não poderia deixar de destacar a trilha sonora absolutamente genial de Angelo Badalamenti, em sua primeira de muitas parcerias com Lynch, como em Twin Peaks, Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos. Em Veludo Azul, Badalamenti fez Isabella Rossellini cantar. Ela mesma confessa que é desafinada, mas o trabalho que fez com ela, realçando frases, notas, dicção, alterando o arranjo, tornou a música etérea e sedutora. A ainda a curiosíssima história sobre a música Mysteries of Love. É McKenna que nos conta: “A colaboração de ambos começou com a letra que Lynch escreveu em um guardanapo para a canção Mysteries of Love, que se ouve no filme. ʻum dia Isabella chegou com um pedacinho de papel amarelo – eu o emoldurei – que dizia: Mysteries of Love e era a letra de uma canção do punho de Davidʼ, explioca Badalamenti. ʻOlhei aquilo e pensei, mas é horrível, que diabos vou fazer com isso? Não é uma canção. Liguei para David e perguntei: Isabella me deu a letra que você escreveu; que tipo de música você imagina para isso? Ele disse: Faça-a flutuar e faça-a infinita, como as marés do oceano à noite. Então sentei ao piano e compus a música Mysteries of Loveʼ”. E, de fato, Badalamenti fez um verdadeiro milagre, pois é uma música belíssima, tocada quando Jeffrey e Sandy revelam sua paixão mútua.
Ainda algo sobre a perversão e a figura desconcertante de Frank Booth – que podemos considerar o personagem central da trama –: o filósofo Roger Scruton tem uma explicação interessantíssima sobre o tema. Em seu no mínimo curioso Desejo Sexual – Uma investigação filosófica, Scruton fala sobre a distinção entre uma pessoa humana normal e uma cujo desejo encontra em estado de perversão. Diz ele:
“A pessoa humana é um artefato humano, o produto da interação social que ela também produz. Ela só pode existir nas condições que permitam o surgimento de uma perspectiva em primeira-pessoa – em outras palavras, somente quando ligada às práticas linguísticas públicas que dão sentido ao conceito de ʻeuʼ. Ela é, portanto, um ser social por natureza, não apenas no sentido de ser feito para a sociedade, mas no sentido mais forte de ser feito pelasociedade. Por isso, devemos contar entre os seus motivos mais importantes as atitudes interpessoais que expressam seu reconhecimento de sua natureza social [...]. Uma pessoa que não as tem está, em um sentido real, ʻdespersonalizadaʼ. Em outras palavras, essas atitudes são elementos da natureza humana normal, e a falta delas é desviante (se houver alguma base para a ideia de um ʻpsicopataʼ, está nesta falta de resposta interpessoal). É este fato que torna útil a introdução de um conceito de perversão em nossa descrição do desejo humano.”
É isso que Frank Booth é, um ser despersonalizado, quase o não homem, personagem demoníaco de C.S. Lewis em Perelandra. Ao fim, a virada jubilosa põe ordem às coisas, e o bem vence, pelo menos por algum momento, o mal – até que ele retorne, de novo personificado, em Coração Selvagem, nossa próxima incursão lynchiana.
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