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No teaser de seu especial de humor, Tiago Santineli ordena a mortre, a pauladas, de um personagem sósia de Luciano Hang.
No teaser de seu especial de humor, Tiago Santineli ordena a mortre, a pauladas, de um personagem sósia de Luciano Hang.| Foto: Reprodução / YouTube

“Por isso, se estás, realmente, interessado em nossa discussão e desejas repô-la em seus devidos termos, retoma, como disse há momentos, a questão que bem te parecer e, ora perguntando, ora respondendo, como fizemos eu e Górgias, refuta-me ou deixa-te refutar.” (Platão, Górgias)

A concepção antiga de democracia, fundamentada em Platão e Aristóteles, era a de que o “governo do povo” não era um bom governo. Para Platão, a democracia era potencialmente corrupta e propensa a se tornar uma tirania. Já para Aristóteles, poderia evoluir para a demagogia. Diz ele, em sua Política:

“Nos governos democráticos onde a lei é senhora, não há demagogos: são os cidadãos mais dignos que têm precedência. Mas uma vez perdida a soberania da lei, surge uma multidão de demagogos. Então o povo se transforma numa espécie de monarca de mil cabeças: é soberano não individualmente, mas em corpo [...]. Um povo tal, verdadeiro monarca, quer reinar como monarca; livra-se do jugo da lei e torna-se déspota: o que faz com que os aduladores aí sejam respeitados. Essa democracia é, no seu gênero, o que a tirania é para a monarquia. De ambas as partes, a mesma opressão dos homens de bem; aqui, os decretos; lá, as ordens arbitrárias.”

Na modernidade, sobretudo a partir da Revolução Francesa e com as contribuições de Rousseau, Montesquieu e John Locke, a democracia torna-se representativa – o povo escolhe os seus representantes – e liberal, em que a proteção de direitos fundamentais, como liberdade e propriedade, e a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) são pilares.

Platão estava certo ao afirmar que uma sociedade perfeita “terá de ser, por conseguinte, sábia, valente, temperante e justa”, e que tais virtudes só seriam possíveis se estivessem refletidas tanto nos governantes quanto nos cidadãos

Na concepção antiga (e medieval), a ideia de governo estava centrada na virtude do governante, ou seja, um governante é aquele cujas qualidades pessoais são o reflexo e refletem as qualidades da própria. Diz Platão, na República:

“[...] o homem justo em nada diferirá da cidade justa, no que diz respeito ao conceito da justiça, mas terá de ser semelhante a ela [...]. E a cidade se nos afigurou justa quando as três classes que a compõem, diferentes por natureza, desempenham independentemente suas atividades: será temperante, corajosa e sábia, graças a certas disposições e qualidades correspondentes a essas mesmas classes [...]. Do mesmo modo, caro amigo, teremos de considerar o indivíduo: deve ter na alma precisamente esses três gêneros de qualidades, razão de merecer o mesmo nome que a cidade, visto comportarem-se ambos do mesmo modo.”

A política moderna ainda sofrerá o influxo de Maquiavel e daquela perspectiva prática do poder e da ordem, na qual o Príncipe, vendo que os homens “são geralmente ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de lucro”, deve fazer-se antes temido que amado. E, ainda, “o príncipe deve, todavia, fazer-se temer de modo que, se não conquista o amor, evite o ódio; pois ser temido e não odiado podem muito bem associar-se”. A visão do governante maquiavélico é daquele cuja virtude (virtù) pode ser tirânica, desde que busque o bem da sociedade. Os exemplos que temos na história não nos fazem boas impressões desse modo de governar.

Dito isso, ainda que não tenhamos, atualmente, em nosso país, nem uma coisa nem outra – nem a concepção maquiavélica, tampouco a clássica –, mas uma lógica de patrimonialismo e corrupção que nos empurra sempre mais e mais para a periferia civilizacional, é impossível não perceber que Platão estava certo ao afirmar que uma sociedade perfeita “terá de ser, por conseguinte, sábia, valente, temperante e justa”, e que tais virtudes só seriam possíveis se estivessem refletidas tanto nos governantes quanto nos cidadãos. A educação, pilar de uma sociedade, quando não é voltada para desenvolver a prudência, a fortaleza e temperança e a justiça – virtudes cardeais já analisadas por mim nesta Gazeta do Povo –, será uma sociedade fadada ao fracasso.

E uma das maiores evidências de uma sociedade doente, sem virtudes, é a incoerência, é a maneira como as pessoas, para obter vantagens – sociais, políticas, financeiras etc. –, traem um dos valores mais fundamentais de uma sociedade saudável, que é, em termos filosóficos, sustentar que minhas atitudes e posições são verdadeiras “enquanto pertencem a um sistema de crenças, proposições, juízos, compatíveis entre si, preservando portanto a consistência e a integridade do sistema” (Marcondes e Jupiassú, Dicionário Básico de Filosofia). Ou seja, coerência tem a ver com integridade, com compatibilidade e, ao fim e ao cabo, com verdade. Uma sociedade fundamentada na incoerência é uma sociedade fundamentada na mentira.

Até é possível compreender que, no ambiente caótico da internet, das redes sociais, pessoas comuns ajam com incoerência, pois, pela pouca influência que têm, não se sentem propriamente responsáveis pelo que dizem. Entretanto, quando a incoerência vem daqueles que deveriam ser exemplo, daqueles que influenciam (influencers), temos um grave problema. Primeiro porque, como diz o ditado, “a palavra convence, mas o exemplo arrasta”; e se a incoerência gera uma quebra de confiança, tornamo-nos uma sociedade de suspeitos. E uma sociedade de suspeitos é, também, uma sociedade de juízes. E uma sociedade de juízes é uma sociedade onde impera a tirania hobbesiana de todos contra todos. Ninguém escapa. Numa sociedade como essa, a humildade, a consciência das próprias limitações é sinal de fraqueza.

Uma sociedade fundamentada na incoerência é uma sociedade fundamentada na mentira

Nesse sentido, o pensamento ideológico é uma das maiores fontes de incoerência, pois sendo as ideologias, segundo Andrei Pleșu – numa definição amplamente difundida nesta coluna –, “construções rápidas de ideias, surgidas de um interesse privado ou de grupo e tendo como escopo a modificação da mentalidade pública, das instituições da vida social”, elas “não estão preocupadas em encontrar e expressar a verdade por seu valor de verdade. O que lhes interessa é confeccionar uma verdade utilizável. Em outras palavras, ʻa verdadeʼ não é, para o ideólogo, senão um instrumento manipulador, um dispositivo apto a servir, funcionalmente, um interesse político determinado e um projeto de ação”. Um ideólogo é, portanto, um dos maiores desagregadores sociais da vida moderna e, atualmente, um de seus tentáculos mais mortíferos – e também sua maior armadilha – é a cultura do cancelamento. Tentáculos porque é um meio inescrupuloso para atingir um fim, e armadilha porque o agente de um cancelamento é, sempre e invariavelmente, um cancelado em potencial. Não há como escapar, uma vez que todos cometemos erros. Um exemplo recente me parece ser categórico.

Tiago Santineli, um YouTuber e comediante de esquerda que se notabilizou por fazer reacts sobre situações que envolviam o governo Bolsonaro, é, como todo militante, um cancelador contumaz. Adora tripudiar de desafetos, rotular discordantes e posar de virtuoso impoluto. Recentemente, criou um teaser para seu próximo show de stand-up, no qual simula o assassinato de uma pessoa vestida como um “patriota” à la Luciano Hang, o famigerado “veio da Havan”. Curiosamente, utiliza como “feitor” o rapper Djonga, outro militante que se notabilizou pela odiosa frase “fogo nos racistas”. Ou seja, um combo de violência “do bem”, de ódio ideológico. E, como diz o filósofo Gabriel Liiceanu, na cabeça de um ideólogo tal ódio é perfeitamente legítimo, pois “já não se odeia uma pessoa isolada, odeia-se uma pessoa como agente de uma categoria”. Santineli profere os impropérios e as palavras de condenação, e Djonga, o negro feitor, desfere golpes com um taco de beisebol na cabeça do “patriota”. Curiosamente, o vídeo, com esse nível de violência, continua no ar – não foi alcançado por nosso intransigente Judiciário.

Mas Santineli não contava com a sanha do cancelamento se voltando contra si. Não demorou muito para encontraram, em seu Twitter, postagens de dez anos atrás desferindo xingamentos racistas e xenófobos; fazendo piadas com judeus e negros. E o melhor é o plot twist de ter usado Djonga, o rapper que quer botar “fogo nos racistas”, como agente de violência em seu clipe. Agora os dois estão sendo cobrados pelo tribunal da internet. O “fogo” de Djonga pegou seu senhor. A desculpa esfarrapada do sujeito foi dizer que, à época, ele ainda era crente e, por isso, preconceituoso. Não colou. Depois correu para apagar não só os tuítes antigos, mas todos os de 2023. Ou seja, dois ávidos canceladores sofrendo as consequências de sua incoerência e dando um exemplo de como nossa sociedade está doente. Se isso nos servir de lição, a democracia respirará, mas confesso minha pouca esperança. No entanto, eu, que penso que ninguém deve ser cancelado por nada, não deixo de me divertir quando tipos como esses experimentam uma dose consistente do próprio veneno.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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