“The Gulf Stream”, de Winslow Homer.| Foto: Metropolitan Museum of Art

Entretanto, a revolta nos países atrasados encontrou uma resposta nos países adiantados […] É a revolta contra os falsos pais, falsos professores e falsos heróis, solidariedade com todos os infelizes da Terra […] Parece tratar-se de uma solidariedade quase instintiva. A revolta interna contra a própria pátria parece sobretudo impulsiva, suas metas difíceis de definir: náusea causada pelo sistema de vida, revolta como uma questão de higiene física e mental. O corpo contra a máquina […] que sobrepujou o mecanismo: a máquina política, a máquina dos grandes negócios, a máquina cultural e educacional que fundiu benesses e maldições num todo racional. (Herbert Marcuse, Eros e Civilização)

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A imagem que ilustra esse artigo – A corrente do golfo, de Winslow Homer – foi usada pelo crítico cultural americano Roger Kimball, em seu livro The rape of Masters – How political correctness sabotages art, como exemplo da degradação ideológica da crítica de arte. Kimball elenca algumas afirmações de críticos que vale a pena reproduzir aqui, a fim de iniciarmos nossa conversa.

De acordo com Albert Boime, professor de história da arte na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, a pintura de Winslow Homer é “uma alegoria da vitimização do homem negro no final do século XIX”. E prova o seu ponto dizendo que, quando o quadro foi pintado, em 1899, negros eram linchados na América. Kimball acrescenta: “Tem mais a ver com 'a história da escravidão nas Índias Ocidentais' e com as 'ambições imperialistas americanas' do que com o esforço de Homer para capturar uma cena do Caribe. Eu pensava que a interpretação do professor Boime era bem extrema – na verdade, eu achava ridícula. Continuo achando”. Mais estapafúrdias ainda são as “análises” de Peter H. Wood, professor de história na Universidade de Duke. Diz Kimball:

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Eu mencionei um artigo sobre Homer, escrito pelo Professor Wood, em The Rape of the Masters, mas agora ele escreveu um livro inteiro sobre o assunto: Weathering the Storm: Inside Gulf Stream de Winslow Homer (2004). Homer descreve uma tempestade em sua pintura? De acordo com o professor Wood, “no coração dessa tempestade estava a privação de direitos dos negros”. Há alguma corda no convés do barco que Homer pintou? Pense no laço, pense em linchamento, pense no “potente emblema de ameaça e intimidação”. Há uma onda quebrando à curta distância? “Como a corda”, a onda tem “conotações de violência racial”. E a “iminente crista da onda esbranquiçada”? O significado da palavra 'terra seca', segundo o professor Wood, “está associado... com questões de relações raciais ”.

Tudo isso tendo o registro do próprio Winslow Homer que, questionado, através de seu negociante, por algumas mulheres interessadas em suas “explicações” sobre a pintura, respondeu: “O assunto desta pintura está em seu título […] O barco e os tubarões estão fora, são questões de pouca importância. Eles foram levados para o mar por um furacão. Podes dizer a essas senhoras que o infeliz negro, que agora está tão aturdido e escaldado, será resgatado e devolvido aos amigos e ao lar, e depois viverá feliz”.

Esse modelo de crítica, que busca encontrar o que está “por detrás” das evidências, é fundamentalmente baseado no politicamente correto. Mas não apenas no sentido dessas manipulações pernósticas nas realizações ou interpretações de obras de arte – que poderiam muito bem ser ignoradas –, mas num propósito muito maior. Segundo Kimball:

O efeito mais profundo do politicamente correto não se mostra nas filiações particulares reivindicadas por um historiador da arte (feminismo, marxismo, psicanálise etc.), mas sim no esforço determinado de subordinar a arte a uma agenda não artística. É aqui que a correção política causa o maior estrago. Substituindo o ideológico pelo visual, ele reduz a arte a um suporte em um drama essencialmente não-estético ou extra-estético.

Nesse sentido, a crítica não é feita com intuito de analisar a obra em si mesma, mas a fim de construir uma narrativa na qual a arte é apenas um veículo, um hospedeiro de uma ideologia: “os imperativos do politicamente correto ditam não apenas uma biblioteca específica de obsessões, mas também uma maneira específica de lidar ou expressar essas obsessões […] Aplicado ao tema da história da arte, o resultado é muitas vezes indistinguível de loucura, pornografia ou alguma combinação tóxica dos dois”. Os fins políticos a que se destinam tais manipulações estão muitas vezes associados, como diz o próprio Kimball em Radicais nas Universidades, ao multiculturalismo, “a ideia de que todas as culturas são igualmente valiosas e, portanto, preferir uma cultura, uma herança cultural ou uma ordem moral e social à outra é ser culpado de etnocentrismo e racismo”. Isso remete aos objetivos dos intelectuais da chamada Escola de Frankfurt – como Herbert Marcuse, que, como descrito na epígrafe deste artigo, desejava fomentar a revolta contra as instituições do Ocidente. Numa espécie de julgamento das nações, os ideólogos do politicamente correto – que adoram negar que ele existe – “representam […] uma guerra sobre o conteúdo e a forma de nossa cultura, sobre nossa compreensão compartilhada daquilo que os gregos chamavam de 'boa vida para o homem'. O 'estupro dos mestres' na história da arte é parte do que eu descrevo como um processo de des-civilização”.

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Mas, afinal de contas, o que é o politicamente correto?

De acordo com Michael William, em seu livro The genesis of political correctness – The basis of a false morality, o politicamente correto é o “mecanismo para a imposição da ideologia neomarxista”. Ao contrário da ideologia marxista pura, baseada na crítica econômica, a ideologia neomarxista “é focada na cultura e em [pseudoconceitos como] raça, feminismo e direitos gays (sic) em particular. Também se opõe firmemente à nacionalidade, pelo menos no que diz respeito aos países ocidentais, e aos de língua inglesa em particular”. De acordo com o condecorado político e ex-Ministro da Defesa neozelandês Dr. Wayne Mapp, citado por William:

O politicamente correto baseia-se na captura de instituições do Estado, com porta-vozes oficiais, poderes legislativos e, finalmente, sanções por violação. Sem essas características, as atitudes e crenças do politicamente correto seriam apenas outro ponto de vista da sociedade, podendo ser debatidas e discutidas da mesma maneira que qualquer outro conjunto de ideias. A correção política exige a captura de instituições do Estado por uma minoria, de modo que as “instituições públicas que lidam com a discriminação tenham sido tomadas por pessoas que estão fora dos valores tradicionais.

Ou seja, é uma espécie de hidra que se espalha pelas instituições a fim de destruí-las desde dentro. E uma das primeiras vítimas do politicamente correto são as universidades, pois é onde se desenvolveram e desenvolvem todas as teorias que visam a mobilização de uma militância poderosa e descentralizada, com o foco na crítica contumaz, em várias frentes, da cultura e da política ocidentais. De acordo com Roger Kimball, “a muito discutida controvérsia sobre a tentativa de aplicar o pensamento 'politicamente correto' nos campi americanos, em nome da 'diversidade' e de uma virtude elevada, por exemplo, sublinhou a extensão em que a educação superior foi transformada em uma espécie de doutrinamento ideológico – uma continuação da política por outros meios. A política em questão é a da vitimização”. Os efeitos disso nós já vemos aqui mesmo, no Brasil, com coletivos universitários usando e abusando da prerrogativa de que tudo aquilo que é inaceitável para os padrões vigentes – padrões sociais consolidados pelo tempo, por uma tradição – adquire licitude por transgredir com a moralidade castradora de uma cultura supostamente racista, misógina, homofóbica e patriarcal. Se tais absurdos permanecessem circunscritos ao ambiente acadêmico, tudo bem. O problema é que tais sandices buscam legitimidade na política, através de leis voltadas a grupos identitários.

Desse modo, como afirma  o dr. Mapp, “uma minoria, portanto, passou a dominar a maioria, o que é uma característica inerente ao politicamente correto. Isso não é feito com a intenção de proteger os direitos das minorias, que é um aspecto legítimo de qualquer democracia. Em vez disso, a intenção é garantir que as visões de mundo minoritárias [muitas vezes estranhas e reprováveis] tenham precedência sobre as opiniões razoavelmente mantidas da maioria”. E, baseados nos famigerados conceitos marxistas de opressor e oprimido, os ideólogos do politicamente correto conseguem bloquear o debate rotulando todos aqueles que não concordam com suas premissas de machistas, racistas, xenófobos, homofóbicos etc. Não há possibilidade de contestação a não ser que aceite ser atacado por uma horda de intolerantes cujo poder de intimidação é assombroso.

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O politicamente correto não é preocupante, portanto, porque corrompe aquilo que nos é caro enquanto indivíduos – nossas preferências pessoais –, mas porque, num sentido profundo, manipula e ataca a cultura e as instituições políticas a fim de destruí-las e controlá-las sob uma nova base, a da desordem e do ressentimento. Perceber suas manifestações, suas armadilhas midiáticas e suas cortinas de fumaça é uma tarefa difícil, pois o marxismo – mesmo o cultural – trabalha de maneira dialética, ora esticando a corda, ora afrouxando, a fim de medir seu alcance e ampliar os seus rótulos. Explico voltando a um exemplo recentíssimo, exposto em meu artigo da última semana, sobre a Pequena Sereia que será representada por uma atriz negra. É evidente que, como mostrei no artigo, tal mudança não causará qualquer dano à história, tampouco à moral impressa por Hans Christian Andersen à narrativa da sereia que desejava ter a vida eterna – ou mesmo à adaptação da Disney, com seu romântico final feliz. O problema é que, ao que me parece, escolheram representar a sereia como negra e fizeram questão de soltar essa “notícia” bastante cedo, a fim de colherem dessa repercussão negativa o rótulo de racistas que desejavam colher dos fãs conservadores. Um tiro no pé, ao meu ver.

A batalha contra o politicamente correto não pode ser travada no campo de nosso adversário – o das disputas de narrativas midiáticas e das discussões vãs; e discordo, como alguns disseram, que somente uma força contrária, de mesma intensidade – uma reação, por assim dizer –, é capaz de aniquilar o seu poder. Isso é maniqueísmo. A verdade é sempre superior à mentira; a realidade, maior que a manipulação. Como diz o Dr. Mapp, no sentido político:

Há uma aversão natural à agenda do politicamente correto, estando tão enraizada no liberalismo esquerdista. Simplesmente protestar contra ele não funcionará. É preciso que haja um programa político claro para reverter essa situação; para remover os pontos de vista e a linguagem do politicamente correto das instituições do governo. A menos que exista tal programa, é improvável que o público, que está intensamente irritado com o politicamente correto, acredite que algo irá mudar materialmente […] É preciso uma estratégia de senso comum que lide com a questão central.

Do ponto de vista cultural, basta que voltemos os nossos olhos às coisas permanentes, que são, como disse Russell Kirk: “os elementos da condição humana que nos dão a nossa natureza, sem os quais somos como as bestas que perecem. Elas trabalham sobre todos nós no sentido de que, tanto elas quanto nós, estamos ligados a essa continuidade de crença e instituição chamado de grande agrupamento misterioso da raça humana”.

Sendo assim, cabe a nós, como disse o Cristo, sermos “prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas”.

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