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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Cinema

“Dias perfeitos” e a exultação na monotonia

Kōji Yakusho no papel de Hirayama em "Dias perfeitos", de Wim Wenders. (Foto: Divulgação)

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“O sol se levanta todas as manhãs. Eu não me levanto todas as manhãs; mas a variação se deve não à minha atividade, mas à minha inação. Ora, para expressar o caso numa linguagem popular, poderia ser verdade que o sol se levanta regularmente por nunca se cansar de levantar-se. Sua rotina talvez se deva não à ausência de vida, mas a uma vida exuberante.” (G.K. Chesterton, Ortodoxia)

O sr. Hirayama acorda todos os dias, antes de o sol nascer, ao som da vassoura do varredor de rua. Respira fundo, dobra minuciosamente o seu edredom e seu colchonete; marca a página do livro que, na noite anterior, diante do sono, só deixou no chão aberto com as páginas para baixo; escova os dentes, borrifa água nas plantas, apara o bigode, faz a barba, veste o seu uniforme, recolhe seus pertences – carteira, relógio, chaves, moedas e uma câmera fotográfica analógica –, organizadamente dispostos num balcão atrás da porta, e sai. Olha o céu (ainda no seu dealbar), respira fundo, compra uma bebida na máquina em frente à sua casa, entra no carro, coloca uma fita cassete para tocar uma canção nostálgica e vai trabalhar. Repete esse ritual todos os dias, do mesmo jeito.

Hirayama trabalha no projeto The Tokyo Toilet, responsável pela manutenção dos banheiros públicos da região de Shibuya, em Tóquio, no Japão. O projeto ficou famoso pelos banheiros transparentes, que usam eletricidade para tornar o vidro fosco, não permitindo que as pessoas vejam de fora para dentro. São coloridos, bem iluminados e extremamente limpos – esse último ponto, a principal característica desse projeto. Os banheiros-obras-de-arte de Shibuya, 17 ao todo, são financiados por uma fundação filantrópica, em parceria com o governo local, fazem parte de um projeto de revitalização da cidade e se tornaram um ponto turístico disputado, sobretudo os transparentes.

Hirayama parece completamente abnegado, totalmente concentrado em seu rito que, ao fim e ao cabo, descobrimos ser um exercício de encontrar satisfação nas coisas mais simples – ou na coisa mais potencialmente enfadonha de todas: a rotina

Tudo isso torna a coisa ainda mais curiosa, pois Hirayama – interpretado magistralmente pelo excepcional ator Kōji Yakusho – realiza o seu trabalho com esmero e dedicação absolutas, mantendo tudo limpo nos mínimos detalhes, a ponto de utilizar um espelhinho para enxergar os pontos mais escondidos das louças sanitárias branquíssimas dos banheiros. O contraste entre o seu trabalho e o de seu subordinado, um jovem que, enquanto limpa, se diverte nas redes sociais em seu smartphone, é marcante, pois Hirayama é um homem de poucas palavras, focado e evita distrações no exercício de suas funções. Afasta-se respeitosamente quando alguém chega para usar os banheiros, sempre pronto a dar um sorriso silencioso de contentamento. No almoço, come sempre o mesmo sanduíche, toma sempre o mesmo leite em caixinha, tira sempre a mesma foto da copa da mesma árvore, e volta ao trabalho.

Ao fim do dia, vai sempre ao mesmo bar para relaxar – onde recebe uma bebida em agradecimento por seu dia de trabalho –, e janta sempre no restaurante de uma gentil senhora, por quem parece nutrir um carinho especial. Toma banho numa sauna coletiva e, aos sábados, faz suas orações num pequeno templo ao ar livre, leva suas roupas a uma lavanderia self-service, e passa num laboratório de revelação de fotos para deixar o seu rolo de filme e comprar outro. Suas fotos de árvores e plantas são selecionadas e guardadas em caixas de metal num armário. Vez por outra, passa num sebo para comprar edições baratas de clássicos da literatura.

Enquanto vai de um banheiro a outro em seu minifurgão todo equipado com seus materiais e ferramentas para a limpeza, Hirayama ouve suas fitas cassete e parece sempre reflexivo, observando o trânsito, os transeuntes e a sua própria vida, e há algo de trágico nisso, pensamos. Seus hábitos nos envolvem, mas também nos incomodam. Nós, seres imersos na infodemia contemporânea, mal conseguimos nos concentrar em nossas atividades mais necessárias. Falo por mim, mas creio que o leitor enfrente o mesmo desafio. Já Hirayama parece completamente abnegado, totalmente concentrado em seu rito que, ao fim e ao cabo, descobrimos ser um exercício de encontrar satisfação nas coisas mais simples – ou na coisa mais potencialmente enfadonha de todas: a rotina.

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A rotina parece ser a coisa mais importante para Hirayama, tanto que, ao ser quebrada – e será –, traz a ele um desconforto difícil de administrar. Mas ele, em sua abnegação monástica, administra.

No fim, o que percebemos em Dias Perfeitos, esse filme belíssimo, sensível e profundo, dirigido pelo alemão Wim Wenders e que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional, é algo maravilhoso. Hirayama, para usar uma imagem bíblica, converte seu pranto em dança, faz de seu cotidiano seu balé, celebra a sua disciplina nos sucessos reproduzidos por suas fitas cassete e nos discretos sorrisos que distribui ao universo. É, como nos diz Chesterton no título deste artigo, a exultação na monotonia. Ele nos diz, em Ortodoxia, complementando a citação em epígrafe:

“O que quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando elas descobrem algum jogo ou brincadeira com que se divertem de modo especial. Uma criança balança as pernas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausência dela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abundante, elas são espiritualmente impetuosas e livres; por isso querem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem: ʻVamos de novoʼ; e o adulto faz de novo até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia. Mas talvez Deus seja forte o suficiente para exultar na monotonia. É possível que Deus todas as manhãs diga ao sol: ʻVamos de novoʼ; e todas as noites à lua: ʻVamos de novoʼ. Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de criá-las. Pode ser que ele tenha um eterno apetite de criança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso Pai é mais jovem do que nós. A repetição na natureza pode não ser mera recorrência; pode ser um BIS teatral. O céu talvez peça bis ao passarinho que botou um ovo.”

Há algo de divino em nosso dia a dia, nos ritos de nossa rotina, nos mais simples gestos de nossa dedicação ao trabalho, no serviço ao outro, no sorriso desinteressado

Ou seja, há algo de divino em nosso dia a dia, nos ritos de nossa rotina, nos mais simples gestos de nossa dedicação ao trabalho, no serviço ao outro, no sorriso desinteressado, no farfalhar das folhas nas copas das árvores, nos momentos eternizados, nas intromissões inesperadas, na frugalidade que satisfaz e na tristeza que se esconde.

O filme de Wenders foi a última grande – extraordinária! – surpresa de minha maratona pela excelente safra de filmes do Oscar 2024. Wim Wenders realizou mais um clássico, de uma beleza espiritual ímpar, que nos ensina que a tristeza e a alegria podem conviver pacificamente em nós e fazer desabrochar a nossa mais pura e inescapável humanidade.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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