...Um dia um branco disse-me:
– Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas nem o branco nem o preto conhece a sua origem.
O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco também bebe; a enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém. (Carolina Maria de Jesus)
A discussão sobre racismo está, digamos, na moda. Não só porque, de repente, ficou bonito e midiático lutar contra o racismo, mas também porque, se você não demonstrar publicamente que é um antirracista, poderá se tornar um por omissão. A militância radical está à espreita, munida da frase atribuída à ícone do feminismo negro, Angela Davis – “Numa sociedade racista não basta não ser racista, é necessário ser antirracista” –, para jogar na cara de quem não se mostrar, em alguma medida, também militante, ainda que o faça apenas por puro estetismo.
Mas outros dois fatores principais têm dado grande repercussão a essa discussão: os casos registrados, em flagrante, por smartphones, e as redes sociais, que os repercutem quase instantaneamente. As muitas vezes em que fui abordado pela polícia e tratado com desrespeito e truculência, sobretudo em minha juventude, ou nas muitas situações em que sofri preconceito e discriminação – numa época em que telefones celulares só eram vistos em filmes de ficção científica –, estão gravados somente em minha memória. Atualmente tem-se a impressão que tais casos aumentaram, mas, como muitos, não creio; o que aumentou foram os registros. Na verdade, se pensarmos bem, os casos diminuíram, pois há uma maior consciência das pessoas em relação ao problema. Para quem duvida, o testemunho dos antigos não nos deixa mentir – não só sobre os casos, bem como sua postura firme contra a discriminação. Leiamos um, dado pelo Dr. Francisco Lucrécio, cirurgião-dentista e fundador da lendária Frente Negra Brasileira:
Era moda em São Paulo, no inverno, ter os rinques de patinação. Negro não entrava. Nós saímos a campo para saber por que não aceitavam negros. Era um lugar chique, eles não falavam diretamente que não aceitavam negros. Enrolavam, mas a cada coisa ia sendo engolida como se fosse um fato consumado para ambas as partes, e nós, então, protestamos contra isso; e, na época, a Frente Negra estava com muita força diante do governo Getúlio Vargas. O chefe de polícia, o Cordeiro de Farias, emitiu uma nota: o rinque de patinação que não aceitasse negros, fecharia suas portas, como de fato houve rinques de patinação que foram fechados […]. Os lojistas da Rua Direita fechavam as lojas porque não admitiam que os negros passeassem na rua e nem queriam nem que parassem nas portas, diziam que atrapalhava as lojas. Protestamos com passeatas pela Rua Direita, empunhamos a bandeira brasileira e a da Frente Negra. Conseguimos vencer essa luta, era humilhante.
Ou como nos informa o senhor Luís Carlos Assumpção, em matéria que retrata a história do Aristocrata Clube – agremiação voltada a pessoas negras, que surgiu no final de década de 1950, em SP –, dizendo que clubes sociais e de campo não aceitavam negros: “Eram muitas as desculpas para evitar a convivência entre brancos e negros. Mas o que fez a gente decidir fundar o nosso clube foi o que um amigo ouviu de um diretor do clube Pinheiros. Ele falou que o clube não era bom para negros porque a água da piscina tinha um produto que fazia mal a nossa pele. Ali percebemos que, se quiséssemos ter uma piscina para a diversão dos nossos filhos e familiares, teríamos que construir nós mesmos”. Meu pai, que em sua juventude teve a pretensão de se tornar atleta de corrida, sempre nos lembrava de ter sido rejeitado para treinar num clube famoso de São Paulo, que hoje não existe mais, por ser negro.
Nos dias atuais, manifestações tão explícitas e estupidamente desavergonhadas são, de maneira geral, mais raras, e quando ocorrem são expostas, em minutos, à execração pública nas redes sociais. E mais: diferente do que ocorria antes, não raro seus perpetradores se desculpam com aquelas clássicas manifestações de ascendência negra ou amizades próximas. Ou seja, é mais difícil ser racista hoje do que antigamente, ou, como diz o famoso apotegma: o tempo é senhor da razão.
No entanto, nem tudo são flores no Brasil varonil. No último final de semana dois jovens, que têm o mesmo nome e a mesma profissão, tiveram de lidar com situações de discriminação que causaram revolta generalizada nas redes sociais, repercutiram na mídia durante todo o final de semana e, graças a Deus, viraram caso de polícia – cuja justiça, espero eu, seja exercida de maneira exemplar.
Matheus Pires Barbosa, de 19 anos, que trabalha como entregador para empresas de aplicativo, sofreu ofensas claramente racistas de um cliente para o qual foi entregar um pedido dentro de um condomínio, em Valinhos, interior de SP. Dentre muitos impropérios, o homem – também de nome Mateus –, no trecho gravado do longo incidente, disse: “você tem inveja disso aqui, ó!” – e apontou para o próprio braço, alvo mais que a neve. Chamou Matheus de “lixo”, “pobre”, “favelado”, mas o que caracteriza a injuria racial, prevista no parágrafo 3 do artigo 140 do Código Penal brasileiro, foi a ofensa por conta de sua cor, ainda que Matheus seja mestiço (pardo), bastante claro, por sinal, e de cabelos relativamente lisos. Nem sabemos se ele se autodeclarava negro até sofrer tal ofensa; a intencionalidade do ofensor torna o caso inequívoco e passível de ser julgado como tal. Se Mateus de Almeida Prado pensa isso de Matheus Pires, que dirá de mim, que sou, de fato, preto. Se o racista em questão sofre, de fato, de esquizofrenia, como afirmou o seu pai, que apresentou um laudo médico à polícia – o que foi contestado por um psiquiatra entrevistado pela Rede Globo –, o pai deve ser responsabilizado pela educação que deu ao filho, pois ninguém aprende a ser racista sozinho. O que não pode é deixar o caso – para aproveitar a época de discriminação maniqueísta dos termos e palavras – passar em branco.
O outro caso ocorreu no Shopping Ilha Plaza, no RJ, e a vítima foi Matheus Fernandes, um jovem de 18 anos, que foi trocar um relógio que havia comprado para o seu pai como presente de Dia dos Pais. O jovem, que, como seu xará de Valinhos, também trabalha como entregador para empresas de aplicativo no próprio shopping, aproveitou o período de descanso para fazer a troca. Ao chegar na loja, foi abordado por dois homens, literalmente arrastado para a escadaria de serviço do shopping e agredido – inclusive, como ele relatou à polícia, com uma arma apontada para sua cabeça. Os homens, que são policiais militares e trabalham como seguranças para uma empresa contratada pelo shopping, devem, também, responder pelo crime de injúria racial.
No entanto, os dois casos, apesar de absolutamente execráveis, têm, em minha modestíssima maneira de ver, natureza parecida mas não igual, e devem, pelo bem do debate e da busca por soluções, ser encarados e solucionados dentro de seu contexto específico – até que se prove o contrário. O fato dos dois terem repercutido nas redes sociais no mesmo dia, 07 de agosto, apesar de terem ocorrido em dias diferentes (o de SP, em 30/07, e o do RJ em 06/08), os casos estão sendo tratados e interpretados como “demonstração explícita de racismo”, como disse a apresentadora do programa Fantástico, da Rede Globo. O problema é que, no caso do Rio de Janeiro, os homens, em nenhum momento – apesar de toda a conduta ter sido criminosa –, pronunciaram injurias raciais ao jovem Matheus, nem mesmo demonstraram, claramente, terem-no seguido por conta de sua cor. À Folha de São Paulo o jovem se autodeclarou “preto”, mesmo sendo pardo; seus pais são fenotipicamente brancos, e sua mãe, inclusive, tem a pele bem clara e, aparentemente, se vê como branca, conforme entrevista concedida em matéria do Jornal Nacional, da Rede Globo. O delegado e os advogados também estão tratando o caso como tendo motivações raciais.
Tenho defendido que o problema “racial” no Brasil tem, basicamente, duas dimensões, e os casos supracitados podem nos servir de exemplo: o caso de São Paulo foi, como eu disse, intencional, o ofensor referiu-se à cor do jovem e o menosprezou (valorizou menos, inferiorizou) por isso. E mais: vinculou o componente racial ao socioeconômico (“favelado”, “pobre” etc.) como uma condição intrínseca, pois, quando o jovem Matheus respondeu, à acusação de ter inveja das famílias do condomínio, que poderia ter o mesmo que eles, ouviu de seu ofensor: “você nunca vai ter”. Esse homem, Mateus Almeida Prado, orgulha-se de seu racismo, assim como outro caso relatado por mim aqui, nesta Gazeta do Povo. Não há desculpas e não adiantará, diante de uma manifestação tão direta, dizer que não foi bem aquilo que ele quis dizer.
O caso de Matheus Fernandes, no RJ, envolve, num primeiro momento, o preconceito e a discriminação; o racismo só poderia ser caracterizado caso os seguranças tivessem de manifestado de modo racista – como eu mesmo ouvi de um policial, há mais de trinta anos, ao ser abordado e agredido: “só podia ser preto!”. A distinção entre preconceito e discriminação é importante aqui. Geralmente, mas não sempre, uma leva a outra; e nesse caso, levou.
Theodore Dalrymple, já costumeiramente citado por mim, nos diz, em seu excelente Em defesa do preconceito, que “em nossos dias, testemunhamos um forte preconceito contra todo e qualquer preconceito, e é exatamente assim que deveria ser, não é mesmo? Pois o que mais seria o preconceito além de algo absolutamente repreensível? Segundo o Dicionário Oxford em sua versão compacta, o preconceito seria definido como: Um julgamento prévio, especialmente ao se caracterizar como prematuro ou apressado. Opinião preconcebida; viés favorável ou desfavorável; predisposição […] especialmente com conotação desfavorável. Uma predileção ou objeção injustificada. Logo, isso implica que realmente devemos nos esforçar para nos livrarmos completamente do preconceito, certo?” No entanto, defende que os preconceitos nada mais são do que ideias preconcebidas que nos ajudam a discriminar – no sentido de discernir as coisas –, e que é impossível viver sem eles, pois:
O homem sem preconceitos, ou melhor, o homem que declara viver dessa forma, é alguém aterrorizado pela ideia de ser visto, em primeiro lugar, como intolerante e, em segundo, como alguém tão mentalmente incapaz, tão desprovido de individualidade e de potência mental, que não pode pensar por si próprio. Para as suas opiniões, ele não pretende usar as migalhas de sabedoria ou mais provavelmente da falta dela, o que significa que teria que se prender aos preconceitos. Portanto, todo homem mentalmente elevado e capaz deve comportar-se como um Descartes, em todos os assuntos e questões que lhe são apresentados. Em outras palavras, esse homem atemorizado busca dominar aquele ponto cartesiano indubitável a partir do qual, e somente a partir do qual, poderá construir uma opinião razoável - vale dizer, uma opinião verdadeiramente sua e que nada deva para pressuposições não examinadas. Portanto, a resposta para cada questão deverá se fundamentar em princípios primeiros, os quais se mostrem irrepreensíveis, para além de qualquer dúvida, caso contrário o pensamento estará contaminado de preconceito. Se essa pessoa que se declara livre de preconceitos realmente sabe ou não disso, se realmente ela leu ou não Discurso sobre o Método, pouco importa, pois se trata de um cartesiano tardio.
Mas nos adverte, relembrando o apreço que seus professores do ensino fundamental tinham pela discriminação, pois esta era a capacidade de “fazer um julgamento apropriado – estético, moral e intelectual –” sobre as coisas, e que, “para esses professores a discriminação era a função mais importante da mente; sem ela, a verdade não poderia ser distinguida da falsidade, a beleza da feiura, ou o bem do mal, logo, o propósito da pedagogia seria o de instilar os preconceitos corretos” (grifo meu).
Quando digo que o que é considerado racismo no Brasil é, em grande medida, um problema de imaginação moral, é exatamente sobre isso que estou falando. Ao longo de tantos séculos de escravidão – e após o seu fim –, nossa imaginação foi quase absolutamente acostumada a ver os negros em posições subalternas; os que estavam fora dessa condição, eram exceções. Tal associação, que, obviamente, tem um fundo de verdade, somou-se à quase absoluta representação do negro como tal nas artes brasileiras. Ou seja, nosso imaginário só enxerga o negro nessa condição, e ainda estranha ao vê-lo em outros lugares. Um negro num restaurante caro só pode ser um jogador de futebol, por exemplo. Alguns chamam isso de racismo estrutural, mas minha dificuldade com o termo, já demonstrada outras vezes aqui, nesta Gazeta do Povo, é que o racismo, para mim, é sempre uma atitude intencional, como no caso de Valinhos descrito acima (ou de Santos, no artigo citado).
Ninguém pode ser chamado de racista por ter um imaginário racializado pelas circunstâncias de tantos séculos, mesmo porque trata-se, atualmente, de um crime sério, inafiançável. Como diz Joaquim Nabuco em seu O abolicionismo, a escravidão “fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento”; ou seja, imprimiu (fossilizou) a memória dessa sociedade estratificada, racializada, como diz Edmund Burke, no “guarda-roupas de nossa imaginação moral”, alterando, nas palavras de Russell Kirk, nossa “capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento”. Não porque quiséssemos, mas porque somos todos enredados por isso ainda hoje. De outro modo, se alguns indivíduos (declaradamente racistas ou não) utilizam desse imaginário, nas instituições que ocupam ou representam, para discriminar pessoas por sua cor, caso as instituições não tenham um fundamento declaradamente racista – em sua ordem normativa ou hierárquica –, o que deve mudar são os indivíduos, não as instituições.
Ainda há um detalhe importantíssimo, paciente leitor: o estereótipo. O preconceito e a discriminação de pessoas, geralmente, baseiam-se em estereótipos, no qual a cor é apenas um dos componentes. Matheus Fernandes, como a maioria dos jovens de periferia, estava de moletom e boné, acrescido da máscara por conta da pandemia do novo coronavírus. Sua cor não estava em evidência, pois usava uma blusa de capuz e mangas compridas, e a máscara e o boné cobriam boa parte de seu rosto. Mas, infelizmente, preenchia os demais estereótipos do suspeito. Não estou, com isso, obviamente, tentando defender a conduta inequivocamente reprovável dos seguranças, tampouco criminalizando um jovem por andar como bem entende, mas dizendo que a avaliação dos seguranças pode não ter se baseado somente na cor do jovem, mas no conjunto. Caso Matheus estivesse, sei lá, de calça jeans tradicional, camisa social por dentro da calça, e um sapato esportivo, provavelmente não teria sido abordado. É um preconceito grosseiro, mas real, infelizmente. Essa coisa do estereótipo é tão real e tão complexa, que há estudos que apontam para decisões judiciais que variam de acordo com a indumentária do réu.
Thomas Sowell fala do custo das discriminações em seu Discriminação e disparidades, analisado por mim na obra introdutória sobre seu pensamento, Thomas Sowell e a aniquilação de falácias ideológicas. Ao separar a discriminação em dois tipos (I e II), diz que “o sentido mais amplo – a habilidade de discernir diferenças de qualidade em pessoas e coisas e escolher de acordo – pode ser chamado de Discriminação I, que faz distinções baseadas em fatos. O significado mais estrito, mas mais comumente empregado – tratar as pessoas de maneira negativa, com base em suposições arbitrárias ou aversão a indivíduos de uma raça ou sexo particular, por exemplo – pode ser chamado de Discriminação II, o tipo que levou a leis e políticas antidiscriminatórias. Idealmente, a Discriminação I, quando aplicada a pessoas, significaria julgar cada uma delas como indivíduo, independentemente do grupo a que pertença. Mas aqui, como em outros contextos, o ideal raramente é encontrado entre seres humanos do mundo real, nem mesmo entre os que esposam esse ideal”. Isso ocorre porque a Discriminação II, do tipo que generaliza, é mais empregada pois é mais barata e exige menos análise. Num mundo ideal, a Discriminação I, que obviamente é mais justa, seria preferível; mas a realidade continua se impondo na maioria das vezes, infelizmente.
De novo: com minha análise quero dizer que o tratamento recebido por Matheus está correto? Óbvio que não; e os seguranças podem, de fato, terem-no discriminado por sua cor. Só estou dizendo que não é possível inferir isso antecipada e arbitrariamente, pois aí os preconceituosos seremos nós.
Os racistas declarados, infelizmente, continuarão existindo, pois a alma humana é cheia de defeitos e a estupidez fundamental encontra os mais tortuosos caminhos por onde se manifestar. Combatamo-los com todas as nossas forças quando os encontrarmos. Já nossa imaginação moral, fossilizada por esse ideal branco – no qual todo (ou quase todo) brasileiro não-negro pensa ser europeu – o que Guerreiro Ramos chamou de “patologia social do branco brasileiro” –, só mudará por uma persistente educação e por uma cultura pautadas pela real diversidade do nosso povo, a ser conquistada à base de modelos exemplares do passado e do presente, que verdadeiramente reformem o nosso imaginário em relação à nossa composição social; aliás, esse é um dos mais profundos objetivos de meu curso O Brasil é um país racista?.
Que os acusados paguem por seus reais crimes, não pelo que gostaríamos que pagassem. Acusar as pessoas de racismo não pode, de maneira alguma, se tornar um modo de expurgarmos nossas mágoas.
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