Nosso tesouro? O vinho.
O palácio? A taverna.
E os fiéis companheiros?
O vinho e a embriaguez. (Omar Khayyam, O Rubaiyat)
O atento leitor já conhece minha imensa predileção pelo cinema escandinavo. Já escrevi, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, sobre Carl Theodor Dreyer – um dos maiores cineastas de todos os tempos –, sobre Gabriel Axel e seu delicado e emocionante A festa de Babette, e sobre Anders Thomas Jensen e o espetacular As maçãs de Adam, uma joia pouquíssimo conhecida. A capacidade que os realizadores dinamarqueses (e suecos, não nos esqueçamos de Bergman) têm de penetrar nos recônditos da alma humana – usando como únicos recursos a argúcia imensa de sua direção, os roteiros geniais e o talento extraordinário de seus atores e atrizes – supera, para mim, qualquer iniciativa cinematográfica nesse sentido, sobretudo na atualidade. E isso se consolidou, penso eu, como fruto da curiosa imposição a que se submeteram, em 1995, com a criação do Dogma 95, um movimento cinematográfico fundado por ninguém menos que Lars von Trier, com quem tenho uma relação de amor e ódio, e Thomas Vinterberg, o diretor sobre o qual falarei adiante.
O Dogma 95 foi uma iniciativa que reuniu, além de von Trier e Vinterberg, uma pequena safra absurdamente talentosa de diretores dinamarqueses – como Susanne Bier (Em um mundo melhor, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2011), Kristian Levring (Den du frygter) e o já citado Anders Thomas Jensen –, dando destaque a atores como Paprika Steen, Thomas Bo Larsen, Nikolaj Lie Kaas, Trine Dyrholm, Mads Mikkelsen e Ulrich Thomsen – os dois últimos já bastante conhecidos em Hollywood –, e consistia numa espécie de voto de castidade na produção de seus filmes, mediante a obediência irrestrita aos “10 mandamentos” criados pelo movimento, que tinha entre suas regras gravar filmes somente com câmeras de mão e sem trilhas sonoras. A iniciativa, segundo o produtor Peter Aalbæk Jensen, fundador da Zentropa Filmes, em entrevista ao jornal O Globo, visava a “sacudir o cenário cinematográfico do país, que andava uma droga naquela época”. Os dois primeiros filmes foram os catárticos Festa de família (vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 1998), de Vinterberg, e Os idiotas, de Lars von Trier.
A capacidade que os realizadores dinamarqueses (e suecos) têm de penetrar nos recônditos da alma humana supera, para mim, qualquer iniciativa cinematográfica nesse sentido, sobretudo na atualidade
O Dogma 95 foi logo abandonado pelos diretores e, atualmente, é visto apenas como como uma brincadeira; no entanto, creio que tenha marcado um estilo de direção – talvez herança de Dreyer – que investe muito no roteiro e na virtude dos atores/atrizes, e usa pouquíssimos recursos tecnológicos. Lars von Trier ainda nos brindou com os maravilhosos Ondas do destino – vencedor do Prêmio do Júri em Cannes (1996) – e Dançando no escuro, considerado um dos filmes mais tristes da história, vencedor da Palma de Ouro, em Cannes (2000), e estrelado por Björk, que venceu o prêmio de Melhor Atriz. Thomas Vinterberg dirigiu os dramas poderosos Submarino e A caça – este último o projetou internacionalmente. Todos com alguma estética herdada do Dogma 95.
Agora, Vinterberg – sobre quem já escrevi anteriormente, a respeito de outro filme interessantíssimo de sua safra, Kollektivet – retorna com uma das películas mais surpreendentes deste ano tão incomum: Druk. O subtítulo em português, Mais uma rodada, é, como sempre, horroroso. O filme está disponível nas plataformas de streaming como YouTube Filmes e Google Filmes.
Druk tem um argumento muito simples – é um filme muito simples, por isso, também, é belo: quatro amigos, professores do ensino básico na Dinamarca, um tanto entediados com suas profissões (e com suas vidas), resolvem testar uma teoria, formulada pelo psiquiatra norueguês Finn Skårderud, que diz ter o corpo humano, ao nascer, um déficit de 0,05% de álcool, e ele propõe que, para se manter “relaxado, e então mais disposto, musical e aberto; mais corajoso, simplesmente” – como diz o personagem Nikolaj (Magnus Millang) –, é preciso manter-se bebendo o tempo todo, controladamente, a fim de repor essa falta, equilibrar o organismo e melhorar a disposição.
Nikolaj diz isso justamente em seu jantar de aniversário com seus melhores amigos, em que Martin (Mads Mikkelsen), que recusa as excelentes bebidas alcoólicas que estão sendo servidas sob a justificativa de estar dirigindo, se mostra visivelmente abalado por seu desempenho como professor e seus problemas familiares. Eles tentam animá-lo e, numa cena poderosíssima de um contido transbordamento emocional, Martin não só bebe como decide, por si mesmo, iniciar a tal experiência. Seus amigos o seguem posteriormente, e combinam de publicar conjuntamente, ao final, um artigo acadêmico relatando suas conclusões.
O que se segue, além da constatação de que as coisas estão, de fato, funcionando, é uma sucessão de experiências contraditórias a respeito do consumo de álcool, sobretudo quando associado a uma vida já prejudicada por processos depressivos, problemas profissionais e familiares. Mas note, caríssimo leitor, o filme não é moralista e nem um filme sobre o consumo de álcool. Como afirma Vinterberg numa excelente entrevista dada, junto com Mads Mikkelsen, ao crítico de cinema canadense Cameron Bailey, é um filme sobre “estar vivo; sobre despertar quando você está numa crise de meia-idade ou em sua rotina diária em direção à sepultura. É sobre ser redespertado esperançosamente”. E isso fica muito evidente durante o desenvolvimento do filme, pois a condução e atuações são tão maravilhosamente construídas que somos levados pela mão por um grande arco de sentimentos que vai da comédia ao drama, da tragédia à alegria de maneira extremamente competente e emocionante. A muito bem escolhida trilha sonora tem um papel fundamental nisso.
Mads Mikkelsen, amigo e colaborador de Vinterberg também em A caça, é a grande estrela do filme e o personagem principal. É um ator inegavelmente estupendo, que dá um show de interpretação de que pouquíssimos atores hollywoodianos seriam capazes na atualidade. Ele fala, na mesma entrevista, sobre a dificuldade de representar um personagem em estágios diferentes de embriaguez – e, vale destacar, tanto ele quanto os demais atores (Thomas Bo Larsen, Magnus Milling e Lars Ranthe) fazem isso de maneira perfeita. Há ainda uma curiosidade – perdoe o pequeno spoiler, nobre leitor: Mads Mikkelsen tem a oportunidade de nos mostrar seus dotes como dançarino profissional que foi.
É um filme, como eu disse anteriormente, simples; mas poderoso. É, mesmo, um filme sobre a vida; mas também sobre a morte e sobre nossas limitações. E mais uma vez Thomas Vinterberg – que perdeu tragicamente sua filha, a quem dedica o filme, num acidente de carro em 2019 – nos prova que é um dos grandes diretores de sua geração, capaz de contar histórias que nos humanizam e nos tornam melhores. Desse modo, imprime em seus filmes o princípio aforístico determinado pelo mestre Robert Bresson: “Onde não há tudo, mas onde cada palavra, cada olhar, cada gesto tem fundamentos”. E não é disso que trata a grande arte?
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