Sim, minhas filhas, é tão difícil aprender a obedecer quanto a mandar. Obedecer não é deixar-se conduzir passivamente, como o cego pelo seu cão. Uma velha religiosa como eu deseja morrer na obediência, mas numa obediência ativa e consciente. Nada temos no mundo, é verdade... Mas também é certo que nossa morte é nossa morte pessoal! Ninguém pode morrer em nosso lugar! (Georges Bernanos, Diálogo das Carmelitas)
Meu artigo da semana passada, como sói acontecer sempre que ousamos provocar o zoon politikon – o animal político segundo Aristóteles –, suscitou uma quantidade considerável de contrapontos e alguns ataques, ao texto e a mim. Ótimo, é do jogo. Alguns, inclusive, reclamaram por eu, supostamente, ter associado a imagem do presidente a Hitler, como se estivesse, com isso, evocando a Lei de Godwin. Só gostaria de avisar a esses que, na verdade, meu ponto era a disposição do povo, que, tal como o povo alemão da época – como diz Eric Voegelin no livro citado e que recomendo muitíssimo que leiam, pois ele investe muito em compreender essa disposição –, estava acometido de uma “estupidez criminosa” ao depositar sua esperança num stultus (idiota).
Outra crítica que me causou um sobressalto – e cuja quantidade me trouxe ao presente artigo – foi a de que, como cristão, devo, como recomenda Paulo (não eu, o apóstolo) aos romanos, no capítulo 13 de sua epístola bíblica, me submeter às autoridades, pois estas foram constituídas por Deus; e que, como diz ainda o apóstolo dos gentios, “aquele que se revolta contra a autoridade opõe- se à ordem estabelecida por Deus” (Rm 13,2). Até aí, tudo bem. Como cristão, devo não só concordar como obedecer o que diz a Escritura. Mas um problema se impõe, uma vez que, na mesma Escritura, as palavras de outro apóstolo, Pedro, se contrapõem a essa. No livro que narra os Atos dos Apóstolos, há um embate entre estes e as autoridades israelitas, como segue:
Tendo-os, pois, trazido, fizeram-nos comparecer perante o Sinédrio. O sumo sacerdote os interpelou: “Expressamente vos ordenamos que não ensinásseis nesse nome. No entanto, enchestes Jerusalém com a vossa doutrina, querendo fazer recair sobre nós o sangue desse homem!” Pedro e os apóstolos, porém, responderam: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens. O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus, a quem vós matastes, suspendendo-o no madeiro. Deus, porém, o exaltou com a sua direita, fazendo-o Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. Nós somos testemunhas destas coisas, nós e o Espírito Santo, que Deus concedeu aos que lhe obedecem”. Ouvindo isto, eles fremiam de raiva e pretendiam matá-los. (At 5,27-33)
Franz Jägerstätter foi executado por guilhotina aos 36 anos, pois não estava disposto a desobedecer a Deus para obedecer aos homens
Franz Jägerstätter, fazendeiro martirizado pelo regime nazista, hoje beato da Igreja Católica – sobre quem já escrevi recentemente por ocasião do filme Uma vida oculta, de Terrence Malick –, teve de lidar com esse dilema. No filme há um diálogo entre ele, um objetor de consciência, e o bispo de seu distrito, que evidencia essa questão paradoxal. Ele diz: “Se nossos líderes não são bons... se são maus... O que fazer? Quero salvar minha vida, mas não através de mentiras”. Ao que o bispo, de forma pouco convincente, responde: “Você tem um dever para com a pátria; a Igreja lhe diz isso. Você conhece as palavras do apóstolo: ‘Que todo homem esteja sujeito aos poderes superiores’?” Jägerstätter foi executado por guilhotina aos 36 anos, pois não estava disposto a desobedecer a Deus para obedecer aos homens.
Outro a quem os poderes terrenos tentaram dobrar em vão foi o pastor e teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, sobre quem também já escrevi nesta Gazeta do Povo. Ao contrário de Franz Jägerstätter, que não era um intelectual e nos deixou escritas apenas algumas reflexões e cartas, Bonhoeffer nos deixou uma obra que, apesar de reunida em poucos livros, é fundamental para o nosso tempo. Seu livro Discipulado, que menciono no artigo supracitado, causou em mim uma impressão indelével. Vida em Comunhão é uma pequena maravilha, que traz reflexões muito marcantes sobre vida cristã. Mas é em outras duas de suas obras que estão suas reflexões éticas mais profundas: Ética e Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. Bonhoeffer participou de dois atentados contra a vida de Hitler (um deles foi a famosa Operação Valquíria, que virou filme estrelado por Tom Cruise). Resistiu ao nazismo desde o primeiro momento, ajudando na fuga de judeus e pastoreando uma comunidade subterrânea chamada Igreja Confessante. Mas quando começaram a chegar as notícias dos campos de concentração e das atrocidades cometidas pelos nazistas, sua atitude foi radical: uniu-se a seu irmão Klaus Bonhoeffer, e a seus cunhados Rüdiger Schleicher e Hans von Dohnanyi, membros da Abwehr – o serviço de inteligência do exército alemão, onde se formou um movimento conspiracionista contra Hitler –, e passou a agir ativamente para remover o führer do poder. Quem o introduziu na agência foi Dohnanyi, sob a alegação de que seus contatos ecumênicos poderiam ajudar a Alemanha.
Em seu inacabado Ética, iniciado enquanto ele já era um agente duplo da Abwehr, até ser preso e executado por enforcamento em 9 de abril de 1945, ele reflete, dentre outras coisas, sobre o caráter divino da autoridade, sua incumbência e sua relação com a Igreja. Diz ele: “Para a autoridade, a incumbência de servir a Cristo é, ao mesmo tempo, seu destino inevitável. Ela serve a Cristo com ou sem conhecimento disso e independentemente de ser fiel ou não à incumbência recebida. Tem de servir-lhe, quer queira, quer não. Se não quiser, servirá ao testemunho do nome de Cristo através do sofrimento da comunidade”. Em relação à obediência do cristão à autoridade, afirma:
No exercício de sua tarefa governamental, a exigência de obediência é incondicional, qualitativamente total e abrange a consciência e a vida física. Fé, consciência e existência física estão comprometidas em obediência à incumbência divina da autoridade. Dúvida só pode surgir ali onde o conteúdo e abrangência da tarefa governamental se tornam questionáveis. O cristão não é obrigado nem tem condições de avaliar, em casa caso, o direito da exigência da autoridade. O dever de obediência compromete-o até que a autoridade queira obrigá-lo diretamente a transgredir o mandamento divino, até que a autoridade, portanto, renegue manifestadamente sua incumbência divina e perca assim o seu direito. Em caso de dúvida, cabe obediência, pois o cristão não tem sobre os seus ombros a responsabilidade governamental. Mas se a autoridade exceder nalgum ponto da sua competência, tentando assenhorar-se, por exemplo, da fé da comunidade, neste ponto deve ser-lhe negado o acatamento por questão de consciência, por amor ao Senhor.
O que Bonhoeffer, como um bom luterano, está evocando aqui é o próprio Martinho Lutero, que escreveu sobre isso pormenorizadamente em Da autoridade secular: até que ponto se lhe deve obediência, publicado em 1523. Logo no início, o pai da Reforma Protestante diz que “Deus, onipotente, enlouqueceu os príncipes, de sorte que pensam poderem fazer e ordenar a seus súditos o que quiserem; e também os súditos se enganam, quando creem estarem obrigados a cumprir tudo isso plenamente (...) Com isso atrevem-se, inclusive, a sentar no trono de Deus e a dominar as consciências e a fé e, em seu cérebro louco, a tratar o Espírito Santo como aluno”. Lutero mapeia biblicamente o caráter divino da autoridade, tratando de “fundamentar bem o direito e a espada secular para que ninguém duvide que ela existe no mundo por vontade e ordenação de Deus”. E faz longas considerações a respeito dessa obediência, salientando que aos cristãos ela poderia ser facultativa se fosse possível fazer com que todos obedecessem ao Evangelho. No entanto, diz ele, “visto que todo mundo é mau e entre mil é difícil encontrar um único verdadeiro cristão, um devoraria o outro (...) o mundo seria devastado”. E complementa: “Por isso, se um país inteiro ou o mundo se arriscasse a governar com o Evangelho, seria a mesma coisa que se um pastor juntasse, num mesmo estábulo, lobos, leões, gaviões e ovelhas e lhes dissesse: ‘Apascentai-vos e sede justos e pacíficos uns com os outros; o estábulo está aberto, tendes pasto em abundância, não precisais temer cães nem cacetes’”.
A passagem é um tanto divertida, mas mostra a consciência que Lutero tinha da necessidade da autoridade secular. No entanto, reconhece que houve uma inversão perigosa, que fez com que Deus levasse, Ele mesmo, os príncipes a “errarem horrivelmente”, pois enquanto os religiosos, diz Lutero, “são omissos e converteram-se em senhores seculares e governam com leis que concernem somente aos corpos e aos bens (...) Da mesma maneira os senhores seculares deveriam governar exteriormente o país e o povo. Isso, porém, não fazem. Nada mais sabem fazer do que esfolar e raspar, cobrando imposto sobre imposto, taxa sobre taxa, soltando aqui um urso, ali um lobo. Além disso, não conhecem nem fidelidade nem verdade, e portam-se de uma maneira que até ladrões e bandidos considerariam excessiva. Seu regime secular é tão decadente como o dos tiranos eclesiásticos. Por isso Deus também lhes perverte a mente, de modo que procedam de forma absurda, arvorando-se em exercer o domínio espiritual sobre as almas, enquanto os outros querem governar secularmente”. E após demais considerações nesse sentido, assevera: “Mesmo que um príncipe não tivesse razão, seu povo, ainda assim, estaria obrigado a lhe seguir? Resposta: Não. Pois a pessoa nenhuma [sic] convém agir contra o direito, antes devemos obedecer a Deus (que quer o direito) mais do que aos homens”.
Não me importam aqui as implicações teológicas das afirmações de Lutero – de que Deus mesmo “perverte a mente” dos governantes, por exemplo; o importante para mim, caríssimo leitor, é mostrar que as coisas não são assim tão simples; que não basta que uma autoridade se estabeleça para que se lhe deva obediência cega. Caso não sejas cristão, sua consciência moral tratará de orientá-lo (ou não); mas, aos cristãos que me indagaram, é bom que saibam que “Deus não é Deus de confusão, senão de paz” (1 Cor 14,33). É preciso atentar, em primeiro lugar, para a Sua vontade, e não para a vontade dos governantes, que devem, antes de tudo, submeter-se à vontade divina não somente de palavras, por meio de bordões e citações descontextualizadas, mas de todo o coração, de toda a alma e todo o entendimento (Mt 22,37). Caso contrário, ninguém é obrigado a obedecer-lhes; antes, deve desobedecer-lhes para que sua alma não seja empurrada para o abismo.
Não basta que uma autoridade se estabeleça para que se lhe deva obediência cega
E, para não dizer que não observei o que dizem meus irmãos católicos, São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, é explícito ao dizer que “o homem só é obrigado a obedecer aos príncipes seculares na medida requerida pela justiça. Assim, quando os chefes não possuírem um mandato justo, mas usurpado, ou quando os preceitos deles forem injustos, os súditos não têm nenhuma obrigação de lhes obedecer, a não ser talvez por acidente, para evitar um escândalo ou um perigo” (II-II, q.104, a. 6). E o Catecismo da Igreja Católica diz, em seus parágrafos 1902 e 1903:
A autoridade não recebe de si mesma a legitimidade moral. Por isso, não deve proceder de maneira despótica, mas agir em prol do bem comum, como uma “força moral fundada na liberdade e no sentido de responsabilidade”: “A legislação humana só se reveste do caráter de lei, na medida em que se conforma com a justa razão; daí ser evidente que ela recebe todo o seu vigor da Lei eterna. Na medida em que se afastar da razão, deve ser declarada injusta, pois não realiza a noção de lei: será, antes, uma forma de violência”. A autoridade só é exercida legitimamente na medida em que procurar o bem comum do respectivo grupo e em que, para o atingir, empregar meios moralmente lícitos. No caso de os dirigentes promulgarem leis injustas ou tomarem medidas contrárias à ordem moral, tais disposições não podem obrigar as consciências. “Neste caso, a própria autoridade deixa de existir e degenera em abuso do poder”. (As citações entre aspas foram retiradas do Concílio Vaticano II, de São Tomás de Aquilo e de João XXIII, respectivamente).
Mas, alguns ainda podem me indagar que Jair Bolsonaro não se encaixa nos moldes de um governante mau. A estes, respondo: nem eu estou disposto a desobedecê-lo. Ainda não.
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