“Agora a pergunta: o que deveria ser o artista, na realidade? A maneira como deveria ser compreendida a música hoje em dia nos poderia dar a resposta. Se o músico tem realmente a missão de transmitir toda a herança musical – em toda a extensão daquilo que nos interessa – e não só os aspectos estéticos e técnicos, para isso ele precisa adquirir os conhecimentos necessários. Não há outra solução possível.” (Nikolaus Harnoncourt, O discurso dos sons)
Uma das maiores dificuldades que enfrentamos ao tomar contato com as obras de não ficção do imenso C.S. Lewis são suas referências bibliográficas, algumas muito distantes de nós. Pouquíssimas pessoas, por exemplo, leram o Tratado do amor cortês, de André Capelão; e o clássico poema The Faerie Queene, de Edmund Spenser, jamais foi publicado em português. Lewis era um especialista em literatura medieval e renascentista, e pródigo no uso dessas referências não só em suas obras de crítica literária, como Alegoria do amor, mas em suas obras de teologia e filosofia e até nos romances. Para compreendermos realmente o que Lewis diz, é desejável que entremos em seu mundo.
A mesma sensação pode ocorrer, como ocorreu a mim, quando o leitor ouvir o mais recente álbum do cantor, compositor, multi-instrumentista e produtor brasileiro Ed Motta, Behind The Tea Chronicles, que acabou de sair em lançamento mundial no último dia 20 de outubro. Mas isso não é propriamente um problema, uma vez que a música é um modo imediato de conhecimento, e nela, como diz Richard Wagner – evocado por mim repetidas vezes nesse tema –, “o mundo manifesta imediatamente sua essência”. A fruição e contemplação artística, pelo menos num primeiro momento, não necessita de racionalização. Há uma longa e milenar discussão a esse respeito, que começa em Platão e jamais foi superada. No entanto, podemos dizer, de maneira preliminar e útil para nosso propósito, como o filósofo Roger Scruton, que “declaramos que algo é belo quando sentimos prazer ao contemplá-lo por si só, na qualidade de objeto individual e na forma em que ele se apresenta”. Uma beleza que se manifesta primeiramente aos sentidos.
O refinamento das composições e a variedade de temas e ritmos são provas cabais do notório, profundo e variado conhecimento de Ed e da capacidade de utilizá-lo para o bem de sua arte
Ed – que já esteve nessa coluna anteriormente –, como todos sabem, é um polímata inveterado. Se interessa por vários assuntos e parece se aprofundar em todos eles. Se fala de música, cinema ou gastronomia, é sempre com aquele nível de conhecimento do expert, com evocações raras, inéditas e sempre impressionantes daqueles que têm intimidade com o assunto tratado. Saber isso é fundamental para entrarmos sem medo no universo de Behind The Tea Chronicles. Quem acompanha as lives do Ed no Instagram, sempre recheadas de informações das mais diversas, já sabe disso e está acostumado. Ao ouvinte neófito pode soar estranho ouvir sobre Gaslight, Cypher ou Stephen Sondheim ao mesmo tempo em que ouve linhas de baixo funky pesadíssimas misturadas a instrumentos exóticos e complexas orquestrações clássicas; mas, para quem já descalçou as sandálias e pisou no solo sagrado da arte edmotteana, é puro deleite.
O álbum é, antes de tudo, uma experiência sensorial. Todas as 11 faixas contam histórias baseadas em filmes, quadrinhos, séries de tevê e toda uma gama de referências cult que Ed Motta manipula e entrelaça brilhantemente com sua música repleta de detalhes e peculiaridades. A qualidade literária das letras, todas em inglês, é digna de nota. Versos como “The bellman and his rough bark / Behind the eight-ball / Ostentation of goodness / Courage for the muggles / They owe you more than that / You’re expecting more than that” (Slumberland), ou “A cheaper private eye hungry for a dime will list it / It smells you are inside stealing rare jewelry” (Deluxe Refuge) são preciosidades líricas que nos arrebatam.
O refinamento das composições e a variedade de temas e ritmos são provas cabais do notório, profundo e variado conhecimento de Ed e da capacidade de utilizá-lo para o bem de sua arte. O esmero técnico da produção pode ser evidenciado pela quantidade e qualidade dos equipamentos utilizados na gravação, que Ed fez questão de exibir num encarte separado no álbum físico. Behind The Tea Chronicles é um trabalho artesanal, em que cada faixa foi pensada e submetida a um processo cuidadoso de composição e produção. Aliás, todas as faixas são compostas, produzidas e arranjadas por Ed Motta.
Na faixa de abertura, Newsroom Costumers, somos recepcionados pela orquestra tcheca FILMharmonic, num sofisticado arranjo de cordas conduzido pelo maestro Adam Klemens, e um clima soul sedutor do clavinete tocado pelo virtuose Michel Limma, pianista e diretor musical do álbum. Há uma brasilidade ao estilo de Moacir Santos em algumas partes, por conta da percussão e do xilofone tocados por Ed Motta. Segundo informações do press release, conta a história de um jornalista com aspirações de ser escritor e que faz amizade com a máfia para se dar bem.
Slumberland, a segunda faixa, é uma canção deliciosa que lembra o ambiente fantástico da tirinha de jornal que a inspirou. Little Nemo in Slumberland foi lançada em 1905, criada por Winsor McCay, que foi o inventor da animação e influenciou Salvador Dalí e o surrealismo. A tirinha apresenta o garoto Nemo, que, dormindo, tem sonhos fantásticos, mas sempre acorda no último quadro. Um solo etéreo de harpa (presente também na introdução) coroa essa que é uma das músicas mais complexas do álbum. E ainda traz, nos backing vocals, os lendários Paulette McWilliams (simplesmente uma das cantoras de apoio do clássico absoluto Off The Wall, de Michael Jackson), Phillip Ingram (irmão do cantor James Ingram) e Will Wheaton.
A eletrizante linha de baixo do genial Alberto Continentino, em Safely Far, a terceira faixa, é um bálsamo para os saudosos daquele funk Motown dos nos 1960/70 – salve James Jamerson! Tem um clima de nouvelle-vague e conta a história de um casal moderno cujo relacionamento, como diz o release, é de “amor sem amor”. Gaslight, filme de George Cukor, de 1944, estrelado pela diva Ingrid Bergman, é a inspiração para Gaslighting Nancy, a quarta faixa, e fala “sobre uma cantora que sofre abusos dos poderosos de uma pequena cidade, que lhe prometem uma carreira que nunca acontece”. A guitarra de Thiago Arruda é o destaque dessa faixa, que lembra as melhores coisas produzidas no pop-rock dos anos 1980. E os backings, leitor amigo, os backings...!
Não é um álbum em que o leitor deve pinçar músicas para colocar numa playlist de seu serviço de streaming favorito. Behind The Tea Chronicles deve ser ouvido em sua completude, atentamente
De repente surge uma valsa ao melhor estilo Broadway em Of Good Strain, a quinta faixa. O tema? “Uma cientista médica que é boicotada pela família de um médico muito rico, que possui vários hospitais. Ele é um médico assassino, enquanto ela pratica a verdadeira medicina.” Faixa curta, mas marcante, com uma combinação harmônica entre o piano acústico e os míticos Rhodes e Hammond de Michel Limma. O release também nos auxilia para compreendermos um pouco do smooth soul – “o mais funky do álbum” – de Quatermass Has Told Us, a sexta faixa: É uma história de ficção científica sobre sabotagem no espaço, “e o nome refere-se à primeira série de ficção científica produzida pela BBC, Quatermass”, de 1979.
Mas as surpresas não param na valsa; Buddy Longway me remeteu imediatamente a um filme de uma dupla de que Ed já disse não gostar (sorry, mestre!), os irmãos Joel e Ethan Coen e seu The Ballad of Buster Scruggs, mais especificamente o “conto” All Gold Canyon (O Cânion de Ouro). Não que as histórias tenham a ver diretamente uma com a outra, mas porque tanto Buddy Longman, “um personagem de quadrinhos francês”, quanto o velho grisalho e obstinado de All Gold Canyon estão procurando ouro, e a faixa, de apenas 58 segundos, é um country blues entremeado por uma dobro slide guitar que lembra o Velho Oeste americano.
Quem conhece e acompanha o trabalho de Ed Motta sabe de sua devoção pela extraordinária banda Steely Dan, de Donald Fagen e Walter Becker. Como ele disse numa entrevista para o site Expanding Dan:
“Quando comecei a ouvir Steely Dan, comecei a prestar atenção em cada detalhe. E percebi que não encontrava todos esses elementos juntos em nenhum outro artista. Há em Steely Dan um misto de Harold Pinter e Duke Ellington, junto à atitude beatnik e jazz. E ainda estou encontrando conexões! Recentemente descobri que a música King of the World foi inspirada no filme Panic in Year Zero!, de Ray Milland. Me conecto com as influências cinematográficas de Becker e Fagen porque, junto com minha coleção de discos, tenho minha coleção de filmes clássicos. Por volta dos 14 anos eu tinha um fanzine com um amigo sobre filmes em preto e branco e música negra. Sou louco por cinema. É mais uma coisa que me conecta com Steely Dan.”
Shot In The Park, a oitava faixa do álbum, é, segundo o release, “uma carta de amor a Donald Fagen e Steely Dan”. Um shuffle blues que fala “sobre o envolvimento entre um mafioso e um rapaz – e ninguém sabe ao certo que tipo de relacionamento eles têm, se são apenas negócios ou outra coisa”. Dançante, sofisticada e cheia de atitude. Destaque para o solo de flauta, de Marcelo Martins, e os vocais de Paulette McWilliams e Phillip Ingram.
Quando o leitor pensa que as surpresas de Ed terminaram, entra em cena “um grupo de investidores e seus estranhos negócios”, no eletric-jazz-samba de Deluxe Refuge, a nona faixa. Nessa há instrumentos inusitados como a tabla, um instrumento de percussão indiano, e o glockenspiel, semelhante ao vibrafone. Michel Limma esmerilha no solo de piano acústico. O blues Tolerance On High Street se impõe com outra história que envolve a máfia: trata de “empresários mafiosos que tentam trabalhar com uma artista, mas ela tem problemas com o namorado delinquente, que atrapalha toda a sua carreira. É um tema de filme noir”. É a última faixa do vinil.
O álbum encerra com a arrebatadora Confrereʼs Exile, uma etérea e impressionista canção inspirada nos musicais de Stephen Sondheim. E o release diz que a música se parece com um filme de um dos meus cineastas favoritos: Carl Theodor Dreyer. Não poderia terminar melhor. Se Buddy Longman está perto de encontrar o seu ouro, posso dizer que encontrei o meu.
Behind The Tea Chronicles não é um álbum de que o leitor deve pinçar músicas para colocar numa playlist de seu serviço de streaming favorito. O álbum deve ser ouvido em sua completude, do início ao fim, atentamente, com um bom fone de ouvido, tomando um bom vinho e pesquisando todas as referências que alimentam o imaginário de Ed Motta, o artista mais completo que temos em atividade nessa terra desolada.
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