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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Ed Motta contra o estetismo

(Foto: Reprodução/YouTube)

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“Agora, uma das causas pelas quais eu estou agora deslocado – e por que durante tantos anos estive deslocado – é simplesmente porque tenho ideias diferentes das desses senhores que dão cargos àqueles que pensam como eles. Não se trata de uma simples questão de asseio, como hipocritamente me censuraram, é uma questão mais séria que isto, posso lhe garantir”. (Vincent Van Gogh, Cartas a Théo)

Não sou artista, minhas habilidades estão em outra área. Mas sou apaixonado pela arte, e quem me acompanha nesta coluna já deve saber. Escrevo sobre literatura, música, cinema, artes e temas que se relacionam a esse universo, porque penso ser a arte uma das mais poderosas realizações humanas, aquela que faz o artista ser, como diz J.R.R. Tolkien, subcriador. O ser humano produz arte para tentar remediar a incompletude do mundo, ou, para usar as belas e precisas palavras de Andrei Tarkovski: “a arte […] é um meio de assimilação do mundo, um instrumento para conhecê-lo ao longo da jornada do homem em direção ao que é chamado ʻverdade absolutaʼ”.

E foi com grata surpresa que vi o cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista Ed Motta – eternizado em sucessos como Fora da Lei, Colombina e Espaço na Van, e em obras experimentais como Dwitza e Chapter9 –, intensificar o uso de suas redes sociais com lives cheias de polêmica e, sobretudo, muita informação sobre música e artes em geral – um verdadeiro oásis para quem ama arte e tem bom gosto. Ed Motta é um obcecado por tudo o que lhe interessa, mergulha fundo e se torna um sujeito criterioso (para não dizer chato) e exigente nos assuntos que domina (e não são poucos). Seus comentários sobre música (e músicos) – “Elomar é um gênio que dá medo […] A música dele dá um tapa na gente” –, bebidas – “não se decanta um Borgonha!” –, alimentação – “pizza de quatro queijos é um problema de trigo com queijo em cima” –, indumentária – “se gravar de bermuda o som fica ruim, tá?” –, cinema – “Irmãos Coen é um lixo!” –, e até arquitetura – “vidro fumê é a batata palha da arquitetura” – são sempre informativos, ainda que polêmicos – às vezes polêmicos até demais. E não demorou muito para que Ed Motta começasse a receber críticas a respeito de suas ácidas afirmações, e para que fãs de artistas que ele, digamos, desanca, reagissem com veemência aos seus controversos posicionamentos.

É óbvio que Ed exagera; óbvio que ele, às vezes, passa dos limites – como no caso Raul Seixas, pelo qual acabou tendo de se desculpar; mas também é fato incontestável que ele acerta muitas vezes, e diz verdades duras de ouvir. Ele acerta quando fala do showbiz, da exigência de submissão à mediocridade para fazer sucesso, da falta de compromisso com a excelência, e, principalmente, da falsa modéstia do brasileiro. Essa mania de subserviência, de culto à mediocridade e de comportamento servil. No Brasil, as pessoas que são, de fato, talentosas, parecem ter de pedir desculpas por isso. Em suma, Ed reclama, e com muita razão e propriedade, como veremos, do estetismo do brasileiro.

Mário Vieira de Mello, filósofo brasileiro já trazido a essa coluna outras vezes, escreveu uma obra fundamental para compreendermos esse fenômeno: Desenvolvimento e cultura – O problema do estetismo no Brasil, publicada em 1963. É curioso como um problema tão antigo, já devidamente investigado, não tenha se tornado, no mínimo, objeto de discussão por nossas classes letradas. Mas não surpreende, pois o autor, que não hesitou em criticar medalhões de nossa intelectualidade – como Sérgio Buarque de Holanda – e movimentos culturais como o modernismo e sua Semana de Arte Moderna, foi colocado no ostracismo por aqueles que passaram a dominar o debate público nos últimos cinquenta anos. Mas seu livro é uma análise contundente de um comportamento tão comum e tão nocivo em nosso povo. Diz ele que o estetismo “é a concepção de uma cultura meramente formal, meramente ornamental”; ou seja, não há um reconhecimento dos aspectos morais e profundos da cultura.  A primeira constatação é desconcertante de tão real:

“O Brasil é um país novo. Essa constatação encerra um grande número de promessas, mas contém igualmente elementos inquietantes para o orgulho e a vaidade brasileiras. O fato de que somos um país novo cria limitações para as nossas possibilidades de assimilação cultural que precisaremos aprender a aceitar com simplicidade e modéstia, se quisermos realmente possuir um dia a estrutura de uma consciência verdadeiramente nacional. Um dos erros mais nefastos da inteligentsia brasileira de todos os tempos foi acreditar que ela própria, a elite intelectual do país, se situava em planos espirituais mais ou menos próximos daqueles em que se situam as elites das nações possuidoras de uma grande e antiga cultura. Sessenta por cento da população do país é composta de analfabetos - assim ou de forma análoga se exprimiria tal convicção - mas os que estudam, os que sabem, os que vivem para o espírito pouca diferença fazem dos que, na Europa, representam a inteligentsia.

O filósofo Sílvio Romero já havia realizado tal diagnóstico anteriormente, em 1909, em seu ensaio Nosso maior mal, no qual diz que o grande problema do Brasil é a falta de uma identidade que norteie nosso desenvolvimento, pois não temos “consciência positiva do que realmente somos”, mas ufanamo-nos em sermos o que não somos. Isso distorce nossa capacidade de construção de nosso destino comum. E, retomando Vieira de Mello, “por mais que o intelectual brasileiro tenha desenvolvido as suas faculdades e capacidades, a parte coletiva de sua alma reflete ainda hoje a situação deplorável da educação do nosso povo. Se constitui como um vazio de aspirações e de impulsos que empresta à totalidade de seu ser um caráter desarmonioso e incompleto”. E tal postura – somada ao atraso já de séculos pela formação de nossa cultura primária sob os auspícios ascéticos da Contra Reforma jesuítica, ao posterior desenvolvimentismo do século 19, e à mais recente influência marxista na crítica de um suposto servilismo intelectual ao estrangeiro –, alimentou, no século 20, o  fetiche pela autenticidade, pelo nacional. A partir daí, nossa cultura adquiriu, definitivamente, um caráter meramente ornamental – estético, por assim dizer.

No entanto, essa presunção de autenticidade desembocou não na criação de uma verdadeira cultura nacional vigorosa, mas, por exemplo, na mera assimilação intelectual do que se produzia na França, que reagia, no século 19, ao Racionalismo iluminista do século 18. A cultura brasileira, além de se alimentar do Romantismo farsesco de Rousseau, criou uma visão distorcida sobre nós mesmos ao importá-la irrefletidamente algo que já e, seu país de origem, provocava estragos. Diz Vieira de Mello: “Na realidade, o que caracteriza a personalidade do homem brasileiro é não a bondade, como quer Cassiano Ricardo, ou a cordialidade como pretendeu, pelo menos durante algum tempo, Sérgio Buarque de Holanda. Um outro traço deverá aqui orientar nossa pesquisa, traço que se liga a Rousseau de modo apenas indireto e que a partir do século XIX começou a se acusar entre nós de forma cada vez mais acentuada, revelando o progresso que a influência de uma cultura de inspiração renascentista realizava nas nossas atitudes e na nossa mentalidade – quero referir-me ao estetismo, à tendência estetizante, à compreensão da vida realizada através de um ponto de vista meramente estético”.

Diz ele que o estetismo “é a concepção de uma cultura meramente formal, meramente ornamental”; ou seja, não há um reconhecimento dos aspectos morais e profundos da cultura 

Eis – retornando ao tema inicial, as questões levantadas por Ed Motta – o problema fundamental de nossa cultura. O brasileiro, influenciado pelo estetismo “parece ser, em nossos dias, um homem que se contempla a si mesmo e que contempla os outros como se o mundo fosse um palco e como se a sua vida devesse ser destituída de sentido, caso não pudesse se constituir como um espetáculo a que assistissem um certo número de pessoas assíduas e atentas”. A distorção que isso causa em nosso modo de ser, de viver e de nos relacionarmos, é brutal. Aquela autenticidade um dia almejada se transformou num mero jogo de cena, num comportamento de absoluta e indisfarçável falsidade. Vieira de Mello arremata – a citação é longa, mas fundamental:

“O brasileiro de nossos dias é pouco sensível às qualidades da alma que são menos óbvias, às qualidades que são, por assim dizer, invisíveis. Escapa-lhe completamente o sentido valioso de um gesto de reticência, de uma palavra não proferida, o valor moral associado à repressão silenciosa de um movimento de egoísmo, de vaidade ou de orgulho. A exteriorização dos sentimentos parece constituir para ele a garantia única de que tais sentimentos existem. Essa psicologia de extrovertidos poderia naturalmente, através de explicações de um cunho supostamente científico, ser justificada à luz das condições raciais e somáticas do povo ou climatéricas do país. Mas, na verdade, é a compreensão do mundo como um palco que leva o brasileiro a uma exteriorização excessiva de seus sentimentos, exteriorização que, muitas vezes, não é possível levar a efeito sem uma certa insinceridade. Os abraços prolongados, a palmada leve nos ombros, as expressões exageradas de louvor e entusiasmo, a facilidade com que proclama sua amizade por tais ou quais pessoas que conhece apenas – todos esses traços parecem, à primeira vista, poder ser explicados por um fundo irreprimível de sua natureza generosa. Mas quando se constata que há um outro verso da medalha, quando se verifica que aos abraços prolongados, à palmada leve nos ombros, podem suceder, sem motivo aparente, manifestações de descaso pelo homem que acaba de abraçar e que já agora se afasta; quando se compreende que as expressões exageradas de louvor e de entusiasmo se aplicam indistintamente a gregos e troianos; quando finalmente se consigna que na ausência dos amigos da pessoa por quem professou uma tão calorosa amizade, não raro encontra a oportunidade de atribuir-lhe defeitos de uma extrema gravidade – quando se verifica tudo isso, a idéia de uma bondade, de uma generosidade ou de uma cordialidade natural do homem brasileiro sofre um certo abalo. Dir-se-ia que a verdadeira mola desses gestos de aparência tão espontânea e inocente fosse um cálculo maquiavélico, uma intenção egoísta e deliberada. Num país como o nosso onde tudo se faz por amizade, seria com efeito absurdo, para quem quer prosperar, criar deliberadamente limites à manipulação de um tal sentimento, fazer distinções, estabelecer critérios de seleção na escolha de amigos. O mais sensato naturalmente seria desencadear um processo inflacionário da amizade que nos permitisse ter sempre à mão a moeda capaz de promover nosso interesse. Daí os abraços prolongados, a palmada leve nos ombros, a proclamação de amizade etc., etc”.

Quando Ed Motta diz “eu não quero ser humilde” e reclama da humildade, dizendo “humilde é um atestado de morto”, ele está, na verdade, se insurgindo contra o estetismo; quando fala de enófilos que adoram fazer pose, ele está falando contra o estetismo. Ou mesmo quando fala mal de Elvis Presley e Johnny Cash, ele está falando contra o estetismo. Ed Motta não precisa disfarçar seus talentos, seus gostos ou mesmo suas críticas, pois sua autenticidade é fundamentada na convicção que ele tem sobre a excelência. Vê-lo, num dia, dizer que não gosta de maionese, e, no outro, fazer uma live  histórica com o lendário Greg Phillinganes – tecladista que foi diretor musical de Michael Jackson, tocou em Off the wall e foi o único a tocar no clássico absoluto Songs in the key of life, de Stevie Wonder –, é maravilhoso. A quantidade de informações trazidas num vídeo sobre os melhores contrabaixistas de todos os tempos, é um presente precioso, fruto da generosidade de um artista que não precisa desprezar (de prezar menos) a si próprio para parecer aceitável aos estetas. A conversa com o produtor João Marcelo Bôscoli, amigo de longa data, é uma oportunidade de ouvir não só alguém que conhece Ed Motta, mas que sabe – e isso fica muito claro – que todos aqueles arroubos são oriundos de uma personalidade dócil e sensível.

A questão fundamental é: Ed Motta não suporta a mediocridade; e ainda que se exceda em muitos momentos, que pareça um misantropo que não gosta de nada e de ninguém, quem o acompanha sabe que Ed gosta mesmo é do que é bom, indiscutivelmente bom, sobretudo para quem não só aprecia, mas tem conhecimento das coisas. E Ed, é forçoso admitir, é uma pedra no sapato dos que sabem que só estão onde estão porque se embrenharam no espírito do tempo ou têm o famoso QI (quem indica), mas não por talento genuíno. A excelência artística é para poucos, mas são esses poucos que imprimem dignidade ao ofício e deixam a marca do eterno no tempo.

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