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“Nossa harmonia repousa, sobretudo, na lei dos contrastes, a qual foi, em todas as épocas, a lei mais importante em arte. Só subsiste ainda, no presente, o contraste interior, que exclui todo e qualquer recurso a outros princípios de harmonia que somente poderiam prejudicar e que, aliás, seriam supérfluos.” (Wassily Kandinsky)
Lembro da primeira noite, ainda durante a pandemia, quando participei, pela primeira vez, do Empoeirado, programa musical que Ed Motta apresentava, à época, através de uma plataforma de videoconferência. Como descrevi no artigo sobre o encontro que tivemos, no Rio de Janeiro, no ano passado, a “cada quinta-feira à noite em que Ed abria uma sala no Zoom e começava a apresentar-nos as raridades musicais que fazem a sua cabeça, ao mesmo tempo em que tínhamos aquele deleite dos privilegiados, nossa admiração por ele e por sua obsessão aumentava”. Por ocasião da gravação e produção de seu mais recente álbum – sobre o qual também já escrevi nesta Gazeta do Povo –, Ed pausou o programa por tempo indeterminado; mas guardo com saudade aqueles momentos únicos de quinta à noite. Atualmente, Ed transferiu parte dessa curadoria para os já tradicionais (e, por vezes, polêmicos) lives, nos quais, em meio a uma série de brincadeiras e frivolidades, brinda a sua audiência com dicas valiosíssimas.
Como sempre digo, não sou músico e não tenho conhecimentos que me possibilitem discernir, tecnicamente, acordes, harmonias e outros aspectos fundamentais da música; o único recurso que possuo é meu amor pela arte e minha sensibilidade, que julgo aguçada (e educada) para uma fruição mais detida e aprofundada de obras artísticas. De música considero-me apenas um ouvinte atento e bastante dedicado. E admiro não somente a arte em si, mas toda a dedicação com a qual os verdadeiros artistas demonstram o exercício de sua vocação.
Ed Motta e Guilherme Arantes, dois geniais artistas, desfilaram por seus hits, com arranjos belíssimos da São Paulo Big Band
E quando falo de verdadeiros artistas, preciso que o amigo leitor compreenda que quero distinguir precisamente aqueles que vivem de sua arte daqueles que vivem para a sua arte, não se importando com o ônus que isso lhes traga. Como afirmou Miles Davis, numa entrevista, ao ser perguntado se ele ainda seria um músico caso ninguém o ouvisse: “claro, pois eu amo a música. Está na minha cabeça e não consigo tirá-la”. Ou como Kylie Jefferson, uma jovem bailarina que participa do emocionante documentário Dance Dreams: Hot Chocolate Nutcracker, sobre a Debbie Allen Dance Academy (sim, também já escrevi a respeito), que, ao perceber que seu corpo parecia inadequado para o balé clássico, disse a si mesma: “ʻSe quero fazer isto, tenho de descobrir como fazer funcionar para mimʼ. Mas o difícil foi compreender que a arte que me escolheu não foi criada à minha imagem, e foi muito difícil chegar a essa conclusão. Mas, ao mesmo tempo, foi essa arte que me escolheu. Não tenho escolha a não ser fazê-lo e dar o meu melhor”.
E que experiência gloriosa foi ver dois desses verdadeiros artistas vivendo um momento “você também?” – a demonstração da afinidade, que C.S. Lewis reputa como o início de uma amizade – na imponente Sala São Paulo, no último sábado, dia 9, por ocasião da série Encontros Históricos, promovido pela sala de concertos e que une sempre dois artistas, acompanhados pela excelente São Paulo Big Band. E talvez nada represente melhor o título da série como o que presenciamos durante aquelas pouco mais de duas horas nas quais dois geniais artistas desfilaram por seus hits, com arranjos belíssimos da São Paulo Big Band, conduzida pela excepcional pianista, flautista, compositora e arranjadora Débora Gurgel.
Compositores meticulosos e absolutamente inventivos, Ed Motta e Guilherme Arantes são conhecidos – porque, como disse Arantes em entrevista ao jornal O Globo, “o Brasil é um país que está muito no cover, que está muito no passado, que tem baixa tolerância com a novidade” – por suas músicas mais, digamos, palatáveis. Enquanto Ed Motta continua cantando as deliciosas Manuel e Espaço na Van – mesmo tendo em sua discografia obras inusitadas como Dwitza e Chapter 9 –, Guilherme Arantes enfileira sucessos novelescos que fazem os nascidos nos anos 1970 (ou antes), como eu, viajarem no tempo, diretamente para os bailinhos de garagem e as danças com a vassoura.
Mas não se engane: qualquer pessoa que ouça com cuidado essas canções de sucesso perceberá a genialidade dos arranjos, das melodias e das escolhas peculiares no estilo de composição. Arantes vem do rock progressivo, oriundo da banda Moto Perpétuo, criou canções inesquecíveis como Pedacinhos e Um dia, um adeus, canções com arranjos e harmonias sofisticadíssimas, e a jethrotulliana Amanhã. Pianista virtuose, foi elogiado por Tom Jobim, seu ídolo, e é um dos poucos pianistas brasileiros a figurar no hall da fama da fabricante de pianos Steinway & Sons, junto a nomes como Franz Liszt e Duke Ellington. Já Ed Motta uniu com maestria o que há de melhor na soul music americana com a dissonância brasileira de um gênio como Johnny Alf e da Bossa Nova de Tom Jobim, João Gilberto e João Donato. Não é qualquer músico que consegue tocar – do jeito que se deve fazê-lo, obviamente – canções aparentemente simples como a dançante Colombina ou Marta, com sua linha de baixo alucinante. Behind The Tea Chronicles, seu último álbum, é coisa de gente muito grande. Ou seja, estamos diante de dois dos mais prolíficos e talentosos artistas não só do Brasil, mas do mundo. Dois universos de talento e referências, que, exatamente por isso, são capazes de construir uma arte sólida, original, mas, ao mesmo tempo, popular e complexa, absolutamente criativa e fruto daquilo que Miles, na mesma entrevista citada acima, chamou de sinônimo de felicidade: conhecimento.
No show de sábado ainda fomos brindados com uma espécie de mini-workshop, involuntário, informal e descontraído, nos qual, em comentários quase aleatórios sobre seus gostos musicais, os dois artistas, numa demonstração comovente de sua afinidade, nos emocionaram pelo tamanho amor que demonstram pela Música (com “M” maiúsculo). Meus olhos marejaram por várias vezes, não só por conta das canções, brilhantemente executadas e que me transportaram, em muitos momentos, para tempos saudosos, mas por ter consciência de estar diante de um momento único de devoção absoluta à arte. Dois artistas que unem, de modo magistral, o conhecimento e a alma da música.
Ed Motta e Guilherme Arantes nos mostraram, através de sua inteligência, de sua devoção quase religiosa à música e de sua sensibilidade única, que a verdadeira Arte vive
O pintor abstrato Wassily Kandinsky (citado em epígrafe), em seu ensaio A arte atual está mais viva do que nunca, fala sobre a essência do verdadeiro artista como sendo uma união entre forma e conteúdo, e afirma que “a forma sem conteúdo não é uma mão, mas uma luva vazia”. E complementa:
“O artista ama a forma apaixonadamente, assim como ama seus instrumentos e cheiro de terebintina, porque são meios poderosos de evocar o conteúdo. Mas esse conteúdo não é, obviamente, uma narrativa literária (que, em geral, pode fazer parte de um quadro ou não), senão a soma de emoções provocadas pelos meios puramente pictóricos [...]. A arte nunca provém apenas do cérebro [...]. Em geral, o equilíbrio entre o cérebro (momento consciente) e o coração (momento inconsciente, intuição) é uma das leis da criação, uma lei tão antiga quanto a humanidade.”
Ed Motta e Guilherme Arantes nos mostraram, através de sua inteligência, de sua devoção quase religiosa à música e de sua sensibilidade única, que a verdadeira Arte vive, purga emoções e cura, tal como nos fala, desde a antiguidade, Aristóteles. Amém por isso. Que noite!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos