“É curioso”, disse Charlotte. “A boa pedagogia é exatamente o contrário das boas maneiras. Numa roda social, não devemos nos aferrar a nenhum assunto em particular, mas numa aula o primeiro mandamento seria o da luta contra toda e qualquer distração.” (J.W. Goethe, As afinidades eletivas)
Na última semana, numa reunião do Conselho de Classe, foi evidenciada a influência da tecnologia no ambiente escolar – mais especificamente, no processo de aprendizagem. Posicionei-me contrário a certo consenso que vê a tecnologia como aliada incontornável na educação, sob a justificativa de que os alunos, atualmente, têm o mundo ao alcance das mãos e, aparentemente, não precisam mais do “confinamento” de uma sala de aula por tantas horas, tampouco da figura do professor como “detentor do conhecimento”.
A ideia é que, diante de tal cenário, a escola e os professores precisam se valer de toda tecnologia disponível – recursos audiovisuais, realidade virtual, lousa digital, gamificação etc. – a fim de tornar a escola e a aprendizagem mais atrativa para os alunos de hoje, pois o modelo de educação tradicional, conteudista, com lousa, carteiras dispostas umas atrás das outras, sinal de início e encerramento de aulas, caderno, lápis, caneta, borracha... enfim, toda aquela parafernália analógica estaria completamente ultrapassada e seria incapaz de chamar a atenção do aluno para a importância do ensino. Some-se a isso toda a crítica ao modelo tradicional feita por pedagogos, sociólogos e educadores modernos e assumida por grande parte da burocracia escolar, e a escola tornou-se um ambiente desacreditado.
O mundo atual, inundado de distrações – permitidas e estimuladas, inclusive, pelas escolas –, praticamente impossibilita a aquisição de conhecimentos
No terceiro artigo de uma série que escrevi sobre os problemas da educação, fiz uma crítica a uma das maiores promessas pedagógicas do século 20, a Escola Nova, que se propunha a “uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida”, conforme diz o seu Manifesto, publicado em 1932. O movimento Escola Nova criticava “a homogeneização do ensino, dizendo: ʻse as crianças são tão diferentes entre si, por que o ensino deve ser tão homogêneo?ʼ Desse modo, ʻos escolanovistas queriam que o ensino se adaptasse à natureza da criançaʼ”. O problema é que “eliminando-se a relação mestre-pupilo, o professor fica à mercê da vontade do aluno, cuja alma se encontra vulnerável a todo tipo de influências e distrações”.
Passados quase 100 anos dessa experiência carregada de sentimentalismo, temos uma das piores educações do mundo. Num exame internacional de proficiência em leitura, realizado em 2021, “a média dos brasileiros foi de 419 pontos, acima apenas de seus colegas da Jordânia, Egito, Marrocos e África do Sul. O Brasil teve o mesmo resultado de Kosovo e Irã, perdendo de todos os outros países, entre eles [aqueles] com sistemas de educação precários, como Azerbaijão e Uzbequistão. Os países do topo do ranking foram Cingapura (587 pontos), Irlanda (577 pontos) e Hong Kong (573 pontos). Ou seja, ainda que levemos em consideração os anos de pandemia – que, de fato, foram catastróficos para a educação –, o que justifica estarmos na posição 52 de 57 países? Será a falta de tecnologia? Ao que tudo indica, não.
O livro As crianças mais inteligentes do mundo, da jornalista Amanda Ripley, publicado em 2013, afirma: “ʻNa maioria dos países de alto desempenho educacional, a tecnologia está espantosamente ausente da sala de aulaʼ, disse-me Andreas Schleicher, o guru internacional da OCDE. ʻNão tenho explicação para isso, mas de fato parece que esses sistemas concentram seus esforços essencialmente na prática pedagógica, e não em equipamentos eletrônicosʼ”. Em tempos mais recentes, a adoção da tecnologia, por exemplo, em Cingapura – país que ficou em primeiro lugar no teste supracitado – não parece ter o fetiche que temos por aqui. A ex-ministra da Educação Sun Xueling disse que “o uso da tecnologia educacional nas escolas visa complementar, em vez de diluir, o papel dos professores em ajudar os alunos a aprenderem habilidades de nível superior”.
E, sobre o uso de inteligência artificial (IA) na educação, a própria Agência Governamental de Tecnologia afirma: “Mesmo enquanto Cingapura explora formas de aumentar a utilização da IA na educação, especialistas e autoridades reiteraram que a tecnologia nunca substituirá totalmente o papel crucial que os professores desempenham na educação e orientação dos alunos. Afinal, os professores não são apenas repositórios de fatos e números que são regurgitados aos alunos. Eles nutrem, inspiram e incentivam as mentes jovens a aumentar sua curiosidade. Eles também fornecem comunicação humana e apoio à medida que os jovens amadurecem e encontram o seu lugar no mundo. Estas são funções que a IA não será capaz de assumir”.
A verdade é que, em educação, o componente mais fundamental é a atenção. Não existe maneira de se aprender algo se não compreendermos a necessidade de dedicarmos nossa atenção àquilo que queremos absorver. O mundo atual, inundado de distrações – permitidas e estimuladas, inclusive, pelas escolas –, praticamente impossibilita a aquisição de conhecimentos. Não se trata de termos aulas mais interativas, com mais recursos tecnológicos; de dispormos as cadeiras em círculo ou mesmo levarmos os alunos para assistir a aulas num parque. Se a escola não firmar e reafirmar o seu papel primordial, que é a educação enquanto transmissão de conhecimentos e de valores complementares aos das famílias, tudo estará perdido.
O filósofo francês Émile-Auguste Chartier, mais conhecido como Alain, diz, em seu Pedagogia Infantil:
“O mais alto valor intelectual, e até um dos valores morais, é o de poder prestar atenção. Assinalemos de imediato que a atenção é voluntária; é a vontade na inteligência. No outro extremo, o sinal mais marcante dos retardados é a desatenção, a impotência em concentrar o pensamento. A desatenção deve ser descrita, pois esta se apresenta sob várias formas. Há a desatenção total ou indiferença, que é a marca do último grau de estupidez. Nesse caso só as impressões fortes e súbitas ou os apetites animalescos provocam uma reação qualquer.”
A tecnologia pode nos ajudar, pode ser uma aliada nesse processo, mas nunca substituir o papel que a escola e o professor têm na formação de uma sociedade de massas
A infodemia, o excesso de informação a que os jovens de hoje são submetidos, não é conhecimento, é distração. Por outro lado, ter o mundo às mãos através da globalização instantânea que a internet nos oferece desestimula o refinamento intelectual, a memória e a atenção. Como diz T.S. Eliot na primeira estrofe de seu poema Os coros de “A Rocha”:
“A Águia paira sobre os píncaros do Céu,
O Caçador com seus cães rastreia-lhe o trajeto,
Ó perene revolução de estrelas consteladas,
Ó perene recorrência de estações determinadas,
Ó mundo de primavera e outono, nascimento e morte!
O infinito ciclo da ideia e da ação,
Infinita invenção, experiência infinita,
Traz o conhecimento do voo, mas não o do repouso;
O conhecimento da fala, mas não o do silêncio;
O conhecimento das palavras e a ignorância do Verbo.
Todo o nosso conhecimento nos aproxima da ignorância,
Toda a nossa ignorância nos avizinha da morte,
Mas a iminência da morte não nos acerca de DEUS.
Onde a vida que perdemos quando vivos?
Onde a sabedoria que perdemos no saber?
Onde o conhecimento que perdemos na informação?
Os ciclos do Céu em vinte séculos
Afastaram-nos de DEUS e nos acercaram do Pó.
A escola jamais poderá competir com o avanço tecnológico. É inútil essa pretensão. No entanto, repito, é imprescindível que ela reafirme o seu papel na sociedade, um papel que para o jovem de hoje, nativo digital, parece arcaico. E é. Mas sem ele não há futuro. A tecnologia pode nos ajudar, pode ser uma aliada nesse processo, mas nunca substituir o papel que a escola e o professor têm na formação de uma sociedade de massas; e as exceções sempre confirmarão a regra. Mas, se insistirmos em querer fazer a escola seguir a marcha sem rumo do progresso, sem atentar não só para as fronteiras da técnica, mas para o valor das interações profundas, transformadoras, seu papel de depósito de crianças e adolescentes será tristemente confirmado.
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