“As ideologias não estão preocupadas em encontrar e expressar a verdade por seu valor de verdade. O que lhes interessa é confeccionar uma verdade utilizável. Em outras palavras, ‘a verdade’ não é, para o ideólogo, senão um instrumento manipulador, um dispositivo apto a servir, funcionalmente, um interesse político determinado e um projeto de ação”. (Andrei Pleșu, Da alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental, É Realizações)
Tenho acompanhado, nos últimos dias, a reação, principalmente da esquerda, com a possibilidade realíssima (escrevo em 24 de outubro) do resultado da eleição, que se lhe mostra altamente desfavorável. Mais do que isso: se mostra, do ponto de vista simbólico, catastrófico. Sim, porque não se trata somente de perder a eleição, mas de perdê-la para alguém cuja imagem é a encarnação de tudo o que ela vem tentando demonizar há décadas. A verdadeira “viúva da ditadura” deu de cara com um cadáver insepulto. Não porque o candidato militar seja um representante autodeclarado do “ano que não terminou”, mas porque suas declarações sobre o período colocam em xeque a narrativa de martírio construída por aqueles que, atualmente, ocupam as mais altas esferas do poder nacional. E esse é só um aspecto. Há mais em jogo.
Politicamente, é uma ruptura com a era PT/PSDB, que garantia o continuísmo e a hegemonia dessa camarilha que gira em torno de Fernando Henrique Cardoso e Lula. A situação atual representa, pela primeira vez, uma ameaça real a essa política de conchavos, de negociatas, de arranjos e rearranjos que ocorre desde que nos enganaram com o discurso de Estado Democrático de Direito e Constituição Cidadã quando, na verdade, só queriam se locupletar no poder enquanto nos mantinham – nós, o povo – à margem, numa política de recessão planejada e escravidão ideológica.
Mas o que é mais curioso nisso tudo, para mim, é o comportamento reacionário daqueles que se dizem defensores da democracia. Surpreendidos por uma circunstância absolutamente inacreditável, só lhes restou saírem da zona de conforto e mostrarem, à luz do dia, sua face mais intolerante, radical e manipuladora – fascistoide, por assim dizer. A classe falante e seus idiotas úteis abandonaram toda a compostura e se lançaram numa diatribe delirante em torno daquele que passaram a chamar, infantilmente, de “Coiso”. Uma cantilena do ódio ideológico muito bem explicada pelo grande filósofo romeno Gabriel Liiceanu em seu Do Ódio (Vide Editorial):
“O ódio vazio tem a eficiência de um arco e flecha, de um mosquete que dá um único tiro. Previsto como ideologia, ele se torna uma arma de repetição […] Pela ideologia, o ódio da o passo da natureza para a cultura. Já não é deixado correr, ao acaso, no álveo do psíquico humano, seguindo os meandros, os cansaços e as mobilizações esporádicas deste, mas o traçado dele é disciplinado: o ódio ganha desde agora um débito constante e uma direção firme. Ele se transforma em ódio canalizado. Mas é importante que, em seguida a esta união ‘civilizatória’ com a ideologia, o que se perde no espaço da espontaneidade e da ‘inocência’ tradicional se ganha no da eficácia”. (pp. 49, 56)
Liiceanu ainda afirma que: 1. “organizado como ideologia, o ódio passa a ser consciência de si, passa a ser ódio com programa”; 2. é enobrecido por ser incluído “numa visão do mundo destinada, pela altura e envergadura teorética dele, a justificar tanto o ódio como paixão quanto seu cotejo de crimes”; 3. “justificado ‘cientificamente’ e ‘historicamente’ o ódio e os crimes que o acompanham, a ideologia os transforma em normais e necessários”; 4. “a ideologia introduz o ódio numa equação de felicidade”; 5. “o homem enquadrado por uma ideologia pode odiar livremente e, igualmente, pode ter orgulho desse ódio”; 6. “organizado intelectualmente o ódio, portanto a febre negativa da paixão, a ideologia distorce fatalmente a verdade e cultiva de maneira sistemática a mentira” […] “A mente escurecida pelo ódio não pode, falando platonicamente, ter acesso à verdade, mas apenas ao falso” (pp. 56-58).
O pequeno livro de Liiceanu é fundamental para compreendermos esses tempos de ódio ideológico, de histeria coletiva em torno de um objeto imaginário cujos crimes não se podem apontar senão por uma distorção maliciosa dos fatos. Essa gente enlouquecida perdeu completamente a capacidade de analisar o que está ocorrendo, não consegue – por conta de seu sentimentalismo tóxico e de seu ódio – sequer articular sua rejeição a fim de resistir racionalmente, e agora berra, a plenos pulmões, evocando o futuro do pretérito com Chicos e Caetanos nos palanques e muita ressaca dos anos 1960. Patético, no mínimo.
O que estamos presenciando, na verdade, é a resistência psicótica dos ideólogos. Todo aquele discurso de justiça social, conquistas de direitos, redistribuição de renda, taxação de grandes fortunas etc. – que transita entre a social-democracia e o socialismo –, visando a conquista dos corações e mentes do povo, foi por água abaixo quando a situação real do povo tornou-se inescusável: o abismo socioeconômico continua, a violência explodiu e o pobre – que, segundo Lula, agora pode “viajar de avião” – compra o celular em 36 prestações, é roubado antes de começar a pagar e ainda corre o risco de ser assassinado, sumariamente, na própria periferia, enquanto aguarda o ônibus para ir trabalhar. Alunos usam drogas dentro das escolas, o tráfico domina moralmente as periferias, a polícia é ineficiente (quando não se mostra inimiga) e mais da metade da população brasileira nem sequer tem saneamento básico. A miséria? Aumentou nos últimos 15 anos. Esse é o resultado de um projeto que nos levou a dois recordes: o maior caso de corrupção e a maior recessão da história.
Enquanto políticos saqueavam o país, todo um sistema de manipulação ideológica ocorria através da cultura e da educação.
Mas tal projeto entrou em colapso. Por quê? Porque não se pode viver, para sempre, de discursos. A interpretação ideológica da realidade cobra seu preço. Transitar na região do falso, do ideológico, é viver na Segunda Realidade – conceito que Eric Voegelin emprestou do romancista Robert Musil e o desenvolveu em sua obra. Mais do que isso: segundo Voegelin, qualquer interpretação acadêmica (que ele chama de noética) que se pretenda fazer de uma sociedade tem de dar conta que aquele ambiente já está preenchido com uma autointerpretação. Ou seja:
“cada sociedade é constituída por uma autointerpretação de sua ordem, e é por isso que cada sociedade conhecida na história produz símbolos – míticos, revelatórios, apocalípticos, gnósticos, teológicos, ideológicos, e assim por diante – pelos quais expressa sua experiência de ordem”. (Voegelin, Anamnese, É Realizações, p. 427)
Disseminar uma interpretação pronta, academicamente construída, meramente teórica, como forma de interpretar e compreender os problemas de uma sociedade – como faz, por exemplo, o marxismo ou mesmo as teorias identitárias – é uma estratégia que leva ao caos social. A interpretação racional (noética, acadêmica) deve ser mediada por essa interpretação não noética (ou autointerpretação). A realidade sociopolítica é dada por essa tensão. O que as ideologias fazem é justamente renegar os valores construídos ao longo da história a fim de substituí-los por sua agenda de transformação da mentalidade pública.
O que acontece hoje, no Brasil, em relação a toda essa corja política e intelectual que temos é que, após mais de 40 anos derramando ideologias sobre a cabeça do povo brasileiro – sobretudo das periferias –, sem qualquer preocupação com as reais necessidades das pessoas; de décadas tentando substituir seus valores por discursos persuasivos e desagregadores – para, através disso tudo, dominar pelo assistencialismo e pela escravidão ideológica dos ressentidos –, a sociedade surtou e percebeu que a promessa de um mundo melhor se mostrou, na verdade, um projeto de dominação total e perene.
A resposta está aí. Lidem com ela. Sintam o amargo de suas frustrações.
Se essa resposta foi canalizada num candidato – ou mesmo se esse candidato se aproveitou da insatisfação popular para ancorar nela seu projeto pessoal –, não vem ao caso nesse momento. Nem se há outro projeto ideológico em curso. Mais importante é que políticos, ideólogos, artistas, jornalistas, idiotas úteis e todos aqueles que estão desesperados com a possibilidade de ver seu pior pesadelo se tornar realidade – mesmo que simbolicamente – compreendam que não se pode enganar o povo para sempre.
Cumpre, agora, ao povo brasileiro, aproveitar a oportunidade para assumir o protagonismo democrático e a árdua tarefa de reconstruir o país. Se é isso, realmente, que queremos, é hora de arregaçar as mangas e trabalhar duro, pois esse é só o começo.
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Agradeço imensamente a Elpídio Mário Dantas Fonseca, meu caríssimo amigo em Cristo e tradutor de todas as obras citadas neste artigo.
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