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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Em defesa da família (negra)

Detalhe de "A Pastoral Visit", de Richard Norris Brooke.
Detalhe de "A Pastoral Visit", de Richard Norris Brooke. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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“Filho, é fácil qualquer um faz, / Mas criá-los, não, você não é capaz. / Ele nasce, cresce, e o que acontece? / Sem referência a seguir, sem ter a que ouvir, / Um mau aluno na escola certamente ele será, / Mais um menino confuso no quarto escuro da ignorância. / Se o futuro é das crianças / Talvez um dia de você ele se orgulhará.” (Racionais MCs, Negro Limitado)

Em minha saga por acompanhar criticamente o podcast Mano a Mano, do rapper Mano Brown, deparei-me, no episódio em que ele entrevista o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos, com um comentário muito interessante – e sintomático – que Brown fez sobre família. Disse ele – a citação é longa, mas emblemática:

“Dos entrevistados que nós trouxemos, muitos não têm pai [...]. Estava conversando com meu amigo Wilsão [...], ele falando sobre família, e ele é um cara de esquerda, não é um cara de direita, não; e ele falou ʻa gente tem de reaver a família...ʼ [...]. E eu falei:  ʻcê vê, Wilsão, que louco, parece dois caras de direita falando sobre família e religião e respeito e talʼ. Onde que é o limite, de você não ser um cara, sei lá... o que interessa se você é de esquerda ou de direita e faz tudo errado? Mas, por exemplo, você é um esquerdista, mas você admite que..., realmente, que o começo é pela família, o começo é com uma disciplina, uma certa ordem na vida que às vezes nos falta; essa vida mambembe que a gente leva do bêbado e o equilibrista que está sempre aqui, e pega dali e se vira nos trinta e faz e acontece [...]; Igual você falou uma hora, que a vida de ator é uma vida instável, a nossa vida é uma vida instável. Eu sempre começo a perguntar, principalmente se o entrevistado é negro, eu pergunto da raiz, da infância; porque se o cara tem pai e mãe é uma coisa, se não tem é outra. E a gente vai vendo, no decorrer da história, o cara vai contando, as tropeçadas que o cara vai dando por não ter o pai na vida. E os caras que têm chegam mais longe, isso é um fato. Então uma coisa: se o branco precisa de tradição, família e propriedade, o negro também precisa. Essa sigla é odiada, né, ela é ligada a tudo que não presta. Eu cresci nos últimos vinte anos, nas minhas reuniões com o pessoal, essa família [sigla] era muito citada e eu nunca soube o que era isso [...]. Mas depois eu parei pra pensar e, do ponto de vista do homem negro – e eu falo até do homem e não da mulher [...], a mulher sempre segurou a onda, ela sempre foi fixa – a sociedade africana é matriarcal em muitos lugares, no Brasil também é –, e o homem negro, até pela condição de foragido eterno, de proibido, a gente é flutuante, a gente não consegue ser fixo nas nossas casas, nas nossas famílias. Então eu noto que muitos dos nossos não têm o pai em casa, mas eu também sei os motivos que levam a gente a ir pra rua e muitas vezes desvincular para poder viver.”

O jovenzinho da periferia, sem os pais, perde pelo menos metade de sua capacidade para enfrentar e superar os obstáculos que o esperam

Aqui temos, exatamente, aquilo que o pensamento anglo-saxão chama, positivamente, de common sense, de senso comum. Como diz G.K. Chesterton quando está descrevendo a ética da terra dos elfos: “há certas sequências ou desenvolvimentos (casos de uma coisa seguindo outra) que são, no verdadeiro sentido da palavra, razoáveis. Eles são, no verdadeiro sentido da palavra, necessários. Assim são as sequências matemáticas e meramente lógicas. Nós, do país das fadas (que somos as mais razoáveis de todas as criaturas), admitimos essa razão e essa necessidade”. O que Brown constata – ele não está meramente dando uma opinião, mas descrevendo a realidade – é algo que ele conhece muito bem, porque é filho dessa realidade, assim como muitos moradores da periferia não só no Brasil, mas no mundo.

Aliás, essa não uma constatação nova para Brown. Na letra da clássica Negro limitado, já citada e analisada por mim em outro artigo, aqui, nesta Gazeta do Povo, e que consta na epígrafe desta coluna, a advertência do eu lírico é de alguém que sabe, efetivamente, que a família unida é um elemento fundamental da segurança, da ordem e da prosperidade de um indivíduo. E é disso que se trata. A família, muitas vezes, é o único alicerce de uma pessoa que não nasceu com a pseudossegurança dos bens materiais; o jovenzinho da periferia, sem os pais, perde pelo menos metade de sua capacidade para enfrentar e superar os obstáculos que o esperam. Menosprezar isso é condenar, sumariamente, a periferia aos caprichos do Estado oligárquico que dela sempre se aproveitou.

Mas a constatação mais impressionante que ele faz é de que a esquerda, conscientemente, negligencia a família, quando não a combate frontalmente. Por essa, caro leitor, eu realmente não esperava. A distinção que ele faz, julgando parecerem “dois caras de direita falando sobre família e religião e respeito e tal” é desconcertante, pois revela o nível de ideologização de uma coisa que, há não muito tempo, parecia não ter ideologia. Mesmo porque, se pegarmos os movimentos negros da primeira metade do século 20, ainda não totalmente contaminados pelo marxismo – como a Frente Negra e o Centro Cívico Palmares, a valorização da tradição, da família e da propriedade eram centrais, não por serem discursos de direita, mas por serem importantes e porque os líderes não militavam causas alienígenas às preocupações da população negra – como a ideologicamente igualitária do socialismo –, mas entendiam perfeitamente o “nós por nós”, que sempre foi a única coisa que fez o negro prosperar nesse país. Como ele mesmo emendou – demonstrando, mais uma vez, que, guiado pelo senso comum é capaz de dizer verdades eternas: “o que interessa se você é de esquerda ou de direita e faz tudo errado?”

O fato é que a desvalorização e o combate à família parte, num primeiro momento, da própria ideologia marxista, que julga a família nuclear (burguesa, eles dizem) o embrião da luta de classes e o alicerce do capitalismo. Ou seja, a esquerda branca burguesa, com sua família tradicional íntegra e perpetuamente privilegiada, condena a família porque esse é um passo importante de sua revolução eivada de complexo de culpa. Diz Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado:

“O primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade.”

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Mesmo sem vaticinar a extinção da família como um todo, ele afirma que “longe de desaparecer, antes há de se realizar plenamente a partir desse momento”. Mas a forma final dessa transmutação é apenas imaginada, sem qualquer amparo na realidade humana conhecida:

“Porque com a transformação dos meios de produção em propriedade social desaparecem o trabalho assalariado, o proletariado e, consequentemente, a necessidade de se prostituírem algumas mulheres, em número estatisticamente calculável. Desaparece a prostituição e, em lugar de decair, a monogamia chega enfim a ser uma realidade – também para os homens. Em todo caso, modificar-se-á muito a posição dos homens. Mas, também, há de sofrer profundas transformações a das mulheres, a de todas elas. Quando os meios de produção passarem a ser propriedade comum, a família individual deixará de ser a unidade econômica da sociedade. A economia doméstica converter-se-á em indústria social”.

E, por fim:

“O trato e a educação das crianças tornar-se-ão públicos; a sociedade cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam legítimos ou naturais. Desaparecerá, assim, o temor das ʻconsequênciasʼ, que é hoje o mais importante motivo social tanto do ponto de vista moral como do ponto de vista econômico – que impede uma jovem solteira de se entregar livremente ao homem que ama. Não bastará isso para que se desenvolvam, progressivamente, relações sexuais mais livres, e também para que a opinião pública se torne menos rigorosa quanto à honra das virgens e à desonra das mulheres?”

A família é, antes de tudo, uma instituição, um conceito que carrega, em si mesmo, segundo a tradição que nos trouxe até aqui, uma série de valores que organizam não só a perpetuação da espécie como a prosperidade material e afetiva

Ou seja, ao mesmo tempo, uma nova forma de família e a liberação sexual. Ou ainda, como diz Marx no Manifesto do Partido Comunista, o ideal marxista é a “abolição da família!” (uma palavra de ordem), pois, só assim, “a família dos burgueses desaparece naturalmente com o desaparecimento desse seu complemento, e ambos desaparecem com a abolição do capital”.

Tais maquinações marxistas desembocaram na feroz acusação mais recente, sob a aurora da pós-modernidade, da moralidade cristã e da família tradicional, nuclear (marido, esposa e filhos), como nociva a uma sociedade cujos “direitos” de setores disruptivos – como a comunidade LGBTQIA+ – tornaram-se imperiosos. Ou seja, a família tradicional deveria acabar não só porque sustentava o capitalismo, mas porque condenava a união homoafetiva e seus congêneres.

Entretanto, não é preciso fazer juízo de valor sobre qualquer tipo de união – ou mesmo no caso de mães que criam os filhos sozinhas – para sabermos que família é, antes de tudo, uma instituição, um conceito que carrega, em si mesmo, segundo a tradição que nos trouxe até aqui, uma série de valores que organizam não só a perpetuação da espécie como a prosperidade material e afetiva. Os filósofos Ricardo Yepes Stork e Javier Aranguren Echeverría, em seu Fundamentos de Antropologia, nos oferecem lições valiosíssimas a esse respeito. Dizem os autores:

“O sexo é um instinto que produz uma instituição, e é positivo e não negativo, nobre e não ruim, criador e não destruidor, porque produz essa instituição. Essa instituição é a família: um pequeno estado ou comunidade que, uma vez iniciada, tem centenas de aspectos que não são sexuais de nenhum modo. Inclui adoração, justiça, festividade, decoração, instrução camaradagem, descanso. O sexo é a porta da casa; e para os que são românticos e imaginativos, naturalmente lhes agrada olhar através da moldura de uma porta. Mas a casa é muito maior que do que a porta. A verdade é que há os que preferem ficar na porta e nunca dar o passo adiante. O matrimônio cumpre uma dupla função: reconhecer, proteger e tornar possível e estável a união dos esposos e assegurar a sobrevivência e criação dos filhos.”

A desvalorização e o combate à família parte, num primeiro momento, da própria ideologia revolucionária marxista, que julga a família nuclear burguesa o embrião da luta de classes e o alicerce do capitalismo

Notem que a questão aqui não se restringe à família nuclear, mas à instituição familiar, que tem como função “reconhecer, proteger e tornar possível e estável a união dos esposos e assegurar a sobrevivência e criação dos filhos”; isso é o mais importante. Não importa se são casais homoafetivos. E, no caso de mulheres que criam os filhos sozinhas por qualquer razão, respondo com um famoso dito que as mães nessa situação, antigamente, diziam de si próprias: “fui mãe e pai dos meus filhos”. Ou seja, o reconhecimento da família como uma instituição cujos pais cumprem funções distintas, complementares, faz com que a mãe solo compreenda a sua responsabilidade, não como um fardo, mas como uma missão. O mesmo vale para casais homoafetivos. Não se trata, portanto, de conferir ou retirar direitos, mas de preservar uma instituição, não reacionariamente intacta, mas com uma flexibilidade que se adequa a um modelo consagrado pelo tempo, cuja perda pode significar a destruição da própria humanidade. Dizem os autores de Fundamentos de Antropologia: “O homem [ser humano] é um ser familiar precisamente porque nasce e morre indefeso, sem recursos, desprotegido, criança. Além disso, a família é o depósito dos valores que mais profunda e permanentemente ficam gravados no espírito de seus membros mediante a educação (atitudes religiosas, virtudes próprias modos de valorizar ideais etc.)”.

Óbvio que eu, como cristão, tenho minhas opiniões doutrinárias e de fé a respeito do matrimônio, mas, num Estado laico e democrático, não cumpre a mim impor minha perspectiva a todos. Minha análise aqui é, antes de tudo, filosófica. E filosoficamente, a família é fundamental. Por isso, antes de aceitarem a destruição da instituição familiar como algo benéfico para uma suposta sociedade sem preconceitos, mas que, no fundo, cumprirá apenas uma função instrumental de um anseio revolucionário, é preciso que mais negros influentes, como Mano Brown, compreendam qual é o lado mais fraco dessa corda e onde os problemas vão estourar, antes que sejamos exterminados em nome de um ideal igualmente burguês, mas disfarçado de popular e moderno. É preciso, na verdade, que os negros percam o medo de trair o discurso da esquerda que os aprisiona. Precisam parar de ter medo da disposição conservadora que constrói laços e caminhos de liberdade e progresso; precisam valorizar a família; precisam voltar ao “nós por nós”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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