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O sentimentalismo é o progenitor, o avô e a parteira da brutalidade. (Theodore Dalrymple)
Na última semana fomos obrigados a tomar conhecimento de mais um episódio de autoritarismo de alguém que diz lutar pela igualdade, que diz ter aprendido que “reconhecer as subjetividades faz parte de um processo importante de transformação” (Quem tem medo do feminismo negro?).
Djamila Ribeiro, a incensada e quase onipresente figura pública nas discussões sobre racismo atualmente, ao ser criticada nas redes sociais por ter participado de um comercial para uma empresa de transporte por aplicativo – que, supostamente, explora os seus prestadores de serviço – reagiu utilizando seu privilégio e notoriedade, direcionando seu ataque a uma jovem mestiça (e marxista até a medula), referindo-se a ela, desdenhosamente, numa live que fazia com o indefectível Marcelo Freixo, como “clarinha de turbante”, o que suscitou uma resposta à altura da jovem marxista – e mais uma série de reações nas redes sociais.
Ao que parece, a petulância de Djamila é reincidente e reconhecida; mas isso pouco importa para mim, pois não estou interessado propriamente no comportamento de Djamila, nem na briga entre militantes feministas (negras ou não), tampouco no famigerado colorismo (sobre o qual já tratei aqui, nesta Gazeta do Povo).
O fato é que esse caso me fez lembrar de um termo que já havia utilizado anteriormente, e que considero mais que apropriado para fazermos referência a todas essas ideologias – conceito aqui – que visam a (segundo seus próprios proponentes, pelos menos) combater privilégios: ideologias do ressentimento. E algumas características marcantes (me concentrarei em três, mas há mais), que todas elas têm em comum, me ajudarão a provar o meu ponto.
- Apelo ao sentimentalismo.
Todas essas teorias apelam muito fortemente aos sentimentos, e, do mesmo modo e ao mesmo tempo que seus defensores julgam-se, aos seus próprios olhos, modelos de virtude, seus críticos são julgados como insensíveis. Porque não se trata de qualquer sentimento, mas do sentimentalismo, que, de acordo com o psiquiatra Theodore Dalrymple em Podres de mimados, é a “emoção sem julgamento”. E ele vai além:
Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade.
Essas teorias tendem sempre a reduzir a humanidade em opressores e oprimidos, e a história humana aos últimos cinco séculos, ignorando completamente que, de uma perspectiva mais ampla, contextualizada e desapaixonada, o mundo antigo e medieval eram muito diferentes do nosso, não só em termos de organização socioeconômica, mas também de valores morais.
A modernidade trouxe o advento da ciência positiva, da morte de Deus e, consequentemente, da racionalização e secularização do mundo. Entretanto, também trouxe guerras e totalitarismo numa época em que os arautos da imaginação idílica julgavam que o homem era perfectível, que a ciência salvaria o mundo e consolidaria sua redenção imanente. Desse modo, é fácil notar como adequar as complexidades da natureza humana à arrogância do homem moderno tem custado a vida de milhões de pessoas.
Richard M. Weaver, em seu As ideias têm consequências, resume bem: “A negação de tudo quanto transcenda a experiência significa, inevitavelmente, a negação da verdade – embora possam existir caminhos que limitem isso. Com a negação da verdade objetiva, não há como escapar do relativismo do ‘homem, medida de todas as coisas’”. E isso nos leva ao segundo ponto.
- Relativismo opinativo disfarçado de conceituação.
Uma das coisas mais curiosas dessas teorias é que sua força persuasiva, que apela ao sentimentalismo, leva as pessoas a assumirem como verdade absoluta aquilo que é só uma especulação teórica. Por quê? Porque as evidências são igualmente sentimentais e geralmente baseadas em manipulações estatísticas.
Por exemplo: dias atrás ouvi um pastor evangélico dizer, numa live, que a prova do racismo estrutural em sua igreja era o fato de não haver negros na governança, somente na música. Ou seja, ao mesmo tempo que constatou um fato, não levou em consideração, por exemplo, quantos negros gostariam de estar na governança e foram impedidos por sua cor, e se eximiu de sua responsabilidade individual por nunca ter se preocupado com isso até o assunto virar moda. Outro dia também vi um apresentador de programa esportivo – que não me parecia sequer ter estudado o assunto um pouco antes de tirar suas conclusões – falando em racismo estrutural como se fosse uma verdade incontestável.
O problema, caríssimo leitor – que já tratei em outras ocasiões e não pretendo me aprofundar aqui –, é que a conceituação do racismo estrutural é vaga, confusa, e o fato de existir, na organização socioeconômica brasileira, menos negros em posições de destaque não pode ser reduzida a uma espécie de bala de prata argumentativa que se remete ao triste legado da escravidão ou mesmo às teorias eugênicas do início da República. Como diz Thomas Sowell em Fatos e falácias da economia:
O racismo tornou-se uma justificativa para a escravidão numa sociedade em que não havia outra forma de justificá-la – e séculos de racismo não desapareceram de repente, com a abolição da escravidão que possibilitou sua origem. Mas a direção de causalidade era diretamente oposta ao que é pressuposto por aqueles que retratam a escravização de africanos como um resultado do racismo. Entretanto, o racismo tornou-se um dos legados duradouros da escravidão. Até que ponto persiste atualmente, e com qual força, é algo que pode ser examinado e debatido. Mas muitas outras coisas consideradas legados da escravidão podem ser testadas empiricamente, em vez de serem aceitas como conclusões absolutas.
Dizer que “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”, como faz o prof. Sílvio Almeida em seu livro Racismo estrutural, é uma hipótese que ele busca provar ao longo da obra; mas isso não significa que temos de aceitá-la antes ou mesmo depois de lê-lo. É preciso submeter as hipóteses ao escrutínio da boa análise lógica e filosófica.
Como diz Roger Scruton, em Pensadores da Nova Esquerda, a respeito de Michel Foucault – uma influência marcante no pensamento de Almeida e todos os ideólogos do ressentimento: “há muitos insights nos primeiros escritos de Foucault. Mas o método hegeliano – que identifica realidade com um modo de apreendê-la – deve levar-nos a duvidar que eles foram duramente conquistados. Há um engano envolvido neste método, que permite a seu proponente saltar até a linha final da investigação histórica, sem percorrer o difícil trajeto da análise empírica” (grifo meu).
Há grandes lacunas na formulação desses conceitos, e todo pensador honesto deve levá-los em consideração, não somente aceitar os humores das redes sociais, que tendem a aceitar ou rejeitar algo somente por afinidade ideológica. E os desdobramentos dessa aceitação irracional é que... – e vamos ao terceiro e último ponto e voltar ao início deste artigo, que é o comportamento de quem defende tais ideologias:
- Suas consequências práticas são diferentes de suas propostas teóricas.
Todas as ideologias do ressentimento levam ao comportamento violento e à censura do debate público. As discussões, por exemplo, sobre lugar de fala, mesmo negando que trata-se de uma forma de dizer que somente quem vive determinada situação pode falar dela com propriedade, na prática, justamente pela absoluta falta de clareza do “conceito” – como já tratei detalhadamente aqui –, é isso que ocorre. Mas não só: as pessoas, quando não se sentem constrangidas de manifestarem suas opiniões, são impedidas de falar.
Os exemplos abundam: como digo no artigo supracitado, a ideologia do colorismo impediu Fabiana Cozza, cantora talentosíssima, de representar sua amiga de longa data, a saudosa D. Ivone Lara, num musical, por ser “muito branca”. Assumir que o racismo é estrutural e estruturante na sociedade está levando – como discuto em outro artigo – um partido político marxista radical de negros, na África do Sul, a pregar publicamente a escravização e a morte de brancos. Não importa que a toda hora apareça alguém dizendo que as coisas não são bem assim, porque são; na prática, ninguém está interessado em teorizações complexas, recheadas de falsificações conceituais, o que querem é reagir – violentamente muitas vezes.
E é óbvio que isso se deve ao fato de que essas ideologias tem por objetivo não a busca pela verdade, mas – tal qual toda ideologia –, como diz o filósofo Andrei Pleșu, provocar “a modificação da mentalidade pública, das instituições da vida social”, ou seja, “não se detêm em detalhes e não têm tempo de análise bem fundada. Não querem produzir sistemas explicativos, mas esquemas incisivos, mobilizadores”.
Tais intelectuais, na acepção de Julien Benda, traíram sua vocação, pois “ao adotarem um sistema político voltado a um objetivo prático, eles são obrigados a adotar valores práticos, os quais, por essa razão, não são intelectuais”. Tudo isso pautado, dentre outras coisas, na mitomania foucaldiana, como diz Scruton, na paranoia do pensador francês: “um idealismo localizado – uma manifestação específica e focada do desejo de que a realidade seja subserviente ao pensamento, de que o outro tenha uma identidade inteiramente determinada pela própria resposta a ele. O que importa é, não a disposição de encontrar, no pensamento humano e na ação, as máscaras risonhas da perseguição, mas, antes, a ideia de que, ao desmascará-las como formas de poder, chegamos mais perto de um entendimento de sua natureza”. Scruton duvida disso; eu também.
Por isso, as ideologias do ressentimento devem ser questionadas. Não porque queremos negar as injustiças supostamente provocadas por circunstâncias históricas – que ainda podem até nos perseguir –, mas porque é preciso compreender que a história da humanidade não pode ser julgada por critérios ou mesmo virtudes particulares. Dar-se a si mesmo a condições de julgar a História da humanidade é uma pretensão prometeica que deve ser abandonada por todo aquele que tem apreço pela realidade e pela verdade.