“Creio em Deus, mas detesto a teocracia. Todo governo consiste apenas em homens e, numa visão estrita, é um paliativo. Caso acrescente comando ‘Assim diz o Senhor’, está mentindo, e essa mentira é perigosa.” (C.S. Lewis, O progresso é possível?)
No último domingo acordei com o frisson de uma pesquisa acadêmica que visava a nos apresentar “A cara da democracia”. Conforme noticiou o Estadão, a pesquisa foi realizada por acadêmicos ligados às universidades UFMG, Unicamp, UnB e Uerj, e, ao que parece, os pesquisadores se espantaram com o fato de que “opiniões majoritariamente conservadoras ou ʻlinha-duraʼ convivem na população com visões de mundo mais vinculadas aos direitos humanos ou à diversidade”. Ou seja, parece que os pesquisadores acabaram de descobrir que a sociedade não é formada por gente maniqueísta e binária. Mas o que me causou espanto foram os critérios utilizados pela pesquisa para avaliar se as pessoas são de direita ou de esquerda – os tais temas polêmicos.
Casamento entre pessoas do mesmo sexo, redução da maioridade penal, prisão de mulheres que interrompem a gravidez (?!), adoção de crianças por casal gay e legalização do aborto. Outros itens ainda são: militarização das escolas, rezar e acreditar em Deus nas escolas (?!), descriminalização das drogas e permissão para mineração em terras indígenas. Com tais critérios podemos ter uma ideia de como as pessoas pensam, circunstancialmente, a respeito de temas que ou lhes são caros ou que elas não têm muita ideia do que sejam, mas intuem pelo senso comum – perguntar para um transeunte sobre mineração de terras indígenas não me parece inteligente se queremos uma resposta consciente –, mas não é possível saber se essa pessoa é conservadora ou progressista.
O que parece é que, primeiro, os pesquisadores acadêmicos tentaram reduzir os conservadores a simples moralistas retrógrados. Segundo, que eles nem sequer avaliaram as circunstâncias que o próprio país vive e o quanto isso influencia em suas escolhas em relação aos tais “temas polêmicos”. Por exemplo: num país extremamente violento como o nosso, com adolescentes assassinando pessoas pobres em pontos de ônibus por causa de um celular, é óbvio que mais pessoas serão a favor da redução da maioridade penal. É também óbvio que, à medida que o tempo vai passando, mais pessoas vão se acostumando com a ideia de adoção de crianças por casais do mesmo sexo – sem fazer muita avaliação moral disso. Mas isso está longe de definir, técnica e conceitualmente, se uma pessoa é conservadora ou não. Uma pesquisa deveria esclarecer, não confundir.
Os pesquisadores acadêmicos tentaram reduzir os conservadores a simples moralistas retrógrados e nem sequer avaliaram as circunstâncias que o próprio país vive e o quanto isso influencia as escolhas em relação aos tais “temas polêmicos”
Perguntar se as pessoas creem numa ordem moral duradoura, na imperfectibilidade humana, se defendem a prudência política e a conciliação entre estabilidade e mudança, ou, ainda, se advogam a ligação íntima entre liberdade e propriedade – esses, sim, princípios conservadores –, os acadêmicos não farão, pois nem sequer sabem o que é isso. Michael Oakeshott, um dos grandes teóricos do conservadorismo e já citado várias vezes nessa coluna, tem um parágrafo preciso sobre o tema. Segundo ele, em seu ensaio Conservadorismo:
“Ser conservador é, pois, preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna. Relações familiares e lealdades têm preferência sobre o fascínio pelas alianças de momento; comprar e aumentar é menos importante do que manter, cultivar e aproveitar; a tristeza da perda é mais aguda do que a empolgação pela novidade e pela promessa. Significa viver dentro dos limites do patrimônio, usufruir dos meios possíveis à riqueza, contentar-se com a necessidade de maior perfeição que é exigida a cada um em dada circunstância. Para algumas pessoas essa postura seria fruto de uma escolha; para outras seria uma predisposição que surge naturalmente, com maior ou menor frequência, em suas preferências e aversões, sem que tenham sido escolhidas ou especificamente cultivadas.”
É claro que qualquer pesquisador sério teria de “traduzir” tais conceitos para o cidadão comum a fim de obter respostas precisas, mas é necessário se quiser discutir seriamente se a sociedade é conservadora ou meramente moralista. E eis aqui o principal problema dos acadêmicos atualmente, que são, em sua imensa maioria, progressistas. Eles ignoram o objeto que pesquisam e buscam pelo espantalho que eles mesmos criaram. Um exemplo é uma citação que está na matéria do Estadão: “Mulheres tendem a ser menos conservadoras, e este é um foco para análises sobre transições nos rumos das pesquisas a partir de respostas a temas polêmicos como os que investigamos neste levantamento – explica Oswaldo Amaral, diretor do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp”. Para os nobres pesquisadores, a evidência de que as mulheres são menos conservadoras é que são mais favoráveis à adoção de crianças por casais do mesmo sexo – 64% aprovam (o que chamaram de ampla maioria), contra 47% dos homens.
O que os acadêmicos não avaliam – porque, em certo sentido, são parte do problema – é que o recrudescimento reacionário dos últimos tempos foi provocado pela esquerda, que, nos últimos anos e por muitas vezes, demonstrou seu caráter afrontoso e fascistoide. Quem não se lembra da polêmica, em 2017, com a “performance”, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, na qual uma criança é estimulada pela própria mãe a interagir com um homem completamente nu? Ou da performance Macaquinhos, em que adultos nus ficam olhado e tocando uns nos ânus dos outros, dizendo que, com isso, estavam buscando “a transformação subjetiva do corpo em seu estado limite, através das ações contínuas de paquerar, cutucar, assoprar, procurar e tocar um o rabo do outro”? Ou a performance num evento chamado Seminário Internacional Desfazendo Gênero, na qual uma artista nua se besunta de azeite de dendê? Ou, ainda, a maior intelectual do petismo, Marilena Chauí, professora emérita da Universidade de São Paulo (USP), dizendo, diante de Lula: “Eu odeio a classe média. A classe média é o atraso de vida. A classe média é a estupidez, é o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. É uma coisa fora do comum. [...] A classe média é uma abominação política, porque é fascista; é uma abominação ética, porque é violenta; e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim”. Ou, ainda – perdoe, caro leitor –, outra célebre acadêmica do petismo, Márcia Tiburi, dizendo que é a favor e vê lógica no assalto?!
Tudo isso, no calor da disputa política dos últimos anos, foi amplamente divulgado na mídia tradicional e nas redes sociais, causando uma justa reação da sociedade. Não há como avaliar o que as pessoas pensam sobre temas polêmicos sem considerar que a agenda progressista, tradicional e identitária, vinha ultrapassando todos os limites em sua busca por subverter os padrões estabelecidos e desestabilizar a ordem social. Isso não é teoria da conspiração, são fatos. E isso não tem nada a ver com conservadorismo no sentido técnico do termo. Do mesmo que não tem como avaliar se uma pessoa é de esquerda ou não só porque defende os direitos humanos e o assistencialismo estatal.
A verdade nua e crua é: o extremismo da esquerda permitiu a ascensão política de seu duplo, Jair Bolsonaro, e do chamado bolsonarismo. Bolsonaro e sua entourage foram sagazes ao aglutinar todo o sentimento de repulsa a esse comportamento da esquerda – sobretudo a identitária, com suas teorias sobre gêneros, seu feminismo extremado e seu racialismo radical –, alinhá-lo a um senso religioso de parte da sociedade e dizer que estava lutando por restabelecer a ordem e os valores conservadores. A partir de então o conservadorismo, enquanto tradição de pensamento, foi sequestrado por uma agenda política eleitoral. A caricatura se tornou realidade e os acadêmicos, que nunca leram uma linha de autores conservadores, abraçam-na e fazem suas análises baseados nela – para tentar atingir o governo.
Não há como avaliar o que as pessoas pensam sobre temas polêmicos sem considerar que a agenda progressista, tradicional e identitária, vinha ultrapassando todos os limites em sua busca por subverter os padrões estabelecidos e desestabilizar a ordem social
Não é fácil definir o que é conservadorismo, pois este é, em tese, como diz Michael Oakeshott, uma disposição, “é estar inclinado a pensar e agir de certas maneiras; significa preferir alguns tipos de condutas e algumas circunstâncias de condições humanas a outras; é ter uma tendência a fazer alguns tipos de escolhas”. Russell Kirk, considerado o pai do conservadorismo moderno nos EUA, diz, em seu inescapável A política da prudência, que o conservadorismo não é uma ideologia, e critica com veemência “jovens ideólogos que se imaginam conservadores, e aos jovens conservadores esperando apaixonadamente se converterem em ideólogos”. E o filósofo britânico sir Roger Scruton, em seu O que é conservadorismo, faz questão de distinguir conservadorismo e religião, dizendo: “embora haja uma conexão entre conservadorismo e sentimento religioso, é difícil argumentar a favor de sua identificação”. E, após uma análise detalhada da relação entre o sentimento religioso e o conservadorismo, de reconhecer sua validade dizendo que mesmo Burke e Disraeli acreditavam que a “religião é uma força essencialmente conservadora”, afirma que, apesar de o compromisso social conservador se dar por laços transcendentes, também é forçoso admitir que:
“A aceitação de laços transcendentes, no entanto, não requer a crença em seres transcendentes. Os japoneses, famosos (aliás, notórios) por sua prontidão em aceitar os primeiros, são igualmente conhecidos por sua relutância em acreditar nos últimos. Já os romanos, aos quais devemos o conceito de piedade, eram irregulares e mesmo descomprometidos em termos de religião – uma característica que eles compartilharam com os mais hábeis representantes do papado. Assim, parece-nos que a visão conservadora da sociedade poderia sobreviver na ausência de uma crença religiosa clara, apesar do fato de que ela sempre se irá beneficiar com sua presença.”
Nem mesmo o Dez Princípios Conservadores, desenvolvidos por Russell Kirk, têm conotação diretamente religiosa. O conservadorismo defende uma tradição, e um governante conservador respeita essa tradição, seja ela religiosa ou não. E isso não quer dizer que o conservadorismo aceita o secularismo moderno sem criticá-lo, mas que não se pode advogar a favor do conservadorismo com discursos meramente religiosos ou moralistas. E é exatamente nesse ponto que tanto os pesquisadores acadêmicos quanto os bolsonaristas erram.
E a prova – quero comentar rapidamente para não cansá-lo mais, caro leitor – foi o episódio do Flow Podcast em que participei, como co-host, entrevistando a deputada federal bolsonarista Carla Zambelli. A compreensão que ela tem do conservadorismo é tão errônea quanto a da esquerda. Quando afirmei, categoricamente, que Bolsonaro não é conservador, por conta, dentre outras coisas, da exposição a que submeteu seus apoiadores no meio da pandemia, ela disse: “você vai me dizer agora que um dos principais princípios cristãos, que é o livre arbítrio, não deve valer numa situação de pandemia, por exemplo?” Eu perguntei: “o que isso tem a ver com conservadorismo? O que conservadorismo tem a ver com religião?” Ela respondeu: “Tudo”. E tentou se sair dizendo que o conservadorismo é fundamentado no direito romano, que seria baseado nos Dez Mandamentos – ignorando completamente a Lei das Doze Tábuas (450 a.C.) e filósofos como Cícero, que foi um dos fundamentadores do direito romano e viveu antes de Cristo. Não preciso avançar muito aqui, paciente leitor, para que perceba o equívoco dessa afirmação. Sociedades não cristãs, ou não pautadas pela tradição judaico-cristã, como a hindu ou a japonesa (como citada por Scruton), por exemplo, são conservadoras. Mas ela insistiu dizendo que Jesus Cristo e Tomás de Aquino eram conservadores.
Eu até entendo o que ela quis dizer, mas penso que ela não entendeu o que eu quis dizer, pois não sabe o que é, de fato, conservadorismo – e ter dito que o escritor católico Orlando Fedeli, fundador da Associação Montfort, era um autor conservador, é prova cabal disso. Por isso estiquei o argumento para que ela demonstrasse seu desconhecimento. Veja, amigo leitor, eu mesmo já fiz, nesta Gazeta do Povo, uma análise dos princípios conservadores do cristianismo e disse, num outro artigo: “As bases para o conservadorismo podem ser retiradas de muitos lugares – e nisso os livros podem nos ajudar: das mitologias à experiência de nossos pais e avós; dos contos de fadas à poesia; dos Dez Mandamentos às virtudes cardeais dos gregos; do Tao das religiões orientais àquele que considero a quintessência do conservadorismo: o Evangelho”. Mas percebe a diferença? São muitas as bases do conservadorismo. E é óbvio que eu, como cristão, reconheço os valores conservadores da religião que professo, mas não deixo de reconhecer que a tradição conservadora não é exclusividade do ocidente cristão. Eu ainda digo, quando ela afirma que os autores escolásticos eram conservadores: “eles eram autores cristãos. Se o cristianismo que eles professavam era conservador, é outra coisa; agora, dizer que o conservadorismo é cristão, é coisa completamente diferente”. Zambelli ainda tentou evocar a citação de Oakeshott que fiz acima como se fosse uma citação religiosa. Enfim, uma confusão só.
Por isso julgo que o trabalho daqueles que são conservadores sérios e estudiosos é confrontar essas distorções produzidas tanto pela esquerda e seus intelectuais de gabinete quanto por essa direita bolsonarista ignorante dos conceitos básicos do conservadorismo. Fazer isso é recuperar o sentido de uma tradição conservadora pautada não só no senso comum, como também naqueles autores que, a partir do rigor conceitual e da honestidade intelectual, forneceram as bases para um conservadorismo saudável, democrático e plural. Um trabalho para separar, como fez o nosso João Camilo de Oliveira Torres, conservadores de reacionários.
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