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I love niggas, I love niggas, I love niggas
Because niggas are me
And I should only love that which is me
I love that you niggas [...]

It’s plain to see, you can’t change me
’Cause I’mma be a nigga for life.

(N.W.A., Niggaz4Life)

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Não foi sem espanto que li a recente matéria da revista Piauí “A direita negra”, escrita pelos professores – ou seria jornalistas sem influência? – Flávio Thales Francisco e Márcio Macedo. Não porque esperasse mais de quem se propõe a rotular, já no título, o objeto a ser analisado; nem porque são professores universitários, pois a mera “capacidade para apreensão e manipulação de ideias complexas”, que é característica do intelecto, é diferente da inteligência, “cuja realidade envolve a combinação do intelecto com capacidade de julgamento e acuidade na seleção de fatores explicativos relevantes”. Isso é o que nos ensina um dos maiores intelectuais vivos, Thomas Sowell, citado com menosprezo no artigo – o que seria o suficiente para duvidar da capacidade de julgamento dos autores.

Meu espanto veio da absoluta falta de apreensão, no sentido filosófico do termo, do fenômeno que pretenderam criticar. Os autores reuniram a maior quantidade de pessoas que pudessem rotular sem qualquer constrangimento, fizeram associações palavrosas bem ao gosto dos leitores da revista – “fascismo”, “extrema-direita”, “ultraliberal” – e, no fim, somente fortaleceram a impressão errônea de que a disposição conservadora, a doutrina moral das pessoas absolutamente comuns, é incompatível com o antirracismo – tema já tratado por mim nesta Gazeta do Povo.

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O ataque dos autores inicia com uma filigrana absolutamente estúpida: a discussão americana em torno da controversa palavra nigga, a fim de atacar um salão de cabeleireiros de nome Niggaz Place, na Galeria Presidente, situada à Rua 24 de Maio, no Centro de São Paulo, cujos proprietários votaram em Jair Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais. A galeria é um lendário espaço de cultura negra da cidade, com lojas de discos, de roupas e de tênis, e salões de beleza onde cortes étnicos e tranças são realizados com maestria artística. Segundo os autores do artigo, é um desses centros culturais “onde se discute a respeito de tudo: conflitos pessoais, planos de futuro, relacionamentos amorosos, problemas econômicos, futebol, religião e política”; e afirmam ser essa também a realidade do Niggaz Place. Ou seja, é um lugar onde se discute de tudo, menos o próprio nome do local, que eles precisaram denunciar como “ofensivo”.

O termo nigga foi ressignificado pela própria cultura – apesar de ainda ser ofensivo quando dito por brancos ou mesmo fora da cultura hip hop

O problema é que nigga é um termo que, apesar de ser, sim, ofensivo de maneira geral, tornou-se comum dentro da cultura negra americana e é utilizado aos montes em músicas, filmes etc. Como diz o professor de Antropologia H. Samy Alim, da UCLA, em seu Roc the mic right: The language of hip hop culture: “Um dos usos mais controversos da linguagem na cultura hip hop é o termo ‘nigga’. O HHN [Hip Hop National Language, Linguagem Nacional do Hip Hop] percebeu que esta palavra tinha vários significados positivos dentro do grupo, e significados pejorativos fora do grupo, e assim sentiu a necessidade de refletir os significados culturalmente específicos com uma nova grafia (‘nigger’ torna-se ‘nigga’). Um ‘nigga’ é seu chegado, ou um de seus companheiros próximos, seu mano”. Ou seja, o termo foi ressignificado pela própria cultura – apesar de ainda ser ofensivo quando dito por brancos ou mesmo fora da cultura hip hop –, o que, de certo modo, ocorreu aqui também com o termo negro (explico aqui).

Caríssimo leitor, se os autores do referido artigo não tiveram o cuidado de informar seus próprios leitores disso, o resto é ainda mais assombroso. Sigamos.

Em seguida, declaram ter havido uma “guinada para a direita (sic) de mais da metade dos eleitores brasileiros nas eleições de 2018”, e que esta incluiu negros, e que também viabilizou o surgimento de pessoas como o vereador Fernando Holiday; o atual presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo; e este que vos escreve, alcunhado como “jornalista e influenciador digital” – talvez porque um professor de Filosofia do ensino básico não signifique muita coisa para os nobres acadêmicos. Não que me ofenda ser chamado de jornalista ou mesmo influenciador digital, mas, de fato, não sou jornalista; e, se tenho alguma influência, é por ser o que sou: professor.

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Para começar, tal guinada à direita não foi de mais da metade dos eleitores, pois, somando votos brancos e nulos, mais as abstenções, o porcentual passou de 30%. Isso é um reflexo do descontentamento dos eleitores brasileiros com a política e, mais especificamente, com o ocaso da era PT, cujos governos Lula e Dilma se notabilizaram por serem aliados dos pobres, mas que se mostraram, na verdade, mais amigos dos – como chama mesmo? Ah! – rentistas e das empreiteiras. Jair Bolsonaro não era o candidato da direita, era o candidato anti-PT, e muita gente que votou nele – provavelmente a maioria – nem sequer reconhece tais definições. Sem contar que a polarização que se formou no segundo turno das eleições deixou muitas pessoas que não queriam votar no PT sem opção a não ser o candidato do PSL.

Portanto, o que possibilitou o ressurgimento de um conservadorismo, ainda que incipientíssimo no Brasil – como analiso aqui –, foram os escândalos de corrupção dos governos petistas e a reação à hegemonia cultural da esquerda, que ameaçava (ainda ameaça) valores tradicionais das pessoas mais simples, tais como a família e a religião. Eu mesmo escrevo nesta Gazeta do Povo desde 2015, muito antes de Bolsonaro – que, aliás, foi quem se aproveitou do surgimento de uma direita que, havia pelo menos dez anos, vinha vagarosamente se articulando no país – se tornar o fenômeno político que se tornou. A associação que os autores fazem, no parágrafo seguinte de seu artigo, do falecido ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, que era negro, à direita é algo que não merece sequer atenção, pois não há absolutamente nada que a justifique.

Em seguida, cometem o erro comum daqueles que desconhecem completamente o conservadorismo: a associação política antes da cultural. O conservadorismo brasileiro existe e resiste na cultura popular, e quase nunca se viu representado na política. Dizer que a direita foi “incapaz de formular um discurso sólido que levasse em conta as demandas antirracistas e de inserção social” em “seus partidos” é só usar da famigerada falácia do espantalho, pois o que a esquerda chama de direita é, precisamente, os partidos e políticos patrimonialistas de sempre – os de esquerda inclusos. Se conhecessem ao menos os dez princípios conservadores elencados por Russell Kirk em seu inescapável A política da prudência, ou mesmo o best-seller nacional Pare de acreditar no governo, de Bruno Garschagen, saberiam que essa associação é indevida. Mas é óbvio que o interesse não é informar. O mesmo vale para a ideia de que a direita prega o mito da democracia racial – ou o mito do mito, como diz o antropólogo Hermano Vianna.

O conservadorismo brasileiro existe e resiste na cultura popular, e quase nunca se viu representado na política

Daqui para a frente, os nobres acadêmicos tentam enquadrar o conservadorismo brasileiro em “dois tipos ideais”, um radical e outro moderado. No primeiro, investem pesadamente contra a memória de um dos maiores intelectuais brasileiros do século 20, Arlindo Veiga dos Santos, professor universitário, ativista e fundador da Frente Negra Brasileira, provavelmente a maior organização de movimento negro do país, e da Ação Imperial Patrianovista Brasileira (ou Patrianovismo), movimento de bases monarquistas e profundamente católicas. O que dizem tratar-se do “fascismo negro dos anos 1930” nada mais é – como diz a maior especialista na vida e obra de Arlindo Veiga, Teresa Malatian, autora do livro O cavaleiro negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira e completamente ignorada pelos autores – que “o profundo descrédito em relação à República oligárquica, a percepção crítica do momento que viviam, sobretudo do ponto de vista político”. A intenção do movimento criado por Arlindo Veiga era uma reação “à ‘desordem’ identificada nas rebeliões tenentistas, no movimento operário, na fundação do Partido Comunista, no Modernismo e no domínio oligárquico, com a proposta de um governo forte, capaz de impedir ‘excessiva’ liberdade. Inspirada pelas encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno, propôs a recatolicização da sociedade mediante a defesa da ‘ordem’ e da ‘justiça social’, numa tentativa de neutralizar as esquerdas e seu avanço no país”.

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Ou seja, Arlindo Veiga dos Santos, um homem de família muito humilde que teve oportunidade de estudar, em sua cidade natal, Itu (SP), em colégios católicos de altíssimo nível, se tornou um católico fervoroso e um anticomunista ferrenho. Isso, para desavisados e desonestos, é ser “católico sectário”, “fascista, antissemita e monarquista”, cujas ideias são “descaradamente fascistas”. Teresa Malatian, que não se rende à rotulação apressada de seu biografado, diz que Arlindo Veiga, “em sua própria interpretação errática do fascismo, reteve dele o que lhe parecia adequado ao Brasil, sem distanciar-se da Igreja. Adotou alguns pontos do fascismo, estruturados da AIPB e na FNB, movimentos que correram paralelos durante algum tempo e apresentavam como pontos convergentes o objetivo de deter o avanço do comunismo no Brasil. Sua proposta nunca chegou a admitir o totalitarismo que caracterizou o nazifascismo com a mobilização pelo partido único, pois recusava toda organização político-partidária”.

Malatian ainda diz que a interpretação do sociólogo marxista Clovis Moura, citado pelos autores do artigo, de que Arlindo Veiga era uma “personalidade dividida, porque, se de um lado protesta com ela, de outro é um dominado subliminarmente pela cultura do dominador”, não dá conta da complexidade de um personagem como Arlindo Veiga; Malatian afirma que “a questão é mais complexa do que essa análise sugere”, pois mesmo adversários ideológicos, como o militante de esquerda Hardy Silva, confiavam em sua liderança.

Os grandes feitos de Arlindo Veiga e da Frente Negra são ignorados pelos autores, pois não lhes interessa o resultado de tão grande esforço empreendido por ele e por seus pares na defesa da elevação moral e educacional da população negra, por meio da ética de superação, que era marca de todos os movimentos até a ascensão da esquerda negra e sua ética da reivindicação e da concentração na luta de classes marxista. A Frente Negra era uma organização com grande atuação de mulheres, que valorizava a educação de crianças e imprimia-lhes autoestima elevada. E mais: dizer que “Santos manifesta uma forte xenofobia contra os recém-chegados ao Brasil, que passaram a gozar da preferência dos empregadores, em detrimento dos negros” é pura canalhice, pois a rejeição dele à imigração não é maior que a própria reclamação dos movimentos negros atuais em relação à mesma imigração, que deixou os ex-escravizados sem perspectiva no pós-abolição. O seu panfleto radical, usado e abusado por seus caluniadores, no qual diz “Somos Pátria-Nova, extrema-direita radical e violenta, afirmadores de Deus e sua Igreja, afirmadores da Pátria Imperial e Católica, inimigos irreconciliáveis e intolerantes do burguesismo, plutocratismo e capitalismo materialista, ateu, gozador, explorador, internacionalista, judaizante e maçonizante”, não pode ser utilizado sem contexto e sem relacionar a retórica inflamada do grande orador com suas ações concretas, de alguém que jamais foi violento. Malcolm X fez o mesmo. Ou não?

Agora vem o absurdo dos absurdos: a associação de Arlindo Veiga dos Santos a Sérgio Camargo, chamado de “seu discípulo fortuito”, é surreal, pois este não tem absolutamente nenhuma contribuição à luta antirracista no Brasil, enquanto aquele é um de nossos maiores expoentes. A ligação se dá porque Camargo estaria movido “por um autoritarismo similar, [que] faz tábula rasa de toda a trajetória da militância negra ao longo do século 20 para voltar ao ponto zero, ao isabelismo, exaltando os próceres abolicionistas negros, como André Rebouças”, e cuja “maior pedra no sapato [...] é a figura de Zumbi”. Entretanto, Zumbi era uma referência para Arlindo Veiga e para toda a militância negra de sua época, pois, como diz Malatian, “o personagem representava a capacidade de resistência dos cativos ao sistema, sem anular o protagonismo dos próceres da monarquia que fizeram as leis abolicionistas”. Arlindo Veiga chegou a escrever um soneto exaltando Palmares. Sobre Sérgio Camargo, eu mesmo já escrevi, por pura necessidade de me distinguir desse sujeito, que para mim representa nada mais que fina-flor do reacionarismo bolsonarista, um mero escravo ideológico desse governo de ineptos. Camargo jamais receberá, como Arlindo recebeu, um elogio como esse, do supracitado Hardy Silva – que, como dito, era de esquerda:

Veiga Santos! Ainda uma vez, meus abraços! Tu, assim jovem e forte, poderoso e saudável de espírito e grande e imenso nesse teu coração cheio de amor idealístico, serás, um dia que já vem próximo, o Magnânimo Redentor da opressão da raça negra, filha da nossa grande Pátria!

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A ética de superação era marca de todos os movimentos até a ascensão da esquerda negra e sua ética da reivindicação e da concentração na luta de classes marxista

Entretanto, as acusações contra Arlindo Veiga são antigas, datam de sua própria época. Outro grande expoente do movimento negro brasileiro e também fundador da Frente Negra, José Correia Leite – que deixou a organização por desavenças políticas com o Arlindo –, também o acusava de fascismo. Trato dessa disputa em meu curso O Brasil é um país racista?

Curiosamente, Arlindo Veiga dos Santos não foi o único a simpatizar com ideias politicamente controversas de sua época. W.E.B. Du Bois, o maior intelectual negro americano do século 20, viajou para a União Soviética e para a China em 1926 e 1958, e para a Alemanha nazista em 1936, e suas opiniões acerca dos regimes ditatoriais desses lugares são motivos de crítica até hoje. Apesar de condenar o tratamento dado aos judeus, louvou o desenvolvimento econômico do nacional-socialismo e o fascismo hitleriano como a “visão mais surpreendente da história moderna”. Isso é o que nos diz seu maior biógrafo, David Levering Lewis, em W.E.B. Du Bois The Fight for Equality and the American Century, 1919-1963. Sobre a China, tirou fotos sorridentes ao lado de Mao Tsé-tung e, num discurso na Universidade de Pequim, disse que “a União Soviética está superando o mundo em educação popular e superior, porque desde o início iniciou seu próprio sistema educacional completo. A essência da revolução na União Soviética e na China, e em todas as nações da ‘cortina de ferro’, não é a violência que acompanhou a mudança; não mais do que a foi a fome em Valley Forge a essência da revolução americana contra a Grã-Bretanha. A verdadeira revolução é a aceitação por parte da nação do fato de que doravante o objetivo principal da nação é o bem-estar da massa do povo e não de uns poucos sortudos”. Também admirou-se do colonialismo japonês na Manchúria e louvou Stalin, em sua morte, com um artigo em sua homenagem, chamando-o de “um grande homem [...] simples, calmo e corajoso”. Tudo isso enche os olhos de militantes socialistas e comunistas – certamente a filiação ideológica dos próprios autores do artigo em questão –, mas, diante dos horrores de tais regimes – os 45 milhões que morreram de fome na China e o horror do Holodomor são exemplos –, isso está muito longe de ser unanimidade.

Du Bois foi adversário de ideias daquele que é associado ao segundo “tipo ideal”, o moderado, da chamada direita negra, Booker T. Washington. Sobre este pouco direi, pois já escrevi um artigo sobre ele e trato em detalhes dessa rivalidade – que, para mim, nada mais é que complementariedade –, entre os dois maiores expoentes negros americanos de todos os tempos, em meu curso, citado acima. Para os autores, tanto Booker T. Washington quando Thomas Sowell são “partidários de uma orientação liberal da política e da economia, eles questionaram o papel do Estado no combate ao racismo, defendendo a ação individual e o empoderamento econômico dos negros como formas de superar as desigualdades raciais”. E dizem isso com, digamos, nojinho. O maior empreendimento de Booker T. Washington, a Tuskegee University, nem sequer é mencionado.

Para os autores do artigo da Piauí, se você é negro e não milita nos movimentos de esquerda, na turba permitida pelos acadêmicos viúvas de Karl Marx, sofre de “subalternidade consentida”

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Washington, que nasceu escravo na Virginia, no sul dos Estados Unidos – diferente de Du Bois, que nasceu no norte, de uma família de classe média negra com ascendência holandesa –, sete anos após a abolição, aos 16 anos, parte para a cidade de Hampton, onde “os estudantes pobres aprendiam um ofício e podiam pagar com trabalho uma parte da pensão”, como diz em sua autobiografia Memórias de um negro americano. Hampton ficava a mais de 700 quilômetros de distância de sua casa. Suportou fome e frio, e chegou a dormir na rua. Não é para menos a ênfase de Washington na ética de superação, dizendo que “não devemos permitir que nossas queixas ofusquem nossas oportunidades”. Seus “esforços não eram utópicos, muito menos revolucionários. Ele sabia que o tempo, a liberdade econômica e o empreendedorismo eram aliados nesse processo; que qualquer tentativa de exigir, por meios políticos, direitos iguais, poderia resultar em mais segregação”. Os articulistas ainda citam Marcus Garvey, Martin Luther King Jr., George Shyuler, Thomas Sowell e o recém-falecido – e homenageado por este humilde escriba  – Walter Williams, fazendo uma associação desses autores com o vereador Fernando Holiday, recentemente reeleito com ainda mais votos, somente para dizer que:

O percurso histórico a respeito dessas correntes de pensamento explicita que nem o conservadorismo é um privilégio de brancos nem a direita negra forma um bloco coeso e unitário, podendo ter variantes e mesmo rivalidades. Debates antigos ganham formas novas, reatualizados num contexto em que o racismo e a inserção social do negro são questões ainda muito longe de serem solucionadas.

Como se isso não fosse uma realidade também nas esquerdas e no próprio movimento negro. Agora pergunto: é a isso que se reduziu os pensadores negros de esquerda no Brasil? Que saudades de Alberto Guerreiro Ramos!

Para encerrar sua diatribe, os diletos militantes dão um salto, como não poderia deixar de ser, para a América de Trump; e voltam para o Brasil para cometerem outra rotulação ofensiva:

No Brasil, os negros são convidados a figurar na órbita do governo Bolsonaro em geral para se oporem aos movimentos antirracistas ou para ocuparem papéis político-institucionais subalternos em que sua cor é utilizada estrategicamente para esvaziar ou negar a questão da desigualdade racial. A “subalternidade consentida” engendra da parte dessas personalidades negras uma adesão aos princípios da dominação, que varia da verborragia reacionária de Sérgio Camargo ao silêncio quanto à questão racial do deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), mais conhecido pelas alcunhas que adotou durante a campanha eleitoral: “Hélio Bolsonaro”, “Negão de Bolsonaro” ou “Hélio Negão”.

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Pois é, entraram ainda na roda, alvos dessa metralhadora giratória de adjetivações dos articulistas da revista que desistiu de “contar bem uma história” – o que aconteceu, João Moreira Salles?! –, o deputado Hélio Lopes (sobre quem também já falei) e Carlos Decotelli, ex-ministro relâmpago da Educação. É inacreditável.

Não há uma direita negra no Brasil, pois nem sequer há a preocupação para que ela se articule. O que há são indivíduos

Ou seja, se você é negro e não milita nos movimentos de esquerda, na turba permitida pelos acadêmicos viúvas de Karl Marx, sofre de “subalternidade consentida”, como se a adoração pelo PT, por Lula e por toda verborragia acadêmica europeia que alimenta as teses identitárias negras atuais fosse sinal de absoluta independência. Como se negros não pudessem simplesmente ter um pensamento autônomo. E terminam em tom falsamente profético – posto ser ilusório:

Esse movimento, porém, terá muito trabalho para se constituir, pois o que existe até agora, como vimos, são lideranças negras de direita que atribuem a si mesmas um papel subalterno, negam o caráter sistêmico do racismo e não oferecem propostas para a construção de subjetividades negras que sirvam de alternativa às da esquerda. Além disso, essas lideranças vivem desconectadas da população negra, estão pouco atentas às transformações sociais que ocorrem atualmente nas periferias do país e do mundo [...]. Sua pregação liberal primária, ademais, é incapaz de pensar um empreendedorismo negro e periférico.

É ilusório porque simplesmente não há uma direita negra no Brasil, pois nem sequer há a preocupação para que ela se articule. O que há são indivíduos. Aqui e ali, alinhados ou não a esse governo catastrófico, cuja militância negra só existe para fins de polarização política nefasta. O alinhamento episódico em algumas pautas não deve ser tratado como movimento político – uma vez que nem sequer há, como diz Norberto Bobbio, “ligames profundos com os grupos sociais e o enraizamento neles”, e nem uma liderança. Tampouco é um movimento social, pois não tem “o acento sobre a existência de tensões na sociedade, a identificação de uma mudança, a comprovação da passagem de um estádio de integração a outro através de transformações de algum modo induzidas pelos comportamentos coletivos”. Não estão desconectadas da população negra, são a população negra. Não há “pregação liberal primária” (Walter Williams dando piruetas no túmulo); o que há nas periferias é a mais profunda aplicação intuitiva da lógica do liberalismo econômico e do espírito de associação.

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Se há uma direita negra, ela não está no governo Bolsonaro nem mesmo na política, mas na tradição e na resistência cultural das periferias

Os conservadores negros são milhares – quando não milhões – de indivíduos que não se curvaram às doutrinas marxistas e estruturalistas porque não têm tempo a perder com academicismo de quem vive de bolsa de estudos. Se há uma direita negra, ela não está no governo Bolsonaro nem mesmo na política, mas na tradição e na resistência cultural das periferias; nos ônibus, trens e metrôs dos grandes centros; nos bailes Nostalgia que – graças a Deus! – ainda teimam em ocorrer; na caneta do rapper que, ao fazer uma crônica de sua quebrada, deseja apontar um caminho a seus irmãos; naquele pretinho e naquela pretinha que aprenderam que “o reino de Deus se conquista à força”, que depositam seus esforços, como todo aquele que deseja vencer as adversidades, naquilo que André Rebouças – para mim o maior intelectual negro brasileiro de todos os tempos e personagem da maior aula de meu curso – chama de iniciativa individual, definida por ele num artigo escrito em 1877:

A iniciativa individual [...] é a faculdade ou a capacidade, própria de cada pessoa, para encetar ideias ou ações novas. A iniciativa individual pressupõe vários elementos intelectuais e morais; enumeremos dentre eles os mais notáveis: consciência de si, a fé nos recursos intelectuais dados pelo Criador e aperfeiçoados por esforço próprio; a independência de caráter; a inata aversão a qualquer tutela; a sublime aspiração de ser o que os yankees denominam self made man, um homem feito por si mesmo, sem padrinho nem protetores; o espírito ou talento inventivo; o saber tirar recursos ainda dos casos extremos; o tato da ocasião [...]; a força de vontade – o self-help; o saber lutar – jamais desesperar; a coragem contra o ridículo – arma predileta da rotina contra a iniciativa individual, principalmente nos países latinos e neolatinos; enfim, principalmente e acima de tudo, a fé em Deus e na imortalidade da alma. É indispensável que nos dias de agonia extrema, quando o próprio céu oculta seu azul e elimina suas estrelas, se possa dizer: “Acima dessa abóbada de chumbo está o Deus de Colombo, de Franklin e de Fulton”.

Diante disso, fortalecendo nossa vocação e dando o primeiro passo, como dizia o meu saudoso pai: “forças extraordinárias virão em teu auxílio”. Foi assim com todos os luminares negros acima citados, tem sido assim comigo, e continua sendo assim com milhões e milhões de pessoas. Não é exceção, é história, é cultura, é vida negra em movimento – e esse é o verdadeiro esforço conjunto. Não é “subalternidade consentida”, é estratégia de sobrevivência.

Mas isso a esquerda negra, que só crê no coletivo abstrato, jamais compreenderá.

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