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Que é aquilo, entre folhas, brilhando
no escuro, brilhando
como se houvesse alguém chorando
no alto da árvore, brilhando?
(Elizabeth Bishop, Canções para uma cantora de cor)
O que faz de um artista um grande artista? Quais características marcam a vida e obra dos grandes gênios culturais da história? Seu talento? Suas controvérsias? Seus relacionamentos? Seus resultados comerciais? Segundo o grande Samuel Johnson, em seu ensaio sobre Shakespeare, “assim como entre as obras da natureza ninguém pode rigorosamente qualificar um rio de profundo ou uma montanha de alta sem ter conhecido muitas montanhas e muitos rios, também acerca dos produtos dos gênios nada se pode declarar excelente antes que seja comparado com outros da mesma espécie”. Ou seja, é pela comparação que os gênios se diferenciam; e é exatamente a partir disso que podemos colocar, sem medo de errar, Eleanora Fagan, mais conhecida como Billie Holiday, nesse panteão.
Billie Holiday foi absolutamente genial não só porque sua voz é inconfundível, seu estilo é único e sua vida trágica uma marca indelével do seu canto. Sua genialidade vem, sobretudo, da consciência que tinha de sua vocação e de seu talento. Quando diz, em sua autobiografia Lady sings the blues – após apostar com o dono racista do hotel em que se apresentaria com a orquestra de Artie Shaw –, que se sairia “melhor do que qualquer outra cantora”, sabia que dizia a verdade. E, após o sucesso absoluto da apresentação, afirma, categórica: “Não havia discussão. Eu era a melhor”. E sua arte vive porque, mais uma vez citando Johnson, “nada pode agradar a muitos, tampouco durante muito tempo, senão as representações legítimas da natureza universal”. Billie Holiday é universal.
Em Estados Unidos vs. Billie Holiday, a lenda do jazz é apenas um instrumento para a transmissão de uma mensagem bem ao gosto de movimentos revolucionários como o Black Lives Matter
No entanto, essa constatação, infelizmente, não fica evidente no mais recente filme lançado sobre Lady Day, Estados Unidos vs. Billie Holiday, dirigido por Lee Daniels (de Preciosa e O Mordomo da Casa Branca). O filme é bom, mas mais pela atuação primorosa da cantora Andra Day – que, assim como Diana Ross no primeiro filme sobre Holiday, cantou todas as músicas – do que pelo roteiro confuso e pela direção irregular. Andra Day, que venceu o Globo de Ouro de Melhor Atriz por seu papel, tem o timbre parecido com o de Holiday e, diferentemente de Ross, que imprimiu uma marca mais popular nas canções, fez seus covers com uma fidelidade quase absoluta às gravações originais.
O filme se concentra no período em que Holiday, em meio à sua luta contra o vício em heroína, foi duramente perseguida pelo FBI, com a controversa colaboração de um agente negro, Jimmy Fletcher, que, no filme, se envolve amorosamente com ela. O filme, mesmo tomando muitas liberdades no roteiro em relação à vida real de Lady Day, nos entrega, é fato, uma personagem mais fiel que a romântica e ingênua figura representada por Diana Ross no filme produzido pelo espetacular Barry Gordy (Motown). No entanto, o longa traz uma marca comum nas produções atuais sobre temas raciais americanos – como Infiltrado na Klan (Spike Lee), Judas e o Messias Negro (Shaka King) e a recente série documental da Netflix EUA: Luta pela liberdade (Kenny Leon): a militância excessiva que interpreta o passado com lentes do presente para fins políticos.
O filme, como o próprio diretor afirmou, “não é uma cinebiografia”, mas um “chamado às armas”. Não é um filme sobre Lady Day, mas sobre uma ideia; a lenda do jazz é apenas um instrumento para a transmissão de uma mensagem bem ao gosto de movimentos revolucionários como o Black Lives Matter. É um filme, com o próprio título diz, que reforça a narrativa de como a América é injusta para com os negros; de como o racismo ainda é a maior chaga da realidade norte-americana; de como a polícia, o sistema prisional e a guerra contra as drogas são, na verdade, uma guerra contra os negros. A arte, nesse caso, está em segundo plano, pois o mais importante é a formação da imaginação moral das novas gerações com o ressentimento próprio das ideologias contemporâneas e, sobretudo, da luta antirracista revolucionária.
O destaque para Strange Fruit, a avassaladora música de protesto sobre os enforcamentos de negros durante o nefando período das leis Jim Crow, é obscurecido pela tentativa de Daniels atualizar a sua mensagem sem enfatizar as curiosas circunstâncias históricas da canção, adaptada de um poema de Lewis Allen (pseudônimo de Abel Meeropol, um judeu ativista), e o efeito que ela tinha na própria Billie Holiday. Ela diz, em Lady sings the blues:
“Tive medo de que as pessoas a detestassem. Na primeira vez que a cantei, achei que havia sido um equívoco e que meu receio era justificado. Não houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando terminei. Então uma pessoa sozinha começou a aplaudir nervosamente. De repente, todo mundo estava aplaudindo. A canção pegou depois de um tempo e as pessoas começaram a pedir que eu a cantasse […]. Apesar disso ainda me deprime toda vez que a canto. Lembra-me de como papai morreu. Mas preciso continuar a cantá-la, não só porque as pessoas pedem, mas porque 20 anos depois da morte de papai as coisas que o mataram ainda continuam acontecendo no Sul.” [seu pai morrera porque, ao ser acometido de uma pneumonia, nenhum hospital de Dallas aceitou atendê-lo].
O roteiro salta de um lado para outro sem, com isso, construir uma narrativa sustentável e de acordo com quaisquer propósitos biográficos. Personagens importantes da vida de Lady Day tornaram-se irrelevantes – outros, como o entrevistador Reginald Lord Devine, foram inventados sem qualquer razão concreta –, e ela mesma é somente a mulher injustiçada e vítima do sistema; sua vida foi resumida à sua batalha pessoal contra o FBI; sua música foi reduzida quase à decoração; e sua arte, a uma militância anacrônica e completamente desconectada de sua vida.
Não que uma abordagem episódica de uma vida seja totalmente inadequada; no entanto, quando a mensagem que se deseja transmitir fica muito evidente, só um gênio é capaz de transmiti-la sem macular a arte – conforme analisado por mim em artigo recente, aqui, nesta Gazeta do Povo. Billie Holiday, assim como Nina Simone – com canções como Why? The King of Love Is Dead – e Marvin Gaye – com What's Going On? –, são estrelas de tamanha grandeza que sua arte prevalece ainda que sirvam a finalidades específicas. Lee Daniels é talentoso, mas, ao se servir do tipo de abordagem sensacionalista usada pelo livro Chasing the Scream: The First and Last Days of the War on Drugs, de Johann Hari (cujo capítulo que aborda os entraves de Billie Holiday com o FBI foi fonte do roteiro de Suzan-Lori Parks), peca por não conseguir produzir cinema de fato, mas somente um panfleto ideológico com excelente atuação de Andra Day.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos