“A primeira coisa que um homem fará por seus ideais é mentir”. (Joseph A. Schumpeter)
Aproveitando a semana que a Abolição faz 130 anos, e como um aquecimento para meu curso online “O Brasil é um país racista?”, volto à polêmica racial.
Um amigo me enviou, esses dias, uma entrevista de Djamila Ribeiro, a feminista negra (as ramificações se multiplicam como kefir) a quem o título universitário conferiu o direito de ser chamada de filósofa. Sim, porque não importa se a pessoa nunca leu uma página sequer de Platão ou Aristóteles – esses filósofos brancos-europeus-elitistas – ou mesmo se tem ou não condições de compreender uma Questão da Suma Teológica – esse panfleto da religião racista que marginaliza os orixás; numa era em que a ideologia tomou o lugar da produção intelectual e científica responsáveis, da sabedoria e da tradição, a sanha por representatividade dá ao primeiro impetuoso diferentão o título que lhe abrirá as portas da Academia e da mídia para que sonhe com um “mundo melhor” sem qualquer responsabilidade pelos desdobramentos práticos de seus devaneios.
É bom esclarecer: por “ideologia” entendo aquilo que Andrei Pleșu, em seu Da alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental (É Realizações), chama de “construções rápidas de ideias, surgidas de um interesse privado ou de grupo e tendo como escopo a modificação da mentalidade pública, das instituições da vida social”. E acrescenta:
“O ponto de partida delas não é a realidade propriamente dita, mas um interesse de classe ou de categoria social. Em consequência, o ideólogo não quer entender o mundo. Quer modificá-lo, de um modo que coincida com os seus princípios e escopos: é, portanto, uma natureza mais utópica e ególatra. Ele se crê chamado a decidir acerca do modo ótimo de organização do mundo e crê que o seu modo de entender a felicidade aplica-se a toda a humanidade” (p. 105).
É só isso que se produz no mundo da pós-verdade que se tornaram as Universidades (sobretudo as Ciências Humanas), o habitat natural do intelectual, porém idiota (intellectual yet idiot, IYI) – expressão criada por Nassim Nicholas Taleb, para caracterizar o “semi-erudito que pensa ser um erudito”; que “patologiza os outros por fazerem coisas que ele não entende, sem nunca perceber que seu entendimento é que pode ser limitado. Ele acha que as pessoas devem agir de acordo com seus melhores interesses”.
Djamila, que mistura sua luta feminista com a luta contra o racismo, diz ter descoberto o feminismo através de uma ONG, e que “se eu luto contra o machismo, mas ignoro o racismo, eu estou alimentando a mesma estrutura”. Também diz que, no Brasil, não discutimos o racismo de maneira apropriada por conta do “mito da democracia racial […]. De acreditar que aqui não existia racismo. De que racismo é o que existia nos Estados Unidos ou na África do Sul, porque lá estava na Constituição, enquanto que aqui no Brasil não tinha isso… Mas não reconhecendo que aqui você tem o racismo institucional”.
Essa afirmação de Djamila me chamou a atenção, pois toca em dois conceitos (ou pseudo-conceitos) que me causam grande inquietação e que são repetidos a todo o momento por militantes do movimento negro: “democracia racial” e “racismo estrutural”. Tentemos compreendê-los.
Democracia racial
“Democracia racial” é um termo atribuído ao grande sociólogo Gilberto Freyre, mesmo sem ter sido ele o seu criador e nem mesmo tê-lo usado em suas obras. Há quem diga que o termo foi apresentado por Freyre em sua obra-prima Casa Grande & Senzala, mas não há uma menção sequer dele no livro – nem nos outros dois de sua trilogia: Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso. Mas Freyre, mesmo tendo aceitado a ideia (pelo menos como tendência) – como Caetano Veloso – nunca negou os problemas do racismo no Brasil. Aliás, em Casa Grande & Senzala, mesmo, encontramos descrições aterradoras da relação senhor-escravo. Freyre fala, por exemplo, de “um senhor de engenho mais ansioso de perpetuidade não se conteve: mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa” (p. 38); ou de “senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas” (p. 46), ou de “baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de judiarias” (p. 421). Ou, contra os índios, o castigo de amarrá-lo “a duas canoas, correndo estas, à força de remos, em direções contrárias até partir-se em dois o corpo do supliciado” (p. 226); ou, ainda, do “extermínio da raça indígena no Brasil” (p. 229).
Ou seja, Freyre não alivia ou mesmo esconde os problemas da colonização e da escravidão no Brasil. Porém, não o faz com romantismo, mas como quem descreve “a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos” (p. 69). Demonizá-lo por ver, mais perto de nós do que em outros países colonizados à mesma época, a miscigenação como um dos aspectos mais surpreendentes e benéficos de uma sociedade formada pelo trabalho escravo, é negar a realidade. Como ele mesmo diz, em entrevista recuperada pela Dra. Roberta Fragoso Kaufmann: “não há pura democracia no Brasil, nem racial, nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte do mundo”.
Quando negam esse dado tão evidente, Djamila e seus acólitos do movimento negro de esquerda – sustentando as críticas feitas a Freyre, ainda na década de 1960, por sociólogos como Florestan Fernandes e Roger Bastide – carregam de sentimentalismo tóxico (a expressão é de Theodore Dalrymple) suas teses de engenharia social, tentando mascarar a realidade para alcançarem seus objetivos acadêmicos e sucesso em suas carreiras – pois, ao fim e ao cabo, parece que só isso importa: a tal representatividade.
Negar que haja uma convivência relativamente harmoniosa entre negros e brancos no Brasil – considerando os mais de 46,7% de mestiços (IBGE, 2017) –, por conta dos índices de violência nas periferias ou por termos menos negros ocupando “posições de poder”, é cometer aquilo que Thomas Sowell chama, em seu Os intelectuais e a sociedade (É Realizações), de “realidade paralela na mídia e no mundo acadêmico”, pois:
“A manipulação dos números pode tornar quaisquer dados estatísticos consistentes com determinada visão, e a manipulação de outros números ou até mesmo dos mesmos números, vistos ou selecionados de forma diferente, pode produzir dados consistentes com a visão oposta. Mas somente quando os números estão a serviço de uma visão dominante é que ficam propensos a ser aceitos cegamente, sem passar pelo crivo da crítica e sem considerar outras estatísticas, as quais podem contar um história um tanto quanto diferente […] Manipulação e uso tendencioso das informações não produzem apenas fatos fictícios, mas também pessoas fictícias […] Os artifícios retóricos permitem a muitos intelectuais escaparem à responsabilidade por manipularem as informações, cujo intuito é criar realidades virtuais a fim de corroborar a sua visão […] A visão do intelectual ungido se inclina, por si mesma, para decisões dramáticas e categóricas, uma proliferação de ‘direitos’, por exemplo – em vez de favorecer o aumento do campo de negociações”. (pp. 197, 208, 228 e 238).
Racismo estrutural
Sobre o conceito de “racismo estrutural”, fui obrigado, primeiramente, a certificar-me do significado de “estrutura”. De acordo com Jose Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia (Loyola), “estrutura” é um conceito bastante amplo, mas deve-se buscar, convenientemente, defini-lo de modo abstrato. “Por um lado”, diz ele:
“Entende-se ‘estrutura’ algum conjunto ou grupo de elementos relacionados entre si segundo certas regras, ou algum conjunto ou grupo de elementos funcionalmente correlacionados. Os elementos em questão são considerados mais como membros que como partes […] Por outro lado, uma estrutura pode ser entendida como um conjunto ou grupo de sistemas. A estrutura não é então uma realidade ‘composta’ por membros; é um modo de ser dos sistemas, de tal como que os sistemas funcionam em virtude da estrutura que têm”. (p. 918)
Ou seja, conjunto de elementos ou um sistema.
Então fui atrás de compreender o que o movimento negro entende por “racismo estrutural”. Encontrei um vídeo da editora de esquerda Boitempo – aquela que comercializa O Capital, de Marx, por mais de R$ 200,00 –, protagonizado pelo advogado Sílvio Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama. Almeida é militante marxista e professor universitário. Um tipo com cara de bonzinho, fala mansa e ideias tortas. Assim ele define o “racismo estrutural”:
“O que a noção de racismo estrutural coloca, é que o racismo não é algo anormal, é algo normal. Normal no sentido de que… – não que a gente deve aceitar – é que o racismo, independente da gente aceitar ou não, ele constitui as relações no seu padrão de normalidade; ou seja, o racismo […] é uma forma de racionalidade. É uma forma de normalização, de compreensão das relações […] O racismo, ele constitui não só as ações conscientes, mas constitui também aquela porção que a gente chama de inconsciente […] Quando eu falo de estrutural, estou falando de, basicamente, três dimensões […] eu tô falando de economia, eu tô falando de política, eu tô falando de subjetividade; são esses três pontos que constituem o que eu chamo de estrutural”.
E então passa a reclamar da carga tributária brasileira, que prejudica mais os pobres e, consequentemente, os negros, que são os mais pobres dentre os mais pobres. E prejudica ainda mais a mulher negra, que é vista, pelo movimento negro, como o cocô do cavalo do bandido. Acusa os empresários de serem os que mais reclamam da alta tributação – ignorando que muitos brasileiros nem sabem como funciona a absurda tributação brasileira – e que a mulher negra é quem paga mais impostos, pois:
“A estrutura, o sistema tributário, funcionando na sua normalidade […] reproduz as condições de desigualdade que colocam a mulher negra no final, na base, lá no finalzinho da pirâmide social. Por quê? Porque as mulheres negras são aquelas que recebem os menores salários. E como a tributação brasileira é estruturada fundamentalmente para incidir sobre o consumo e sobre salário, as pessoas que ganham menos e que também consomem, são aquelas que vão pagar proporcionalmente mais”.
Não é romântico? Não dá vontade de sair por aí libertando as mulheres negras do jugo opressor do Estado brasileiro? Pois é. Mas o que ele oferece para solucionar o problema – que, em relação à alta tributação dos mais pobres, ele diagnostica acertadamente? Vejamos:
“E a gente consegue, então, fazer uma relação entre o baixo salário das mulheres negras, a constituição do sistema político-tributário, a falta de representatividade [olha a palavrinha aí, de novo] da mulher negra; as pautas das mulheres negras não tomam corpo a ponto de se tornar uma política social, uma política pública…”
Política pública?! O sujeito quer mais Estado para resolver o problema da intervenção estatal?! Meu Deus! A única política pública que o governo deve se engajar, numa situação como essa, é tirar as mãos do nosso dinheiro! É dar mais liberdade econômica ao cidadão e aos pequenos empreendedores (aliás, dentre estes há muitas mulheres), diminuir a carga tributária sobre o consumo e melhorar a educação de base – uma boa maneira de encaminhar esse último item sem fazer o dinheiro público descer pelo ralo (ou parar na corrupção) é o sistema de vouchers.
Aí nosso advogado começa a reclamar que o racismo é tão, mas tão estrutural e estruturante, que mesmo as pessoas que não o aceitam, são incapazes de realizar qualquer ação política efetiva para lutar contra. Diz que há uma normalização da violência contra as pessoas negras e que, também, estranhamos a presença ou ausência de pessoas negras em determinados locais – essa coisa de “não tem negro nas universidades, no STF, na novela, nos comerciais, nas universidades…”
Mas veja bem, se o racismo estrutural CONSTITUI – ou seja, integra essencialmente as relações sociais no Brasil –, então deve ser encarado, na definição de Ferrater Mora, como um sistema. E se é um sistema, ou seja – também segundo Ferrater Mora –, “um conjunto de elementos relacionados entre si funcionalmente”, suas partes são indissociáveis e seu todo é organizado de modo que funcione sem erros. Qualquer elemento que saia do sistema, prejudica o seu funcionamento.
Portanto, se o racismo estrutural é um sistema, como explicar o fato de Djamila Ribeiro e Sílvio Almeida, de certo modo, romperem essa estrutura opressora e frequentarem os espaços de destaque que julgam não ser possíveis aos negros? São acadêmicos midiáticos. O que dizer de tantos negros, homens e mulheres, que se formaram nas faculdades antes das cotas? Intelectuais, artistas, juristas, advogados, políticos, médicos etc.?
A resposta do movimento negro é sempre a mesma: exceção. Eles veem como pessoas especiais todos os que conseguem, por alguma conjunção de fatores que consideram fortuitos misteriosos, atravessar uma pequena “fissura” no sistema racista brasileiro e chegar à tão sonhada relevância. E, como se não soubessem que todos os que se destacam são, de fato, exceções, brancos ou negros, se recusam a chamar essa fissura de esforço, de mérito. No entanto, ocupar posições de destaque por razões ideológicas não é para qualquer um, e pode ser que, no caso de Djamila Ribeiro e Sílvio Almeida, o mérito tenha, mesmo, ficado em segundo plano. O fato é que, todo aquele que tem 1) uma base moral sólida, 2) educação (formal ou informal, tanto faz) e 3) uma vida cheia de sentido, consegue alcançar seus objetivos. Dar conta desses três itens tem que ver muito mais com a busca da ordem da alma e da sociedade do que com políticas públicas. Tenho escrito sobre isso em meus artigos sobre educação, neste blog.
Ofereço, portanto, um contraponto ao que afirmam Ribeiro e Almeida.
O advogado se nega, em seu vídeo, a aceitar que racismo brasileiro tem causas conjunturais. Diz ele, de modo um tanto confuso:
“A gente deve entender o racismo não como algo conjuntural; porque, fosse o racismo um fenômeno conjuntural… o que eu quero dizer com isso? Fosse o racismo um fenômeno… uma anomalia – a gente, geralmente trata o racismo como uma patologia social, ou então como uma patologia, mesmo, atribuindo àqueles que são racistas algum tipo de problema intelectual, mental ou mesmo de caráter, enfim… a gente costuma tratar o racismo como uma anormalidade”.
Não, meu caro Sílvio, o racismo brasileiro é, sim, conjuntural – e aqui substituo o termo por seu sinônimo circunstancial. Não por esses motivos esquisitos que o senhor apresenta (o qual me parecem só um recurso retórico, e não uma constatação da realidade), mas porque é uma herança direta do recentíssimo passado escravista. Ele não mais faz parte da estrutura da sociedade brasileira, como fazia no período final da escravidão – sim, pois todo mundo deve saber que os africanos não foram escravizados por serem negros, e que o racismo só surgiu, de fato, com as teses eugenistas do século 19 –, mas ainda faz parte do imaginário popular. Não de forma estruturada, mas por herança familiar ou pela imaginação moral. Os mais de trezentos anos de assimilação e formação de um imaginário submisso minaram a capacidade de brancos e negros enxergarem-se para além dos grilhões que os prendiam em suas posições sociais. Nesse sentido, os cento e trinta anos que passaram desde a abolição são um instante. O tempo, impossível negar, é o maior aliado para cicatrizar feridas emocionais. Não há atalhos. A luta contra esse tipo de circunstância cabe muito mais aos negros, que devem reformar o seu imaginário, destacando-se por sua capacidade e não por sistemas de ação afirmativa estatal. Caberá aos não-negros assimilarem essa nova circunstância que se imporá a todos. Parafraseando o psiquiatra Viktor Frankl: posso não ter controlado como minha vida iniciou, mas como ela terminará, em grande parte, depende só de mim.
Levará mais tempo? Certamente. Mas se tornará um esforço mais efetivo a partir do momento que nos conscientizarmos dessas circunstâncias e nos esforçarmos por superá-las. Diz Ortega y Gasset, em seu célebre Meditações do Quixote (Livro Íbero Americano): “O homem rende o máximo de sua capacidade quando adquire plena consciência de suas circunstâncias” (p. 47). E nos encoraja, dizendo:
“Havemos de buscar, para nossa circunstância, tal e como ela é, precisamente no que tem de limitada e peculiar, o lugar acertado na imensa perspectiva do mundo. Não nos deteremos perpetuamente em êxtase perante os valores hieráticos, mas conquistaremos para nossa vida individual o posto oportuno entre eles. Em suma: a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”. (p. 51)
Não, o Estado não é nosso aliado. Não, não somos vítimas da sociedade. Não, não nos devem nada. Não, não somos incapazes de mudar nosso destino.
Quem realmente quer, consegue.
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