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“A manipulação retórica dos intelectuais filtra tanto as palavras quanto os fatos, fazendo uso daquilo que poderíamos chamar de eugenia verbal, análoga à limpeza étnica.” (Thomas Sowell)
Com o recente aparecimento, no debate político, do recém-eleito presidente da Argentina, Javier Milei, com suas posições controversas, seu comportamento histriônico e suas declarações que beiram a insanidade, um termo ganhou os noticiários brasileiros para se referir ao então candidato: ultradireita. A primeira vez que li ou ouvi se referirem a ele desse modo, pensei que, para a classe falante – jornalistas, intelectuais, políticos etc. – o termo “extrema direita”, usado aos borbotões para se referir, por exemplo, a Jair Bolsonaro e Donald Trump, já não era suficiente. Milei seria mais radical do que os dois últimos ex-presidentes do Brasil e dos EUA.
Apesar de ser possível encontrar tais termos como sinônimos, no contexto das análises, dos comentários e do debate político atual, essas palavras não mais significam o que, em sua origem, significavam. São apenas maneiras de rotular como posições errôneas – quando não, condenáveis – aquelas das quais se discorda. Não que essas posições não existam e não devam ser nomeadas, mas que a sua aplicação no contexto atual padece, propositalmente, de precisão conceitual a fim de manipular a opinião pública. Como mostrarei abaixo, tais termos não são usados para distinguir posições legítimas numa democracia de posições evidentemente extremadas dentro de um espectro político, mas como meros xingamentos.
Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, afirma que:
“O Extremismo indica uma tendência no campo doutrinário, um comportamento ou um verdadeiro e específico modelo de ação política adotados por um movimento, por um partido, por um grupo político, que rejeita as regras de jogo de uma comunidade política, não se identificando com as finalidades, os valores e as instituições prepostos à vida pública, e fazendo por modificá-los radicalmente. O que caracteriza o Extremismo é, em última análise, a tendência em ver as relações políticas nos moldes das alternativas radicais, a consequente recusa em aceitar a gradualidade e parcialidade dos objetivos, a repulsa à negociação e ao compromisso, e a urgente busca do ʻtudo e agoraʼ.” (grifo meu).
“Extrema direita” ou “ultradireita” se tornaram apenas maneiras de rotular como posições errôneas – quando não, condenáveis – aquelas das quais se discorda
Em complemento, classifica o extremismo de direita como a “emanação direta de classes e categorias sujeitas a uma repentina perda de status e de condição e a uma drástica redução da sua influência política. É o Extremismo daqueles que, ʻem outros tempos, foram possuidoresʼ e cujo comportamento político está voltado para a defesa a todo custo e/ou para a reconquista das suas tradicionais prerrogativas político-sociais”; e como extremismo de esquerda, afirma que sua “origem social está mais nas classes que ʻjamais foram possuidorasʼ. Está radicado, portanto, segundo algumas escolas sociológicas, na classe operária e no subproletariado e é favorecido pelo baixo nível de instrução e cultura dos grupos sociais mais deserdados, propensos por isso [...] a representações simplificadas e maniqueístas da realidade sociopolítica”.
Ou seja, essas definições são perfeitamente compreensíveis dentro do debate político, e é possível encontrá-las na realidade objetiva. Mas é forçoso admitir que mesmo Bolsonaro e Trump não podem ser classificados dessa maneira sem uma série de ponderações. Eles nem sequer podem ser igualados, uma vez que Bolsonaro é um político de carreira, integrante histórico do chamado Centrão e que há mais de 30 anos ocupa a vida pública brasileira; enquanto Trump é um megaempresário em seu país, que, mesmo com grande influência política, nunca havia sido nem sequer candidato. Se, em termos ideológicos, os dois se aproximam e até se comportam de modo radical em relação aos seus oponentes políticos, e, com isso, acabam por receber o apoio de grupos claramente extremados, associá-los a esses grupos também não pode ser feito sem observar as nuances e as circunstâncias. E não digo isso para isentá-los de culpa no comportamento desses grupos e de sua intenção de solapar a democracia. Mas a mesmíssima coisa pode ser dita a respeito de políticos de esquerda como Guilherme Boulos e o próprio Luiz Inácio Lula da Silva.
Agora quero dar ao leitor um exemplo recentíssimo de como essas classificações perderam completamente o sentido próprio para se tornaram, repito, meros xingamentos e rotulações de oponentes políticos, vistos como inimigos. No dia 15 de novembro, após vir a público o escândalo envolvendo a “Dama do Tráfico” e o Ministério da Justiça, o ministro de Direitos Humanos e da Cidadania, Sílvio Almeida, publicou um “textão” na rede social X (ex-Twitter) em defesa do ministro Flávio Dino, em que inicia dizendo: “Para mim, é evidente que estes ataques difamatórios, claramente coordenados, têm como alvo central o corajoso trabalho que o ministro Flávio Dino realiza à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública”. Um doutor em Filosofia iniciar a defesa de alguém com uma acusação genérica como se fosse “evidente” já é algo bastante questionável. Num contexto de seriedade e normalidade intelectual, isso seria inaceitável. Mas vivemos a esquizofrenia e o vale-tudo das redes sociais, e nem os acadêmicos escapam.
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Mas piora. Em seguida, ele afirma: “Há também por trás disso a tentativa generalizada, por parte de extremistas de direita, de a todo momento fabricar escândalos e minar a reconstrução da política de direitos humanos, uma vez que só conseguem oferecer ao país caos e destruição”. E termina sua defesa acalorada de seu companheiro de governo, dizendo: “Os próceres da extrema direita brasileira não têm compromisso com a verdade nem com o Brasil; não têm compromisso com o combate ao crime organizado; se valem de distorções para difamar, caluniar e destruir as conquistas do povo brasileiro”. Nada mais patético para um ministro de Estado se comportar dessa maneira em redes sociais, demonstrando claramente o viés político-partidário (antidemocrático, portanto) de sua atuação. Num contexto de seriedade institucional, isso seria inadmissível.
Vale lembrar que as revelações sobre a presença de uma mulher diretamente ligada à facção criminosa Comando Vermelho no Ministério da Justiça não foram feitas por “próceres da extrema direita”, mas pelo jornal O Estado de S.Paulo, em matéria do dia 13 de novembro, produzida pelos jornalistas André Shalders e Tácio Lorran, sob coordenação de Andreza Matais, que, por isso, foi duramente atacada pelo youtuber alçado a categoria de intelectual Felipe Neto (sobre quem já falei nesta Gazeta do Povo) e por outros sites, jornalistas e políticos de esquerda – curiosamente, nenhum deles chamado de “extrema esquerda”, mesmo intentando contra a liberdade de imprensa, pilar fundamental da democracia, numa clara tentativa de intimidação.
Mas Sílvio Almeida não parou por aí. Ontem, 5 de dezembro, ele compareceu na Câmara dos Deputados, em convite aprovado pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, a fim de explicar sobre as despesas de viagem pagas por seu ministério à “Dama do Tráfico”. Almeida passou por uma sabatina dos deputados, respondendo a tudo com sua altivez característica, mas foi obrigado a sair do personagem ao ser questionado pelo deputado Kim Kataguiri (União Brasil). Kim fez uma série de questionamentos ao ministro, que, em vez de respondê-los, partiu para o ataque chamando o deputado de – adivinhe, caro leitor: extrema direita.
O leitor pode não gostar do MBL, mas considerá-lo um grupo de extrema direita é esquecer completamente das definições políticas para adotar uma definição humpty-dumpty, dando ao termo o significado que se deseja
Saindo completamente fora do escopo da audiência e de seu papel de ministro de Estado, Almeida disse: “eu já imaginava que o senhor não consideraria suficiente a minha resposta, porque da última vez que eu estive aqui, o senhor fez um vídeo, uns cortezinhos para dizer que venceu o debate. Isso é tipicamente do grupo de extrema direita – isso é uma opinião política minha – da qual o senhor é um dos líderes, e que tem algo usual fazer insinuações difamatórias, como o senhor faz agora ao meu respeito”. E completou: “o senhor e o seu grupo são os maiores responsáveis por desestabilizar a democracia brasileira”. Ou seja, envolveu até o Movimento Brasil Livre (MBL), grupo do qual Kataguiri é um dos fundadores, num claro descontrole emocional, a fim de tergiversar dos questionamentos feitos.
Em resposta, Kataguiri afirmou: “Quando não se sabe combater no mérito, quando não se sabe responder o fato, ataca-se o interlocutor, ataca-se o mensageiro”. Almeida ainda fez insinuações sobre uma possível prevaricação do deputado em relação a supostas acusações feitas a seu respeito, ao que o deputado respondeu: “O senhor apontou que eu faço acusações difamatórias e que eu poderia até estar prevaricando, se não tomasse uma atitude contra o seu ministério, o senhor pode me processar – se eu disse alguma mentira, aponte essa notícia falsa ao Judiciário –, serei condenado e serei obrigado a me retratar, mas o senhor não fará, porque sabe que perderá”.
O leitor pode não gostar do MBL, pode ver no grupo milhares de defeitos, mas considerá-lo um grupo de extrema direita é esquecer completamente das definições apresentadas acima para adotar uma definição humpty-dumpty, dando ao termo o significado que se deseja, a fim de atacar o seu interlocutor, de xingá-lo. Isso é um fruto óbvio da infantilização do debate público e da política, mas, também, da famigerada – e já mencionada nessa coluna – traição dos intelectuais e de sua adoção das paixões políticas do cidadão comum, abdicando de sua posição de intérpretes sóbrios da realidade e tornando-se meros agitadores das massas. Pobre Brasil!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos