“A verdade é que penso nos meus anos de infância com prazer e curiosidade. Fantasia e sentidos eram alimentados e não me lembro de alguma vez ter experimentado tédio. Pelo contrário, as horas e os dias explodiam de coisas extraordinárias, cenários inesperados, momentos mágicos.” (Ingmar Bergman, Lanterna Mágica)
Essa é uma época do ano em que, tradicional e principalmente nos EUA, os filmes de Natal invadem os cinemas e, mais recentemente, os nossos serviços de streaming. Esqueceram de Mim, O Grinch, O Expresso Polar, Os Fantasmas de Scrooge (baseado no clássico natalino de Charles Dickens, Um conto de Natal), O Estranho Mundo de Jack, sem falar do clássico dos clássicos A Felicidade Não se Compra, estão entre os filmes vistos e revistos ano após ano – e, a cada ano, mais um ou dois filmes são incluídos nessa lista. Fora os álbuns musicais de Natal, que todo cantor ou cantora tem de ter em seu currículo – no Brasil, infelizmente, parece que só temos aquela insuportável e inextinguível música da Simone.
Entretanto, o filme de Natal de que mais gosto não é propriamente um filme de Natal. É um drama familiar de proporções bergmanianas, mesmo porque trata-se mesmo de um filme do gênio Ingmar Bergman – sobre quem já falei, mais de uma vez, nesta Gazeta do Povo – e um dos últimos trabalhos desse que é um dos maiores diretores da história do cinema. Falo de Fanny e Alexander, um épico feito em duas versões, uma minissérie para tevê, com 320 minutos, e uma versão para cinema, com 188 minutos.
Entre eventos misteriosos, discussões e ameaças, angústia e coragem, a história de Fanny e Alexander se desenvolve de maneira bastante dinâmica
Lançado em 1982, o filme segue um roteiro semiautobiográfico que Bergman escreveu em 1979, durante as filmagens de A Vida das Marionetes, e narra a saga da família Ekdahl, sobretudo da perspectiva dos irmãos Fanny (Pernilla Allwin) e Alexander (Bertil Guve), filhos de Oskar e Emilie Ekdahl, interpretados pelos brilhantes Allan Edwall e Ewa Fröling, que juntos conduzem um teatro próprio em Uppsala, na Suécia. Aliás, o elenco estelar reúne parte dos mais frequentes e geniais atores e atrizes dirigidos por Bergman, como Gunnar Björnstrand, Erland Josephson, Pernilla August, Harriet Andersson e o próprio Allan Edwall. Todos em atuações verdadeiramente arrebatadoras. Gunn Wållgren, que interpreta a matriarca dos Ekdahl, Helena, e Jarl Kulle – o filosófico general Lorens Loewenhielm, de A Festa de Babette –, como o dionisíaco Gustav Adolf Ekdahl, são um espetáculo à parte.
Sobre a história, diz Bergman em sua obra Imagens: “Meu filme Fanny e Alexander tem dois pais: um deles é E.T.A. Hoffmann [...]. Há uma novela de Hoffmann onde se fala de um quarto imenso, mágico [...]. Também existe uma ilustração de Os contos de Hoffmann que não me saía da memória. Ela é proveniente de O quebra-nozes. Nessa gravura veem-se duas crianças de cócoras, na véspera de Natal, esperando que a árvore seja iluminada e as portas do quarto se abram. O ponto de partida de Fanny e Alexander também é a celebração de Natal. O outro pai desse filme é, evidentemente, Dickens: o bispo e sua casa; o judeu na loja fantástica; as crianças como vítimas; o contraste entre um mundo fechado, preto e branco, e uma vida que floresce lá fora”.
Mas não era um bom momento na vida pessoal do diretor. Ele diz: “Tudo começou no outono de 1978. Vivia então em Munique, e me sentia mal. O processo dos impostos ainda corria, não sabendo eu como aquilo iria acabar. No dia 27 de setembro escrevi isso em meu diário: Não há nenhuma proporção entre a intensidade de minha angústia e a realidade que a causa. Apesar de ser assim, eu sei que gênero de filme quero fazer da próxima vez. Será diferente de tudo o que tenho feito até agora”. E foi. Bergman reuniu alguns de seus melhores habitués, seu companheiro de trabalho de longuíssima data, o diretor de fotografia Sven Nikvist, e preparou seu testamento cinematográfico. Como diz o crítico Armando Machado, em seu Planeta Bergman:
“O teatro da vida chega ao seu final; o derradeiro ato foi representado; a cortina fechou-se e o artista subiu pela última vez ao palco para agradecer a plateia, acenar para o seu público e num passe de mágica incorporar a sua pessoa à sua própria arte, num todo harmonioso e indivisível. Mais do que uma obra-prima, Fanny e Alexander é o ápice do cinema dos anos 80, porque, provavelmente, não haverá nesta década nenhum outro filme mais belo, mais rico, mais poético, mais emocionante e mais inteligente.”
A celebração de Natal, que dura praticamente todo o primeiro episódio da minissérie e quase uma hora da versão cinematográfica, é absolutamente espetacular e acontece de tudo, desde ceia fartíssima, até cantorias e danças animadas, passando por discussões amorosas, traquinagens infantis e até um espetáculo de flatulência protagonizado pelo problemático tio Carl Ekdahl (Börje Ahlstedt), diante dos sobrinhos, que se divertem. Começa com a apresentação da peça natalina no teatro da família, com direito a uma pequena comemoração entre os atores e um discurso emocionado de Oscar. Depois todos partem para a casa da matriarca, onde família e amigos se reunirão para celebrar o nascimento de Jesus.
A casa de Helena Ekdahl é enorme e cheia – mas cheia mesmo! – de coisas: móveis, quadros nas paredes, que, por sua vez, são cobertas de papéis de parede; utensílios de toda ordem espalhados por prateleiras; mesinhas de canto e centro, plantas e mais plantas, cortinas, tapetes, estátuas. Tudo decorado para o Natal. Apesar do ambiente carregado, é um local simpático e acolhedor. A matriarca, que fora atriz de teatro no passado, é uma viúva abastada e tenta manter as coisas mais ou menos em ordem na família. Sua solidão é amparada pelo amigo e amante de longa data, o gentil judeu Isak Jacobi (Josephson). As criadas, quase todas já idosas e há muitos anos trabalhando para a família Ekdahl – com exceção da sapeca Maj (Pernilla August) –, cuidam de tudo o mais.
Ocorre que Oscar, o diretor do teatro, morre subitamente durante os ensaios de Hamlet e as coisas mudam radicalmente. O drama se desenvolverá a partir do casamento, após um ano da morte do marido, de Emilie com o pastor Edvard Vergérus, um homem severo – claramente inspirado no pai de Bergman –, que leva a esposa e seus enteados para a casa paroquial, onde moram sua mãe, sua irmã (duas megeras) e uma tia gravemente doente, e passa a controlá-los com mão de ferro; sobretudo Alexander, que sofre castigos cruéis por sua natureza curiosa e rebelde. Alexander é um menino sensível, e passa a protagonizar uma espécie de príncipe Hamlet, vendo e conversando com o espírito do pai, tendo outras visões e preenchendo a história com o elemento fantástico hoffmaniano. Fanny é uma observadora atenta e uma cúmplice inseparável dos sofrimentos do irmão. Helena abandona o teatro e a família Ekdahl passa a se preocupar com o destino da viúva de Oscar. Sem contar que há um estranho mistério que ronda aquela casa, por conta da morte, ao que tudo indica, acidental, por afogamento, da ex-esposa do bispo e suas duas filhas, fato que torna a personalidade do bispo ainda mais cruel e nos leva a desconfiar dos motivos do trágico acidente.
Fanny e Alexander é uma experiência cinematográfica inesquecível, de beleza estonteante, carregada de simbolismo e lições que carregamos para a vida
Entre eventos misteriosos, discussões e ameaças, angústia e coragem, a história de Fanny e Alexander se desenvolve de maneira bastante dinâmica, prendendo-nos durante todas as suas mais de cinco horas (na versão minissérie), levando-nos a um desfecho emocionante e bem ao estilo de Bergman – e, diga-se, dos grandes contos maravilhosos –, que utilizou muitos elementos de sua própria infância para compor os personagens e as cenas. Diz ele, na sua autobiografia Lanterna Mágica, em complemento a o que está na epígrafe desse artigo:
“Ainda hoje deambulo pela paisagem da minha infância e reencontro luzes, odores, pessoas, espaços, momentos, gestos, tons e objetos. Porém, são raros os episódios com algo digno de se contar; são como filmes, curtos ou longos, rodados ao acaso, sem objetivo. A prerrogativa da infância: transitar livremente entre a magia e o mingau de aveia, entre o terror sem medidas e a alegria explosiva. Não havia nenhum limite, a não ser as proibições e as regras, que eram como sombras, quase sempre incompreensíveis. Sei, por exemplo, que não entendia essa coisa do tempo: ‘Você tem de finalmente aprender a não se atrasar, já ganhou um relógio, aprendeu a ver as horas’. No entanto, o tempo não existia. Eu me atrasava para a escola, me atrasava para as refeições. Vagava com calma pelo parque do hospital, olhava e fantasiava, o tempo se detinha, alguma coisa me lembrava que provavelmente estava com fome, e depois vinha a bronca. Era difícil distinguir entre o que eu fantasiava e o que era considerado real. Se me esforçasse, podia fazer com que a realidade se conservasse real, mas lá havia, por exemplo, fantasmas e espectros. O que fazer com eles? E as histórias, eram reais? Deus e os anjos? Jesus Cristo? Adão e Eva? O dilúvio? Como era mesmo o caso de Abraão e Isaac? Ele realmente tinha a intenção de cortar a garganta do filho? Eu olhava excitado para as gravuras de Doré e me identificava com Isaac, era algo real: o pai está prestes a cortar a garganta de Ingmar; imagine o que acontecerá se o anjo chegar atrasado. Eles vão chorar. O sangue escorre e Ingmar está pálido. Realidade. Então chegou o cinematógrafo [que, no filme, é uma das obsessões de Alexander].”
Fanny e Alexander é uma experiência cinematográfica única e inesquecível, de beleza estonteante – presente em cada detalhe, das atuações ao cenário, figurinos, trilha sonora etc. – , cheia de simbolismos e lições que carregamos para a vida, todas iniciadas numa celebração de Natal transbordante de amor e senso de família.
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