Detalhe de “Santo Agostinho em sua biblioteca”, de Vittore Carpaccio.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público
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“[…] Quem vencer a dor e o medo, esse mesmo será Deus. E o outro Deus não existirá.”
“Então, a seu ver o outro Deus existe mesmo?”
“Não existe, mas ele existe. Na pedra não existe dor, mas no medo da pedra existe dor. Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e o medo se tornará Deus. Então haverá uma nova vida, então haverá um novo homem, tudo novo...”
(Fiódor Dostoiévski, Os Demônios).

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Espanta-me ainda a quantidade de gente que acredita que filosofia é “coisa de ateu”. E em minha experiência, não só como professor, mas como cristão, não é raro ouvir esse tipo de afirmação e ter, curiosamente, de lembrar às pessoas que temos aproximadamente 15 séculos de diálogo do cristianismo – refutando, contemporizando, absorvendo – com a filosofia e que há quase uma infinidade de filósofos cristãos que, a serviço de sua fé ou não, encaram-na como alicerce fundamental para suas reflexões.

Atribuo esse fato a duas principais causas. A primeira tem a ver com o pouco ou nenhum interesse de cristãos hodiernos pela filosofia. Entre os evangélicos – que é a minha confissão de fé –, o desestímulo ao estudo da filosofia vem de uma compreensão errônea do mote reformado Sola Scriptura, como se a Bíblia fosse a única fonte necessária de conhecimento para os cristãos. Mas, como nos explica Robert Godfrey no livro Sola Scriptura, “a posição protestante [...] é que todas as coisas necessárias à salvação e concernentes à fé e à vida são ensinadas na Bíblia com suficiente clareza para que o crente comum as encontre e compreenda”. Não tem a ver, propriamente, com conhecimento, mas com salvação e condução de uma vida de santificação. Desse modo, a filosofia não só pode como é muito importante para a consolidação do conhecimento a respeito das verdades reveladas pela Bíblia. No entanto, as igrejas costumam, quando muito, centrar sua atenção no estudo das Escrituras, sem, contudo, abrir espaço para especulações de caráter propedêutico.

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Infelizmente, ainda hoje há professores que pensam estar vivendo nos anos de chumbo e tratam de “orientar” seus alunos contra o capitalismo, o neoliberalismo etc.

Entre os católicos (aqui especulo), talvez precisemos separar o fiel comum – ou mesmo nominal, aquele que diz pertencer a determinada confissão sem, contudo, praticá-la – do praticante e, ainda, do estudioso. Estudei numa faculdade católica repleta de seminaristas; estes, obviamente, precisam estudar Filosofia, pois é parte intrínseca de sua formação para o sacerdócio (o que não ocorre com a imensa maioria dos pastores, diga-se). Há, ainda, um contingente minoritário – que também existe entre os protestantes – dos que estudam por conta própria ou por estímulo de amigos, padres, catequistas etc. E há os católicos comuns, que guardam algumas práticas (como as orações e os ritos do batismo e do casamento, por exemplo), mas não têm nenhum compromisso com o Catecismo, a Tradição etc.

A segunda causa tem relação com o próprio ensino de Filosofia nas escolas e faculdades, dominado, há muito, pelo pensamento iluminista – quando não materialista e ateu –, que vê a religião como mero obscurantismo que tem de ser afastado do pensamento racional. Aliás, a primeira causa exposta também tem afastado cristãos das licenciaturas em ciências humanas (e muitos que se aventuram acabam deixando a fé pelo caminho), e tornado esse ambiente majoritariamente dominado por jovens seduzidos pelo pensamento revolucionário. Muitos professores ainda em atividade graduaram-se nos anos de ditadura militar, e fazer Filosofia era parte da resistência política. Como diz a petista – e onipresente no currículo de Filosofia do ensino médio – Marilena Chaui, em entrevista: “nossos cursos, com muitos disfarces, dedicavam-se à crítica do autoritarismo por meio de filósofos antigos, clássicos e contemporâneos nos quais encontrávamos temas e discussões que nos permitiam analisar o Brasil”. Ou seja, as universidades, nos anos de ditadura, despejaram um número considerável de professores militantes nas escolas e faculdades, para reproduzirem e reforçarem o movimento de resistência. Infelizmente, ainda hoje há professores que pensam estar vivendo nos anos de chumbo e tratam de “orientar” seus alunos contra o capitalismo, o neoliberalismo etc. Obviamente que generalizo, caro leitor, mas não é errado dizer – pois vivi isso em meus anos de graduação – que estudar Filosofia e conseguir separar as disciplinas das opiniões arraigadas dos professores é um desafio e tanto. Dentre os absurdos que ouvi, por exemplo, estava o de que Platão era um elitista.

Muitos temas apresentados nos currículos de Filosofia atuais, no ensino médio, concentram-se em problemas contemporâneos, relegando não só autores clássicos, mas toda uma gama de assuntos formativos para segundo plano. A chamada filosofia cristã, que distingue-se tanto da teologia quanto da própria filosofia pagã, é tratada de maneira displicente, mesmo tendo trazido à discussão não só a apropriação de conceitos da filosofia (como o Logos grego no Evangelho de João), mas temas originais que mudarão por completo a trajetória da filosofia: por exemplo, o conceito de criação. Diz-nos Julián Marías em sua História da Filosofia:

“O conceito que permite interpretar o ser do mundo desde o de Deus é o de criação. Temos, por um lado, Deus, o verdadeiro ser, criador; por outro, o ser criado, a criatura, cujo ser é recebido. É a verdade religiosa da criação que obriga a interpretar esse ser e coloca o problema filosófico do ser criador e do criado, de Deus e da criatura. Desse modo, o cristianismo, que não é filosofia, afeta-a de modo decisivo, e a filosofia que surge da situação radical do homem cristão é a que pode ser chamada, nesse sentido concreto, de filosofia cristã.

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Muitos temas apresentados nos currículos de Filosofia atuais, no ensino médio, concentram-se em problemas contemporâneos, relegando não só autores clássicos, mas toda uma gama de assuntos formativos para segundo plano

Não, a filosofia não é “coisa de ateu”. Fosse assim, os imensos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino não teriam se dedicado a examinar as teses filosóficas e retirar delas o que era de maior serventia à formulação das doutrinas cristãs. Agostinho dirá, n’A Cidade de Deus, que “ao tratarmos da teologia natural, temos de lidar não com quaisquer homens [...], mas é com filósofos que devemos discutir, com aqueles cujo nome proclama o amor à sabedoria”. E R.C. Sproul, um dos teólogos mais célebres do pensamento calvinista contemporâneo, diz, em seu Filosofia para Iniciantes, que “a antiga máxima ainda vale: ʻuma vida não avaliada não vale a pena ser vividaʼ. Para qualquer pensador sério, especialmente para o que se diz ser cristão, uma vida não avaliada não é uma opção válida”. Como eu disse anteriormente, em artigo aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, devemos resgatar a “metafísica como elemento constituinte da realidade – inclusive da realidade política –, mas tratá-la como um modo legítimo de dar sentido à existência”.

É nesse sentido que estou preparando um curso chamado Filosofia e Fé, que estará disponível a partir do próximo dia 11 (mas já disponibilizei a primeira aula, gratuitamente, em meu site), e no qual apresentarei um panorama básico da história da filosofia, demonstrando os pontos de aproximação e conflito que há entre esta e a fé cristã. O curso será precedido da Semana das Virtudes: cinco dias de aulas gratuitas, dos dias 7 a 11, às 20 horas, em meu canal no YouTube, em que apresentarei um estudo sobre as virtudes cardeais.

Se o caríssimo leitor não conhece filosofia, mas tem interesse em ter um conhecimento dos principais autores e temas da história – pois o curso não é, obviamente, destinado somente a cristãos –, espero por você!

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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