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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Flannery O’Connor era racista?

O"Connor com Arthur Koestler (à esquerda) e Robie Macauley, em 1947. (Foto: Wikimedia Commons)

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“Sobre os negros, o tipo de que não gosto é aquele que filosofa, profetiza, pontifica, o tipo James Baldwin. Muito ignorante, mas nunca calado.” (Flannery OʼConnor, em carta a Maryat Lee)

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Muitas pessoas que, atualmente, não gostam de Monteiro Lobato cresceram lendo as suas obras e guardavam boas lembranças delas até que as ligações do criador de Pedrinho com o movimento eugenista brasileiro entrassem mais seriamente nas discussões sobre o racismo no Brasil. A memória afetiva dos leitores de Reinações de Narizinho e do Sítio do Pica-pau Amarelo foi duramente confrontada e muitos não conseguiram sequer salvar aquele carinho de outrora por seus personagens marcantes.

Em certa medida, o mesmo ocorreu com a escritora americana Flannery OʼConnor, célebre por contos como Um homem bom é difícil de encontrar e o esquisitíssimo romance Sangue Sábio. Por ser um admirador de sua obra visceral e profunda, e sempre recomendá-la, sou frequentemente questionado por seu suposto racismo, mas nunca quis me aprofundar no assunto. No entanto, por ocasião de uma aula recente de meu Clube do Livro – que, aliás, está com as inscrições abertas por tempo limitado –, fui impelido a pesquisar sobre o tema e gostaria de trazer aos leitores de minha coluna as conclusões que tirei a respeito dessa controvérsia.

Mary Flannery OʼConnor nasceu em 25 de Março de 1925, em Savannah, Geórgia, filha única de Edward Francis O'Connor, um agente imobiliário, e de Regina Cline. Teve uma infância um tanto reclusa, marcada por bullying na escola e pelo amor ao desenho e aos animais. Sua predileção por aves, por exemplo, foi algo bastante notório em sua vida, que a fez adquirir dois pavões, que, de tão famosos, passaram a ser uma espécie de símbolo de sua obra. Sobre suas galinhas, ela disse, no ensaio “The king of birds”, do volume de ensaios Mystery and Manners: “O que era apenas um interesse moderado tornou-se uma paixão, uma busca. Eu tinha que ter mais e mais galinhas. Eu preferia aquelas com um olho verde e outro laranja ou com pescoços muito longos e cristas tortas. Eu queria uma com três pernas ou três asas, mas não apareceu nada nessa linha.”

A ambiguidade de Flannery em relação aos negros e ao problema do racismo traz uma complexidade que as pessoas não costumam observar.

Flannery era fruto de uma família muito religiosa, de católicos incrustados no meio de um sul predominantemente protestante, o que é uma marca importante de sua obra. Sua obsessão por pregadores fanáticos e profetas delirantes, que abundam no pentecostalismo, contrastam com sua visão católica tradicional – ela se dizia uma “tomista caipira” –, pois tratava-se de um fenômeno religiosos que, à sua época, era unicamente ligado ao protestantismo. Atualmente o catolicismo tem sua vertente pentecostal representada pela Renovação Carismática.

Outro elemento marcante da vida de Flannery foi o lúpus, doença que ceifou a vida de seu pai, em 1941, aos 45 anos, e que viria a interromper sua carreira de forma prematura, com sua morte aos 39 anos, em 03 de agosto de 1964, após mais de dez anos de sofrimentos intensos. Em carta a sua amiga Elizabeth Hester, ela diz: “Eu nunca estive em lugar nenhum senão doente. Em certo sentido, a doença é um lugar, mais instrutivo do que uma longa viagem à Europa, e é sempre um lugar onde não há companhia, onde ninguém pode seguir.” Suas cartas, aliás, reunidas pela amiga Sally Fitzgerald no volume The habit of being, são um importante registro de sua visão artística, teológica e filosófica.

O suposto racismo de Flannery OʼConnor pode ser encontrado, primariamente, em seus personagens. Sua obra, ambientada no sul da segregação racial entre os anos 1940 e 1960, é eivada de termos pejorativos relacionados aos negros, e causam incômodo no leitor desavisado. Por exemplo, ela usava a palavra nigger, absolutamente ofensiva aos americanos, sem qualquer cerimônia, pois dizia que “as pessoas sobre as quais eu estava escrevendo não usariam outra palavra”. Mas não só isso, em sua correspondência o termo é recorrente, demonstrando que ela era mais parecida com as pessoas sobre as quais escrevia do que imaginava. Como diz seu biógrafo, Jonathan Rogers, em A implacável velocidade da misericórdia – A biografia espiritual de Flannery  OʼConnor: “O problema de Flannery talvez não seja o fato de ela ter duas opiniões sobre as questões raciais, mas resvalar fácil e confortavelmente em opiniões intolerantes. Ela usava a palavra nigger tranquilamente e gostava de contar que retratavam os negros à sua volta como crianças desafortunadas. Em suas cartas não publicadas a Maryat Lee, ela também compartilhava livremente piadas racistas que ouvia em Milledgeville”. As duas opiniões de que Rogers fala é que, em carta a Maryat Lee, ela se diz “integracionista por princípio e segregacionista por gosto”. Mas ele complementa:

“Para sermos justos com a autora, a maneira como ela se comportava nessas cartas era uma caricatura. Flannery dramatizava, representando um papel com tanta convicção que parecia uma atriz sobre o palco […]. O desconforto que o leitor do século XXI sente com os insultos, ou mesmo as piadas raciais, de Flannery não é o fato mais relevante ao se analisar as posições racistas da autora. Mais relevante, talvez, seja a expressão de indignação de Flannery em relação aos progressistas do norte, que iam para o sul se envolver em políticas raciais, ao mesmo tempo que ela não manifestava a mesma indignação a respeito das violentas injustiças impostas aos negros no sul.”

Flannery, nesse sentido, pode ser considerada uma espécie de conservadora, que julgava melhor uma mudança gradual nas relações raciais no sul do país – o que é compreensível, mas, ao menos para mim, não muito aceitável. Mesmo porque o próprio Martin Luther King, em muitos sentidos também um conservador – já falei sobre isso aqui, nesta Gazeta do Povo –, entendia a urgência dos tempos. Entretanto, veja o que ela diz em carta a Janet McKane, em 1963:

“Espero que você não comece a ouvir sobre Milledgeville nos noticiários. Os negros locais acabaram de fazer uma petição ao conselho da cidade para fazer as coisas de sempre – integrar as escolas e restaurantes etc. No entanto, eles também queriam uma escola primária para negros construída, então acho que isso significa ʻconstrua uma para nós e você não será incomodadoʼ. Um item da lista deles era integrar a biblioteca. Acontece que a biblioteca está integrada há um ano e eles não sabiam. Nove negros tinham carteirinha. É assim que as coisas devem ser feitas aqui – completamente sem publicidade. Então não há problema. Espero que o resto possa ser cuidado tão bem quanto a biblioteca o fez, mas tenho minhas dúvidas sobre isso. Veremos.”

Se irritava com os agitadores, e, num comentário a Maryat Lee, diz: “Sobre os negros, o tipo de que eu não gosto é o tipo que filosofa, profetiza, pontifica, o tipo James Baldwin. Muito ignorante, mas nunca calado. Baldwin pode nos dizer como é ser um negro no Harlem, mas ele tenta nos contar todo o resto também. [Martin Luther] King, não acho que seja o grande santo da época, mas pelo menos ele está fazendo o que pode e tem que fazer. Não sei nada sobre Ossie Davis, exceto que você gosta dele, mas provavelmente gosta de todos eles. Minha pergunta geralmente é: essa pessoa seria duradoura se fosse branca? Se Baldwin fosse branco, ninguém o suportaria um minuto. Prefiro Cassius Clay... Cassius é bom demais para os muçulmanos.” Flannery também não quis encontrar James Baldwin num evento na Georgia, pois “isso causaria o maior problema, perturbação e desunião.” E acrescenta: “Em Nova York seria bom conhecê-lo; aqui não seria. Eu observo as tradições da sociedade da qual me alimento – é justo.” E diz admirá-lo como escritor.

Essa ambiguidade de Flannery em relação aos negros e ao problema do racismo traz uma complexidade que as pessoas não costumam observar. Outro fato importantíssimo – fundamental, eu diria – é que, como diz Rogers, “nos contos, os personagens negros, na maioria das vezes, figuram como pessoas melhores que seus pares brancos.” Ou seja, Flannery evita ao máximo fazer o que Monteiro Lobato fez, e isso por um motivo muito simples: ela dizia não ter capacidade de compreender a psiquê de um negro e não achava justo tentar representá-la. Num ensaio muito interessante sobre o tema do racismo em Flannery OʼConnor, escrito por Paul Elie na prestigiada revista New Yorker, isso é evidenciado: “Embora ela usasse epítetos racistas descuidadamente em sua correspondência, ela lidou corajosamente com o tema racial na ficção, retratando personagens brancos impiedosamente e criando personagens negros íntegros que ʻmantêm uma privacidade inviolávelʼ. E ela era admiravelmente desconfiada da apropriação cultural. ʻNão me sinto capaz de entrar na mente de um negroʼ, disse ela a um entrevistador.”

Considero isso de uma honestidade intelectual inquestionável. Honestidade essa que foi celebrada por ninguém menos que Alice Walker, autora do best-seller A cor púrpura, que também é militante negra e feminista. Walker é admiradora da obra de Flannery e deixa isso registrado no belíssimo ensaio “Além do pavão: a reconstrução de Flannery O’Connor”, publicado no livro Em busca dos jardins de nossas mães. Walker diz que Flannery foi, para ela, “a primeira grande escritora moderna do Sul e foi, de qualquer forma, a única que eu tinha lido até então a escrever frases audaciosas e desmistificadoras sobre as mulheres brancas, tais como: ʻA mulher era mais ou menos bonita – cabelo amarelo, tornozelos gordos, olhos cor de lamaʼ.” E complementa: “Seus personagens masculinos brancos não se saem muito melhor – todos desajustados, ladrões, loucos deformados, analfabetos e assassinos; e seus personagens negros, homens e mulheres, são igualmente superficiais, dementes e absurdos.” E arremata, de modo brilhante:

“Que ela tenha mantido certa distância (ainda que apenas em seu trabalho posterior, mais maduro) das questões internas de seus personagens negros, me parece uma boa escolha, uma vez que, ao limitar, de modo deliberado, o tratamento dado a essas questões e se ater ao registro de ações e comportamentos observáveis, ela os deixa livres, na imaginação do leitor, para habitar outra paisagem, uma outra vida, além da que ela cria para eles. Essa é uma virtude ausente em muitos escritores ao lidar com representantes de um povo oprimido dentro de uma história, e a insistência em saber de tudo, em ser Deus, tem, na verdade, nos sobrecarregado com mais estereótipos do que jamais daremos conta de nos livrar.”
Isso deixa um tanto evidente que as questões raciais para Flannery OʼConnor são tratadas pura e simplesmente como pecado. Ela tinha consciência do problema e reconhecia-o nela própria ao dizer: “Eu não gosto de negros. Todos eles me dão uma dor, e quanto mais deles eu vejo, menos e menos eu gosto deles. Particularmente o novo tipo [o ativista].” E creio que Jonathan Rogers equilibra bem as coisas quando afirma: “Dizer que Flannery OʼConnor era produto de sua época não é isentá-la de responsabilidade em questões raciais. Ela poderia ter sido muito mais progressista sem correr qualquer risco de perder-se num moralismo hipócrita. No entanto, tinha uma consciência de si fora do comum e compreendia que o problema de nossa alma – todo o problema de nossa alma – é muito mais profundo do que o racismo.”

Isso fica bastante evidente na brutalidade absoluta de alguns de seus personagens; a violência retratada em sua obra é um veículo da graça divina, pois ser humano algum, nem o mais iluminado, é capaz de lidar com atos de violência tão absurdos e aterradores. Só Deus.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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