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“A tragédia é feita de sofrimentos que já não podem respirar. É feita de dores sem esperança, que não olham para o céu.” (Gustave Thibon, O quarto de Jacob)
“[...] Outra revelação: o quanto o riso faz parte do luto. O riso está profundamente entranhado no linguajar da nossa família, e nós agora rimos ao lembrar do meu pai, mas em algum lugar por trás desse riso existe uma névoa de incredulidade. O riso vai se apagando. O riso se transforma em choro, que se transforma em tristeza, que se transforma em raiva.” (Chimamanda Ngozi Adichie, Notas sobre o luto)
Após os primeiros minutos da estupenda série inglesa Fleabag, criada pela talentosíssima Phoebe Waller-Bridge (que estará em Indiana Jones e o chamado do destino), minha esposa, que é um tanto reticente a cenas desse tipo em séries/filmes, desistiu; afinal de contas, o que pensar de uma jovem ninfomaníaca que faz piada para a câmera durante o sexo anal. Sim, estupefato leitor, é isso mesmo que você leu. Mas peço que não me abandone, como minha querida esposa fez com a série, e dê a mim a mesma chance que dei a esta; tenho certeza de que não se arrependerá.
Primeiro, porque a cena de sexo que acabei de mencionar não tem absolutamente nada de explícito ou sensual; não há sequer nudez. É um pouco desconfortável para alguns, como foi para minha esposa – e também para mim, embora tenha decidido continuar –, mas a protagonista, que não é nomeada na série, é tão debochada na quebra da quarta parede que torna tudo tão surreal quanto divertido. Mais tarde, percebemos que esse desconforto é também o dela própria, enlutada e cheia de culpa pela morte de sua melhor amiga e sócia Boo.
“Fleabag” é uma gíria que, numa tradução aproximada, significa “espelunca” ou mesmo “pessoa desagradável”, termos que combinam tanto com a protagonista quanto com sua cafeteria
A série é curtinha, duas temporadas de seis episódios (igualmente curtos), e teve sua estreia em 2016 – a segunda temporada, em 2019; ou seja, não é tão nova e muita gente já falou dela. Entretanto, estranhei quando comecei a comentar com amigos, após assisti-la pela segunda vez, e ver que muita gente ainda não a assistiu. Então decidi falar um pouco dela a fim de animar o meu leitor a essa que considero uma das produções mais geniais dos últimos tempos.
(Contém spoilers)
“Fleabag” é uma gíria que, numa tradução aproximada, significa “espelunca” ou mesmo “pessoa desagradável”, termos que combinam tanto com a protagonista quanto com sua cafeteria, praticamente abandonada e cheia de dívidas, mas que ela tenta manter para honrar a promessa feita, reciprocamente, à amiga-sócia: não desistir caso a outra faltasse. Mas ela não encontra forças, pois, como dito acima, está sofrendo um luto avassalador pela morte da amiga num suicídio indesejado. Como ela conta a outro personagem: “Ela acidentalmente se matou. Não era a intenção, mas não foi totalmente acidente. Ela não achou que iria morrer. Ela só descobriu que seu namorado transou com outra e queria puni-lo indo parar no hospital e não deixá-lo visitá-la. Ela decidiu andar em uma ciclovia movimentada querendo ser atropelada, talvez quebrar um dedo. Mas as bicicletas são rápidas e te jogam na estrada”.
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Nesse processo de tentar suportar a perda da única pessoa que julga amá-la, a protagonista vai tropeçando em todos os demais relacionamentos – familiares e amorosos – que tem. Com sua irmã, Claire (Sian Clifford), e com o seu pai (Bill Paterson) tem uma relação instável e conflituosa; sua mãe morreu e foi substituída por uma das personagens mais cínicas da história da humanidade – vivida pela extraordinária Olivia Colman –, que ela e a irmã odeiam (e nós também), sobretudo pela estranha submissão do pai. Há um namorado – se é que se pode chamar assim – e alguns ficantes tão esquisitos quanto ela, tudo isso envolvido por um senso de que tudo está fora do lugar e que só não se torna sufocante pelas situações absolutamente hilárias pelas quais a protagonista passa.
A irmã é uma executiva bem-sucedida – mas muito mal resolvida, cheia de complexos e toques –, casada com um sujeito intolerável que tem um filho weird de outro relacionamento. O pai parece estar aposentado, e a madrasta é uma talentosa artista contemporânea – no sentido pleno do termo e que, num episódio, decide fazer uma sexhibition, uma mostra com motivos sexuais, com, dentre outras coisas, uma parede de pênis modelados em gesso. A cafeteria é temática, mas por um motivo absolutamente fortuito: ela deu de presente a Boo um porquinho-da-índia e a amiga, apaixonada pelo bichinho, passou a comprar um monte de bugigangas de porquinho-da-índia – fotos, ilustrações, pelúcias – e entulhá-las na cafeteria. Todas essas coisas, somadas às sucessivas e hilariantes quebras de quarta parede da protagonista, geram um caldo de muito humor nonsense.
Mas a realidade é que a protagonista está em profundo luto e nada para ela faz sentido. A licenciosidade sexual, as brigas, a irreverência excessiva, os constrangimentos, tudo é fruto de um processo de não aceitação e culpa pela morte da amiga e tentativas de preencher o vazio que está sentindo. Sigmund Freud diz, em seu breve ensaio Luto e melancolia, que o luto, sendo “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”, pode ser, em alguns casos, substituído pela melancolia, sobretudo se o paciente já tem uma disposição patológica. A melancolia, no caso, tem como traços fundamentais
“um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.”
A protagonista está em profundo luto e nada para ela faz sentido. O sexo, as brigas, a irreverência excessiva, tudo é fruto de um processo de não aceitação e culpa pela morte da amiga
Essa parece ser a condição de nossa protagonista, evidenciada por esse sentimento de vazio que, vez por outra, a despeito do escudo encontrado na extroversão, explode. Um vazio que será, por um breve momento, preenchido por ninguém menos que um padre, representado brilhantemente por Andrew Scott, na segunda temporada.
Seu pai decide se casar com a megera artista e eles entram em contato com um padre apresentado por um amigo. Numa caótica (como de costume) e, em certo sentido, trágica reunião familiar num restaurante a fim de discutirem detalhes da celebração, o padre e a protagonista sentem-se mutuamente atraídos, num primeiro momento porque parecem ser os únicos a compreenderem o ridículo de tudo aquilo. O padre, sujeito um tanto heterodoxo que assumiu a batina recentemente, troca olhares e piadinhas com nossa debochada protagonista, num exemplo categórico de afinidade eletiva, com um detalhe peculiaríssimo (do qual preservarei a curiosidade do leitor) que se dá entre os dois, tornando o interesse pelo padre tão irresistível que ela decide procurá-lo na igreja. Os dois acabam se envolvendo profundamente, mas o desfecho dessa história só mostrará que nossa fleabag deverá buscar outra maneira de preencher o vazio que a domina.
“Fleabag” é uma série, de fato, espetacular; uma pequena joia – disponível no Prime Video – criada e roteirizada por Phoebe Waller-Bridge, que brilha no papel dessa atrapalhada, divertida e muito sensível empreendedora enlutada que nos faz rir, chorar e refletir. A série venceu vários prêmios, dentre eles o Emmy de Melhor Série de Comédia, Melhor Atriz, Melhor Roteiro e Melhor Direção (Harry Bradbeer). Ao ser perguntada sobre uma terceira temporada, Waller-Bridge respondeu: “A história parece estar completa. É muito bom ouvir que tantas pessoas a amaram, é quase como se ela não devesse ter dado tchau ao final... mas parece o jeito certo de encerrá-la, no ponto alto”. Então, o jeito é ver, rever e se esbaldar nessa junção de humor e melancolia inigualável.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos