A raça negra, assim como todas as raças, será salva por seus homens excepcionais. (W.E.B. Du Bois)
O que leva um jovem, escravizado desde o seu nascimento, em 1817, aos 19 anos (1838) fugir da escravidão após sua senhora ter lhe ensinado a ler e lhe feito notar que “o conhecimento torna uma pessoa [criança] inapta para a escravidão”? Certamente não foi a ideia de que toda a realidade, permeada pelo racismo e pela institucionalização de sua suposta inferioridade, o impediriam de prosperar socialmente, tornar-se um dos maiores e mais respeitados oradores de seu tempo, aconselhar o presidente Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão e se tornar o primeiro negro a concorrer às primárias para a presidência dos EUA, em 1888. Muito pelo contrário, como diz o homem já maduro: “desde a minha lembrança mais antiga, eu entretinha a profunda convicção de que a escravidão nem sempre seria capaz de me segurar em seu abraço imundo; e nas horas mais sombrias da minha carreira na escravidão, essa palavra viva e fé e de espírito de esperança não se afastou de mim, mas permaneceu como um anjo auxiliar para me animar através da escuridão”. Pois essa foi parte da trajetória de Frederick Douglass, um dos mais geniais líderes negros da história da humanidade e tema do primeiro artigo desta coluna.
O que Frederick Douglass, Booker T. Washington e W.E.B. Du Bois têm em comum? O fato de acreditarem piamente na liberdade individual, no espírito de associação e no verdadeiro mérito
E se uma criança, igualmente nascida sob o jugo da escravidão, mas tendo a chama da educação acesa ao carregar os livros da filha de seus senhores até a escola, decide, aos 16 anos – apenas sete anos após o término da guerra civil que pôs fim à escravatura –, que viajaria mais de 700 quilômetros, dormindo no chão, passando fome e frio, para estudar numa escola de que ouvira falar enquanto, ainda menino, trabalhava numa mina de carvão? E que, ao chegar à escola, tendo passado, como ele diz, “longo tempo sem alimentar-me direito, sem me lavar e sem mudar de roupa”, recebe a incumbência, como uma espécie de exame de admissão, de varrer um grande salão, o que o levou a entender que, sendo aquela uma atividade que sabia fazer – pois aprendera quando ainda era escravo –, aquela era sua grande chance. E ele afirma: “considerei-me um dos viventes mais felizes da terra. Meu exame de admissão no colégio consistiu num exercício de varredela – e nunca estudante de universidade, Harvard ou Yale, teve provas que lhe dessem tanto prazer”. Tamanho senso de urgência, oportunidade e esforço, o fizeram descobrir, posteriormente, que:
Aprendi que o êxito não se deve medir pela posição que um sujeito alcança na vida, mas pelas dificuldades que precisa vencer para triunfar. Assim, não hesito em declarar que, praticamente, a impopularidade da sua raça deu ao negro vantagens inestimáveis. Por via de regra o homem de cor é obrigado a consumir-se, a esmerar-se no que faz, para que o seu trabalho seja aceito; mas nessa luta desigual e encarniçada ganha força e confiança em si mesmo, o que não se dá com o branco, habituado a percorrer caminhos agradáveis. De qualquer modo acho bom ser o que sou, um negro.
Tal é a lição do inigualável Booker T. Washington, que saiu da escravidão para ajudar a fundar e tornar-se diretor de uma das mais prestigiadas universidades negras americanas, a Tuskegee University.
E o que dizer de um negro, nascido três anos após o fim da escravidão, numa família de negros livres com ascendência holandesa, órfão de pai (que deixou sua mãe quando ele tinha apenas 2 anos) e de mãe (que morreu em 1885, quando ele tinha 17 anos), que, tendo reconhecidas suas habilidades intelectuais ainda na adolescência, consegue ajuda, com os membros da igreja, para ingressar na Fisk University, onde recebe o título de Bachelor of Arts em 1889 e torna-se o primeiro negro e doutorar-se em Harvard, em 1895. Sua carreira foi absolutamente meteórica, como professor universitário, escritor e fundador da maior organização pelos direitos civis dos negros americanos, a Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP). Falo de W.E.B. Du Bois, o maior intelectual negro do século 20; homem de formação sólida em História, Filosofia e Sociologia, tendo sido aluno aplicado de luminares como William James e George Santayana, demonstra sua visão cosmopolita numa de suas mais belas páginas, em que diz: “Sento-me em companhia de Shakespeare, e ele não se retrai. Além da linha do preconceito, caminho de braços dados com Balzac e Dumas, onde homens sorridentes e mulheres acolhedoras deslizam entre dourados salões. Das cavernas da noite que oscilam entre a terra firme e o traçado das estrelas, chamo por Aristóteles e Marco Aurélio ou por qualquer outra alma que eu deseje e eles se aproximam graciosamente, sem escárnio ou condescendência. Assim, casado com a verdade, vivo por sobre o Véu”.
Du Bois foi um homem longevo – morreu aos 95 anos, em 1963 – e, diante da persistente discriminação institucional em seu país, mudou de posição ao longo do tempo, flertando com o comunismo e o nazismo. No entanto, como diz o filósofo ganês Kwame Appiah, nunca deixou de ser, à sua maneira, “um elitista e um dândi [...] profundamente comprometido com a literatura, poesia, arte e música”, propondo a formação uma elite intelectual negra capaz de conduzir o povo à emancipação não só física, mas espiritual. Ele diz, em seu magnum opus As almas da gente negra:
Durante algum tempo houve dúvidas se o negro poderia fornecer tais líderes [capazes de conduzir o povo], mas hoje ninguém contesta seriamente a capacidade individual dos negros de assimilarem a cultura e o bom senso da civilização moderna e de transmiti-la, pelo menos até certo ponto, aos seus concidadãos. Se isso for verdade, aí então está a saída para a atual situação econômica, na exigência imperativa de que se treinem líderes negros de caráter e inteligência – homens instruídos, homens esclarecidos e com capacidade de liderança, homens com instrução universitária, líderes da indústria e missionários da cultura; homens que compreendam e conheçam a fundo a civilização moderna e que possam encarregar-se de comunidades negras, elevando-as e instruindo-as pela força do preceito e do exemplo, da compreensão profunda e da inspiração de sangue e ideais comuns.
O que esses homens – Douglass, Washington e Du Bois – têm em comum? Primeiro, o fato de acreditarem piamente, como mostram as obras citadas acima, na liberdade individual, no espírito de associação e no verdadeiro mérito. Segundo, é que estão, curiosa e contraditoriamente, sendo republicados no Brasil atualmente, sob pesadíssima militância identitária e propagação da teoria mais antimérito da história da luta contra o racismo no mundo: o racismo estrutural. Frederick Douglass foi publicado em 1883, na Gazeta da Tarde, por José do Patrocínio, em plena efervescência da luta abolicionista. Booker T. Washington foi traduzido por Graciliano Ramos e publicado em 1940. Du Bois foi publicado em 1999, em tradução da professora universitária Heloísa Toller Gomes.
Tais obras – A jornada de um escravo fugitivo, de Douglass; Memórias de um negro americano, de Washington; e As almas do povo negro, de Du Bois – confrontam de maneira avassaladora as ideologias do ressentimento e mostram que somente a educação e o trabalho árduo podem vencer o racismo, e que qualquer atalho é um passo para a o fracasso. É bom – é ótimo, na verdade – que sejam mesmo comercializadas, lidas e, sobretudo, compreendidas em seu contexto e propósitos originais, ainda que por editoras e com prefácios de quem abomina a liberdade. Assim posso continuar crendo, não que toda realidade, permeada pelo racismo como um novo pecado original, nos condenou à saída revolucionária; mas, como disse Washington, que “todos os seres perseguidos acharão consolações infinitas na grande lei humana, universal e eterna, que faz que o mérito, escondido sob qualquer pele, seja enfim reconhecido e recompensado”.
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