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“Entretanto, voltou-se bruscamente e nossos olhares se cruzaram. Li no seu a surpresa, depois a atenção, finalmente a mentira. Não esta ou aquela mentira, mas a vontade da mentira. Era como uma água turva, uma lama.” (Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia)
Próximo ao período eleitoral de 2014, um curto, mas fundamental livro, de nome assaz sugestivo, foi publicado no Brasil: Da mentira, do filósofo romeno Gabriel Liiceanu. Empolgado com o lançamento – considero Liiceanu o maior filósofo vivo, herdeiro do platônico Constantin Noica e da tradição socrática –, ato contínuo escrevi uma pequena resenha em meu antigo blog, inclusive remetendo-me àquele momento eleitoral. Eis que, dias atrás, diante das atuais circunstâncias, o ensaio de Liiceanu voltou-me à mente.
No artigo da última semana falava eu da normalização do grotesco, de como situações absurdas passaram a ser normais não por uma adequação dos tempos a situações antes consideradas abomináveis, mas porque nós mesmos perdemos a capacidade de separar o anormal do normal, uma vez que somos um país cuja imaginação moral, nas últimas décadas, foi inundada de produções culturais de caráter altamente duvidoso, bem como a uma realidade política repleta de corrupção e escândalos morais, o que nos levou, invariavelmente, “a um desprezo total pela institucionalidade, pelo decoro, pela moral privada e pública, pelo ornamento legal, pelas virtudes; enfim, um desprezo pela ordem. Não há mais julgamentos realizados de acordo com a realidade”.
Militantes não são regidos pela verdade e pela coerência, mas pela ideologia de seu grupo político. A verdade é serva da conveniência e a mentira é um meio para atingir um fim
Referi-me, como exemplo do absoluto surrealismo de nossa situação, a dois casos recentíssimos, protagonizados pelo candidato à reeleição e pela ex-ministra de Direitos Humanos e senadora eleita Damares Alves, que usaram de notórias e inescusáveis mentiras para impulsionar a campanha eleitoral. E curioso foi ler, nos comentários, coisas como: “por que você queria ver os vídeos citados pela Damares para acreditar que aquelas atrocidades acontecem? Você realmente acha que o ser humano não é capaz disso? Por que está mais indignado com ela do que com quem comete tais atos?” Ou: “O Autor se mostra contrário a conjecturas, mas, no entanto, parte de premissas, embora possíveis, para novas conjecturas”.
Ou seja, diante de mentiras, os apoiadores do que está em curso relativizam, abrem mão do decoro, chamam engano de conjectura, e ordenam que eu também teça críticas à esquerda, como se eu já não fizesse isso na maioria de meus artigos; como se eu fosse obrigado a ser menos criterioso com quem diz mentiras fazendo uso do cristianismo e da Bíblia só porque um – vá lá – descondenado periga voltar à Presidência, como se isso fosse problema meu e não de seu candidato, que não só possibilitou como comemorou tal situação.
O fato é que militantes não são regidos pela verdade e pela coerência, mas pela ideologia de seu grupo político. A verdade é serva da conveniência e a mentira é um meio para atingir um fim. Os filtros morais são volatilizados e a primeira realidade é substituída pela segunda. É Eric Voegelin que nos explica:
“O homem continua homem em toda a realidade, mesmo quando perde a razão e o espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar-lhe a existência; ele não cessa de ser homem […]. Tal imagem do homem da realidade, portanto, embora falha, não perdeu a forma de realidade; ou seja, ele ainda é um homem, com todo o direito de fazer declarações de ordem, mesmo quando a força ordenadora de orientação para o ser divino se perdeu – mesmo assim – a menos que ele coloque uma pseudo-ordem no lugar da ordem real. Então, a realidade e a experiência da realidade são substituídas por uma falsa imagem da realidade. O homem, assim, não vive mais na realidade, mas em uma falsa imagem da realidade, que diz, no entanto, ser a realidade genuína. Há, então, se essa condição pneumopática ocorreu, duas realidades: a primeira realidade, onde o homem normalmente ordenado vive, e a segunda realidade, em que o homem pneumaticamente doente agora vive e que, portanto, entra em constante conflito com a primeira realidade.”
E é exatamente nessa falsa imagem da realidade, uma imagem mentirosa, que as ideologias trabalham e prosperam. A mentira, nesse caso, é utilizada como instrumento político, é normalizada e aceita como regra. Não importa mais o que seu candidato ou grupo ideológico dizem ou façam efetivamente; se isso foi feito para atingir o objetivo desejado pelo grupo, tudo é permitido. É nesse ponto que o livro de Gabriel Liiceanu pode nos ajudar.
Liiceanu fala exatamente da mentira como instrumento político. Primeiro, como um recurso utilizado para se atingir o “bem comum” – chamado por ele de “moral de segunda instância”; depois, como instrumento do mal puro. Para esse último caso, utiliza como exemplo o comunismo na Romênia. Diz Liiceanu no prólogo: “A mentira não pode ser de fato entendida senão como momento negativo da liberdade [...]. O fato de a língua, empregada do utilizador humano, poder dizer não apenas o que é, mas também o que ʻnão éʼ – ou seja, o fato de que uma palavra pode dizer não apenas a verdade, mas também mentir – explica por que a história do homem é, em sua essência, uma corrente de desastres”.
A mentira é utilizada como instrumento político, é normalizada e aceita como regra. Não importa mais o que seu candidato ou grupo ideológico dizem ou façam efetivamente; se isso foi feito para atingir o objetivo desejado pelo grupo, tudo é permitido
Após analisar três obras nas quais a mentira é tratada como forma de atingir o “bem comum” – a tragédia Filoctetes, de Sófocles; o diálogo Hípias Menor, de Platão; e, por fim, o moderno O Príncipe, de Nicolau Maquiavel –, Liiceanu faz uma crítica duríssima à situação da Romênia sob a égide do comunismo, não obstante suas críticas serem plenamente válidas a toda deformação ideológica, nas quais “a mentira já não é imprevisível na sua forma, mas fundamental e repetitiva, mentira dita às claras e sistematizada como ideologia. É a mentira constante, monótona e bem articulada”.
O filósofo não poupa as palavras, pois ele mesmo foi vítima de espionagem sistemática do regime totalitário de seu país. Grampeado de 4 de novembro de 1971 a 23 de dezembro de 1989, o que gerou gravações em fita e alguns milhares de páginas escritas a respeito de sua vida cotidiana – que ele descobriu após a abertura dos arquivos da Securitate (a polícia secreta do governo assassino de Ceauşescu), em 1999 –, Liiceanu sabe como ninguém o que é viver sob um regime onde a mentira é uma das armas principais, utilizada como instrumento do mal, a serviço do crime, do engano, da morte.
Militantes, tanto aqueles ocasionais quanto os mais fanáticos, passam a não só aceitar as mentiras, mas também a propagá-las como verdade
É curioso, pois nesse, digamos, contágio da mentira – para usar a expressão que dá título a um livro de meu amigo Martim Vasques da Cunha –, os militantes, tanto aqueles ocasionais quanto os mais fanáticos, passam a não só aceitar as mentiras, mas também a propagá-las como verdade. Todos sabemos, por exemplo, que Luiz Inácio Lula da Silva não foi inocentado, mas não só ele como toda a sua militância repete que sim. Todos sabemos que Jair Bolsonaro sabotou sistematicamente a vacinação no Brasil, mas agora mente e diz que não havia vacina disponível em 2020. E seus apoiadores mentem junto. Liiceanu explica o porquê:
“[...] aquele a quem se mente não é de fato enganado, porque, fingindo crer, a seu turno, ele mesmo mente. Uma vez que aquele a quem se mentiu mente, a mentira no comunismo [na verdade, em qualquer ideologia] é uma pseudomentira, é uma mentira falsa, não é uma “verdadeira mentira”. Às mentiras se tira sua força de engano porque já não enganam ninguém.”
Ou seja, mentir é a regra. Todas as campanhas mentem deslavadamente e são defendidas por seus militantes, não só porque precisam atingir seus objetivos eleitorais, mas porque se todo mundo mente, ninguém mente; a mentira é a regra.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos