Também morre quem atira. (O Rappa)
As cenas são tão absurdas que me forçaram a desistir do tema de meu artigo dessa semana para, infelizmente, ter de falar sobre elas. A recorrência é igualmente chocante – e seu uso político igualmente. Quanto vale a vida de uma pessoa? De um jovem? De um jovem negro? Quanto vale a vida de um cidadão num país em que os políticos, diante de uma doença que já matou mais de 180 mil pessoas em nove meses, parecem mais preocupados com sua própria imagem do que com a população? Quanto vale a vida de um cidadão para um policial que, no meio da rua, aponta a arma para o rosto de seu colega de trabalho? Quanto vale a vida de um favelado trabalhador num ambiente dominado por milícias e pelo tráfico de drogas?
Todas essas perguntas incômodas me vêm à cabeça a cada notícia trágica envolvendo assassinatos, principalmente de crianças e jovens – sobretudo aqueles perpetrados por pessoas que, teoricamente, deveriam nos proteger –, no Brasil. Nem bem nos recuperamos da estupefação causada pelo caso de João Alberto, morto de forma brutal, por espancamento, num Carrefour em Porto Alegre, na semana passada fomos surpreendidos pelo caso aterrorizante das primas Rebecca e Emilly, assassinadas por uma famigerada “bala perdida” (um eufemismo nojento) de fuzil, em Duque de Caxias, no Rio. Agora, o caso de Jordan e Edson, amigos encontrados mortos após uma revoltante abordagem policial em Belford Roxo (RJ). Fora isso, aqui em São Paulo, tivemos as cenas absolutamente surreais de um policial apontando a arma para o rosto de seu colega de trabalho, numa discussão – pasmem! – pelo atraso de cinco minutos na troca de turno do almoço.
Tudo isso escancara uma realidade incontestável: falhamos como sociedade. Não há qualquer particularização ideológica que atenue a responsabilidade de cada um de nós. Não há teoria social que dê conta de encontrar culpados fora da própria consciência individual. Não há indicador econômico que nos livre da pobreza espiritual. Somos vítimas, mas também algozes quando facilmente encontramos, em nosso entorno, situações em que nossas ações, cujo pequeno mas valioso alcance pode transformar vidas e circunstâncias, mas não agimos. Somos culpados quando fazemos da internet nosso campo de batalha numa guerra que está ocorrendo nas ruas, a olhos vistos – ou mesmo em nossas casas. Somos culpados como pais, como filhos, como patrões, empregados, representantes políticos e cidadãos.
Falhamos como sociedade. Não há qualquer particularização ideológica que atenue a responsabilidade de cada um de nós
Mas somos culpados, sobretudo, enquanto intelectuais, quando nos tornamos, como diz Thomas Sowell, “inconsequentes às exigências do mundo externo”. Quando, no ambiente seguro das cátedras universitárias, os intelectuais vivem não “apenas isolados das consequências materiais, mas têm, com frequência, gozado de imunidade contra, até mesmo, a perda de reputação, mesmo quando se comprova que estavam completamente errados” (Os intelectuais e a sociedade). Os intelectuais, entendidos como “categoria ocupacional composta por pessoas cujas ocupações profissionais operam, fundamentalmente, em função de ideias”, tinham, antigamente, um papel complementar na sociedade; eram influentes, mas tal influência era bastante restrita, pois não eram numerosos, tampouco populares. Geralmente viviam em função de suas especialidades e nelas eram julgados por seus pares. Mas o papel de intelectual público é relativamente novo; surge, de acordo com Julien Benda em A traição dos intelectuais, no fim do século 19, quando estes “passam a fazer o jogo das paixões políticas; os que formavam um obstáculo ao realismo dos povos tornam-se seus estimuladores”. E Benda vai além:
Ninguém contestará que hoje, por toda a Europa, a imensa maioria dos homens de letras, dos artistas, um número considerável de cientistas, de filósofos, de “ministros do divino” integram-se ao coro dos ódios de raças, de facções políticas; ainda menos se negará que eles adotam as paixões nacionais [...]. O intelectual moderno deixou completamente de permitir que o leigo desça sozinho à praça pública; ele entende possuir uma alma de cidadão e quer exercê-la com vigor; orgulha-se dessa alma; sua literatura está cheia de desprezo por quem se encerra na arte ou na ciência e se desinteressa pelas paixões da cidade; entre Michelangelo criticando Da Vinci por sua indiferença aos infortúnios de Florença e o mestre da Ceia respondendo que de fato o estudo da beleza absorve todo o seu coração, ele se alinha claramente com o primeiro. Está longe o tempo em que Platão pedia que prendessem o filósofo com correntes para forçá-lo a preocupar-se com o Estado. Ter por função a busca das coisas eternas e acreditar em um engrandecimento ao se ocupar da cidade, tal é o caso do intelectual moderno. Que essa adesão do intelectual às paixões dos leigos fortalece essas paixões no coração destes últimos, é algo tão natural quanto evidente. Primeiro, ela suprime nos leigos o sugestivo espetáculo de que falamos mais acima, de uma raça de homens que coloca seu interesse acima do mundo prático; depois, e principalmente, o intelectual que adota as paixões políticas oferece aos leigos a formidável contribuição de sua sensibilidade, se é um artista, de sua força persuasiva, se é um pensador, de seu prestígio moral, em ambos os casos.
Entretanto, apesar das advertências milenares em relação a isso, temos sido testemunhas de um tempo em que os intelectuais simplesmente se tornaram os grandes timoneiros da sociedade. E, diante da realidade social absolutamente desconcertante que vivemos, eles têm, com todos os direitos que lhes são outorgados – e a inconsequência que lhes é comum –, fornecido suas interpretações e teorias ao debate público. Mas não só isso: “a fé dos intelectuais na ‘razão’ tem assumido, por vezes”, como diz Sowell – eu diria cada vez mais –, “a forma de uma crença na capacidade de decidir todos os assuntos usando recursos ad hoc, à medida que os problemas surgem”. Isso nos tem levado a situações absurdas como a absolvição de um réu negro, acusado e processado por incitação ao ódio racial, porque o juiz diz não crer em “racismo reverso”, um conceito absolutamente discutível. Ou, mais recentemente, em relação ao assassinato de João Alberto, a delegada responsável pelo caso alegar como motivação o racismo estrutural, mesmo tendo negado tais indícios anteriormente.
Como tenho dito, racismo estrutural é uma teoria, uma hipótese – como diz Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia, “um enunciado (ou conjunto de enunciados) que só pode ser comprovado, examinado e verificado indiretamente, através das suas consequências” – que, ainda que genuína, deve ser confrontada com o contraditório, ainda mais por estar se tornando verdade apodítica na boca de jornalistas, artistas, YouTubers e influencers, e começando a se espalhar pelo senso comum. As consequências de assumirmos, irrefletidamente, tal hipótese ainda nos são desconhecidas; mas vale lembrar que a solução proposta – de modo um tanto escuso – passa por uma transformação (revolução?) das estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas (o capitalismo, para ser mais exato) da sociedade, sem uma proposta objetiva de solução. O que se colocará no lugar, em substituição a tais estruturas acusadas de serem intrinsecamente racistas, só Deus sabe.
Outro termo muito repetido por intelectuais, e que ganhou destaque nas discussões sobre violência, é genocídio (do povo ou do jovem negro). Sim, é escandaloso o número de assassinatos em nosso país, mas casos como os citados no início desse artigo, por conta de sua repercussão e das narrativas que se apressam em interpretá-los, nos levam, muitas vezes, a conclusões errôneas. Por exemplo, no primeiro semestre de 2020 tivemos inadmissíveis 25.712 assassinatos, com um aumento de 7% em relação a 2019. O horror! No entanto, a letalidade policial está muito longe de atingir essa marca, pois o número de pessoas assassinadas por policiais no primeiro semestre desse ano é de 3.148. Quem cometeu os outros 22.564 assassinatos? Talvez nunca saberemos, pois somente 30% dos casos (em números bastante otimistas) são solucionados. Tudo isso é inaceitável, mas os intelectuais e os movimentos sociais organizados, com suas agendas políticas próprias, não têm o direito de turvar a compreensão da sociedade.
Penso que a situação é muito mais profunda que a cor dos que são assassinados, pois, apesar de sermos levados a crer que, sim, a cor é um elemento a ser considerado por aquele que, investido de poder, escolhe quem é mais ou menos digno de viver, a banalização da violência, da barbárie e do grotesco que vivemos atualmente não tem origens raciais – ou apenas raciais, se levarmos em conta o horrível desfecho da abolição, os movimentos eugenistas do início do século 20 e a marginalização e subalternização do negro brasileiro.
Um engenheiro pode ser responsabilizado, inclusive criminalmente, se causar prejuízos a alguém. E quem se responsabiliza pelas consequências das ideias de um sociólogo?
Por outro lado, será que não podemos também pensar que toda essa situação de “desagregação normativa”, como disse o filósofo Russell Kirk, não tem raízes também em ideias de intelectuais que julgavam o mundo muito “conservador” e “burguês”? Quem pode nos assegurar que a desvalorização da família nuclear, incentivada pelos intelectuais marxistas e da revolução sexual, não tem relação direta com os 11,5 milhões de mães que criam os filhos sozinhas, e da proliferação de filhos fora de um casamento estável – que, posteriormente, vão gerar os 70% de jovens que, infelizmente, entram para a vida do crime? Mas os institutos de pesquisa, por influência dos intelectuais, passaram a racializar as estatísticas de forma inconsequente, a fim de forçar uma narrativa de genocídio e exclusão – racial e não social. Mas quem pode nos afirmar, com certeza, ao que nos levará essa absolutização do racismo como nosso pecado original secular?
Não que a situação alarmante que vivemos não demande uma análise sobre suas causas profundas. Óbvio que sim, e essa deveria ser a atividade dos intelectuais e dos especialistas técnicos. Entretanto, é preciso assumir que nosso papel de intérpretes da realidade e juízes da história deve ser mediado pela consciência de nossas limitações, ainda mais sabendo que, com bem diz Sowell, “o trabalho de um intelectual começa e termina com ideias, sem levar em conta a influência que essas ideias possam ou não exercer sobre a vida concreta – nas mãos de terceiros”. E mais: a história nos mostra que “as restrições que se aplicam às pessoas na maioria dos outros campos profissionais não se aplicam nem de forma aproximada aos intelectuais”. Ou seja, um engenheiro deve submeter o seu projeto a testes laboratoriais, caso contrário pode ser responsabilizado, inclusive criminalmente, se causar prejuízos a alguém. E quem se responsabiliza pelas consequências das ideias de um sociólogo? Assumir a máxima de Karl Marx, de que devemos passar da análise para a transformação do mundo, é legitimar a tentação de fazer da sociedade cobaia para experimentos sociais pelos quais os intelectuais não têm sido responsabilizados.
Voltando ao início deste artigo, tais assassinatos não devem ser normalizados. E devemos, após chorar a morte de cada inocente, cobrar responsabilidade da Justiça e daqueles que são eleitos para propor soluções – inclusive para mudar supostos vícios de nossos sistemas. No entanto, políticos não devem ser para-raios de ideologias nem reprodutores de narrativas. Se, numa democracia, grupos ideológicos devem ter representação política, suas propostas devem ser confrontadas com a realidade dos fatos, e nossa indignação não pode passar ao largo de nossas próprias responsabilidades, não só para que não sejamos vítimas, mas para que também não vitimemos injustamente o outro.
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