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“Só aos 30 anos conheci O Vento Nos Salgueiros e os livros da família Bastable, e acho que nem por isso os aprecei menos. Inclino-me quase a afirmar, como regra, que uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim. As boas permanecem. Uma valsa da qual você só gosta enquanto está dançando não é uma boa valsa.” (C.S. Lewis, em Três maneiras de escrever para crianças)
O caríssimo leitor deve saber, pois eu já o disse à exaustão aqui, neste espaço, que não fui um leitor quando criança; só na adolescência Dom Casmurro abriu-me as portas da literatura. Por isso, nada posso dizer, com certeza prática – embora creia piamente nele –, sobre o efeito transformador da literatura, sobretudo dos contos de fadas, durante a infância. Não posso, como Chesterton em Ortodoxia, dizer que “minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com certeza absoluta, eu a aprendi na creche”, ou mesmo que “aquilo em que eu mais acreditava naquela época, aquilo em que mais acredito atualmente, são coisas que chamamos de contos de fadas”. Entretanto, após o contato, ainda que tardio, com eles (via C.S. Lewis) e de estudá-los, posso dizer, com certeza, que a fantasia é uma das maiores invenções do espírito humano.
Por isso é imperioso concordar com J.R.R. Tolkien, em seu excelente Sobre histórias de fadas, que “a Fantasia é uma atividade humana natural. Certamente ela não destrói a Razão, muito menos insulta; e não abranda o apetite pela verdade científica nem obscurece a percepção dela. Ao contrário. Quanto mais arguta e clara a razão, melhor fantasia produzirá”. E eu mesmo inverteria para complementar, dizendo que quanto mais arguta e clara a imaginação, melhor raciocínio produzirá, não tirando as coisas de minha cabeça, mas concordando com Aristóteles, em De Anima, ao dizer que “a imaginação é algo diverso tanto da percepção sensível como do raciocínio; mas a imaginação não ocorre sem percepção sensível e tampouco sem a imaginação ocorrem suposições”. De modo que não é estranho ler autores de tamanha magnitude exaltarem o poder da imaginação e sua importância na criação de obras que, desde a tradição oral atemporal até a literatura contemporânea, têm preenchido a vida de gerações.
A fantasia é uma das maiores invenções do espírito humano
Nesse sentido, a descoberta de tal tradição levou-me ao desejo de compreender melhor as influências diretas a que foram submetidos os autores de minha predileção – sobretudo Lewis, cuja admiração me fez torná-lo tema de minha pesquisa/dissertação de mestrado. E minha curiosidade aumentou ainda mais ao ler, em Surpreendido pela Alegria, autobiografia de Lewis, um nome e uma afirmação que me causaram um sobressalto: “George MacDonald fizera mais por mim que qualquer outro escritor”. Para um intelectual fabuloso como Lewis dizer uma coisa dessas, o tal MacDonald deveria realmente ter algo de especial. Então lembrei que, páginas atrás, ele tinha dito que comprara, despretensiosamente, numa estação de trem de Letherhead, um volume de capa poeirenta: Phantastes, a faerie Romance. Lewis, um leitor experimentado de fantasia, pensou tratar-se de uma obra como tantas outras que lera na infância. No entanto, tinha algo diferente ali. Ele diz:
“As jornadas pelas matas, os inimigos fantasmagóricos, as damas boas e más da narrativa lembravam bastante as minhas fantasias costumeiras, e assim me puderam seduzir sem que eu percebesse uma mudança. É como se eu fora carregado inconsciente para além da fronteira, ou como se tivesse morrido no velho país e não pudesse me lembrar de como ressuscitei no novo. Pois, em certo sentido, o novo país era exatamente igual ao velho. Ali eu encontrava tudo o que já me fascinara em Malory, Spenser, Morris e Yeats. Mas noutro sentido, tudo mudara. Eu não sabia ainda (e demorava a aprender as coisas) o nome da nova qualidade – a sombra brilhante – que pairava nas viagens de Anodos. Hoje sei. Era a Santidade.”
Lewis diz que iniciou a leitura de Phantastes – que, felizmente, a editora Thomas Nelson Brasil publicou numa edição que faz jus à obra – na mesma noite em que o comprou. E a mudança provocada nele pela jornada de Anodos, o jovem protagonista, foi tão profunda que termina o relato de sua experiência dizendo: “Naquela noite minha imaginação foi, num certo sentido, batizada; o restante de mim, não sem razão, demorou mais tempo. Eu não tinha a menor noção daquilo em que me envolvera ao comprar Phantastes”.
Mas, afinal de contas, quem é esse autor tão importante não só para Lewis, mas para um sem-número de escritores – de Chesterton a J.K. Rowling, passando por Lewis Carroll (seu amigo), Edith Nesbit, Tolkien e Madeleine L’Engle – que sempre se referem a ele como seu mestre?
George MacDonald nasceu em 10 de dezembro de 1824, em Huntly, na Escócia, numa família religiosa (calvinista) e bastante letrada para a época. Em 1845, graduou-se na Universidade de Aberdeen, com mestrado em Física e Química; no entanto, conforme relata seu filho, Greville MacDonald, não seguiu carreira médica por falta de dinheiro. Em 1848 entrou no Highbury College para estudar Teologia. Em 1850 foi nomeado ministro da Igreja Congregacional da Trindade, em Arundel, Inglaterra. Mas sua carreira como clérigo foi cheia de percalços, uma vez que não era muito ortodoxo em sua teologia – não suportando, por exemplo, a doutrina calvinista da predestinação.
No entanto, foi como escritor de fantasia que George MacDonald verdadeiramente se notabilizou. Escreveu uma grande quantidade de contos de fadas e alguns romances de fantasia que, ainda hoje, são admirados e estudados mundo afora. Histórias como A Chave Dourada (em que o curioso garoto Musgoso e sua companheira Trama penetram no País das Fadas a fim de encontrar “o lugar de onde vêm as sombras” e, consequentemente, a fechadura a que pertence a Chave) e A Princesa Flutuante (com sua princesinha que, enfeitiçada pela própria tia, a invejosa bruxa Makemnoit, passa a flutuar por não operar sobre ela a lei da gravidade – metáfora maravilhosa para um tipo de disposição de caráter bastante displicente) são de uma sensibilidade maravilhosa e emocionante.
“George MacDonald, na verdade, acreditava que as pessoas eram princesas, e goblins, e fadas, e vestia-os como homens ou mulheres comuns. O conto de fadas estava dentro da história comum, não fora.”
G.K. Chesterton, sobre George MacDonald
A Princesa e o Goblin, uma das histórias mais conhecidas de MacDonald, impressionou sobremaneira ninguém menos que G.K. Chesterton, que, na introdução à biografia (George MacDonald and his Wife) escrita por seu filho Greville, diz: “em certo sentido especial, posso realmente testemunhar que um livro fez diferença em toda a minha existência, que me ajudou desde o princípio a ver as coisas de certa maneira; uma visão das coisas que até mesmo uma verdadeira revolução, como uma conversão religiosa, substancialmente apenas coroou e confirmou. De todas as histórias que li, incluindo os demais romances do mesmo autor, esta continua sendo a mais real, a mais realista no exato sentido do termo – a mais parecida com a vida. Ela se chama A princesa e o Goblin, e seu autor é George MacDonald, o homem de que trata este livro”.
Chesterton ainda diz, confirmando sua filosofia dos contos de fadas: “Desde que li pela primeira vez aquela história, cinco filosofias alternativas do universo chegaram às nossas faculdades, vindas da Alemanha, soprando o mundo como o vento leste. Mas, para mim, aquele castelo ainda permanece nas montanhas e a luz em sua torre não se extingue”; e acrescenta, de forma genial e empolgante:
“Todas as demais histórias de George MacDonald, interessantes e sugestivas de diversas maneiras, parecem ser ilustrações e até disfarces daquele único disfarce. Digo disfarce pois esta é a mais importante diferença entre o seu tipo de mistério e a mera alegoria. A alegoria comum toma o que considera lugares-comuns ou convenções necessárias para homens e mulheres comuns e tenta torná-los agradáveis ou pitorescos, vestindo-os como princesas, ou goblins, ou fadas. Mas George MacDonald, na verdade, acreditava que as pessoas eram princesas, e goblins, e fadas, e vestia-os como homens ou mulheres comuns. O conto de fadas estava dentro da história comum, não fora.”
No entanto, faz uma advertência, repetida por Lewis (da qual falarei adiante): “Os romances, como romances, são irregulares; mas como contos de fadas são extraordinariamente coerentes”. Tal observação é importantíssima a todos aqueles que querem se aventurar pela leitura de MacDonald, pois quem lê Chesterton, Tolkien ou C.S. Lewis fazendo tamanhos elogios a seu mentor, pode chegar à sua obra com as expectativas, digamos, descalibradas. George MacDonald não é um escritor virtuoso no estilo; a leitura, por vezes, é truncada, pouco fluida.
Lewis escreveu uma bela e informativa introdução à obra de MacDonald para uma Antologia de citações que publicou, ele mesmo, de seu mestre. Nela, explica que: “Se definirmos a literatura como uma arte cujo meio são as palavras, então, certamente, MacDonald não tem lugar na primeira fila, quiçá nem mesmo na segunda. De fato, há passagens em que a sabedoria e (ousarei chamar de) a santidade em seu interior triunfam sobre, e até mesmo pulverizam, os elementos mais básicos em seu estilo: a expressão torna-se precisa, convincente, econômica, adquirindo um aspecto cortante. Porém ele não mantém esse nível por muito tempo. A textura de sua escrita é indistinta como um todo e, por vezes, hesitante. Tradições ruins de pregação também estão presentes; há, algumas vezes, uma verbosidade não conformista, em outras, uma velha fraqueza escocesa por floreios [...], ainda em outras, uma excessiva doçura extraída de Novalis”. No entanto, reforça que “o que ele faz de melhor é a fantasia – fantasia que flutua entre a alegoria e o mitopeico. E isso, em minha opinião, George realiza melhor que qualquer outro. O problema crítico com o qual somos confrontados é se esta arte – a arte de criar mitos – constitui uma espécie de arte literária. A objeção de assim classificá-la é que o mito não existe essencialmente em palavras, afinal”.
MacDonald é, sobretudo, como pudemos notar pelas descrições de seus discípulos, um escritor espiritual no sentido mais profundo do termo, quase um místico; suas fantasias nos mergulham num universo de Beleza – há paisagens absolutamente maravilhosas em Phantastes – e Bondade que nos comovem, mediante uma atmosfera reverente de amor, superação e, sobretudo, de dever. Como diz Lewis, em MacDonald “é incessante a necessidade da obediência, de algo ʻque precisa ser feito, nem mais nem menosʼ”. Anodos, protagonista de Phantastes, após livrar-se de sua própria Sombra, que há muito o perseguia, diz: “[...] aprendi que é melhor, mil vezes mais, para um homem orgulhoso cair e ser humilhado do que manter a cabeça em seu orgulho e ilusória inocência. Aprendi também que aquele que deseja ser um herói acabará sendo apenas um homem. Porém se o que deseja ser é nada mais que um agente de seu trabalho, está seguro de sua humanidade”.
MacDonald é, sobretudo, quase um místico; suas fantasias nos mergulham num universo de Beleza e Bondade que nos comovem, mediante uma atmosfera reverente de amor, superação e, sobretudo, de dever
Desse modo, personagens como Anodos, que o nobre leitor poderá confirmar caso decida se aventurar pelo País das Fadas de Phantastes, é um arquétipo de todos nós, que somos convidados a enfrentar uma vida de desafios, aventuras, tristezas e alegrias, sem um roteiro estabelecido – o que lembra a arquiconhecida máxima de Ortega y Gasset –, em que, não raras vezes, caso mantenhamos a esperança (ainda que vacilante), a Providência – “a voz mais doce que ouvi em toda minha vida” – vem ao nosso encontro trazendo o lenitivo e o encorajamento necessários, como a Dama da Cabana que alimentou, instruiu e consolou Anodos em sua jornada, o fazendo constatar adiante que:
“O próprio fato de que qualquer coisa morre implica a existência de algo que não pode morrer, que deve tomar outra forma, como a semente que morre ao ser plantada, ressurgindo de novo, ou, em uma existência consciente, pode continuar rumo a uma vida puramente espiritual.”
Eis a contemplação do Bem a que nos convida George MacDonald, o Pai da Fantasia, que morreu em 18 de setembro de 1905, em Ashtead, na Inglaterra, deixando-nos não só um conjunto de obras clássicas fundamentais da literatura imaginativa, bem como sua influência fundamental para muitos escritores que vieram após ele. A foto que ilustra este breve artigo foi tirada por Lewis Carroll, cuja obra máxima, Alice no País das Maravilhas, não teria sido publicada sem o grande incentivo de MacDonald.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos