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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

George Washington Carver: fé e vocação científica

George Washington Carver (ao centro, na fileira da frente) com colegas do Tuskegee Institute.
George Washington Carver (ao centro, na fileira da frente) com colegas do Tuskegee Institute. (Foto: Frances Benjamin Johnston/United States Library of Congress)

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A Bíblia sagrada e os fenômenos da natureza procedem da Palavra divina, a primeira como o ditado do Espírito Santo e a segunda como a atenta executora dos mandamentos de Deus. (Galileu Galilei, em carta a Cristina de Lorena, grã-duquesa da Toscana)

Tenho insistido em dizer que é nociva a ideia de que um negro bem-sucedido é exceção. A trajetória de homens notáveis nos serve de inspiração, e o sucesso de nossa própria caminhada depende, em grande medida, da confiança que depositamos em nossa vocação, que pode ser iluminada pelos exemplos virtuosos. Uma vez que, parafraseando W.E.B. Du Bois – e ele tem razão –, a salvação dos povos virá por meio de seus homens excepcionais, ou seja, pelas exceções, as boas referências são sempre pedagógicas. Negligenciar isso é menosprezar o futuro das próximas gerações, é apostar no coletivismo utópico que paralisa. E no panteão de negros ilustres que passaram por essa terra, o botânico e cientista agricultor George Washington Carver é desses que, para além dos conhecidos nomes ligados aos direitos civis – e anterior a eles –, é, atualmente, considerado um herói americano.

George Washington Carver nasceu escravo, em 1864 (o dia e o mês são desconhecidos), numa fazenda em Diamond, no Missouri, que pertencia a Moses e Susan Carver, descendentes de alemães que tinham fortes sentimentos abolicionistas – apesar de precisarem de ajuda numa terra onde o trabalho livre era escasso e caro. George era filho de Mary, uma jovem escrava adquirida por Moses Carver em 1855; seu pai, cujo nome, ao que tudo indica, ele nunca soube, vivia numa fazenda vizinha, mas foi morto por acidente antes de o pequeno George nascer. Quando George tinha apenas alguns dias de vida, ele e sua mãe foram sequestrados por bandidos que aterrorizavam as fazendas do Missouri nos tempos da Guerra de Secessão; o irmão de George conseguiu se esconder a tempo. Moses contratou um vizinho para tentar recuperar a mãe e o filho, mas só conseguiu o pequeno George, pois sua mãe já tinha sido vendida. Trazer de volta o pequeno George – que nunca mais veria sua mãe – custou ao afável Moses um de seus mais valiosos cavalos.

As boas referências são sempre pedagógicas. Negligenciar isso é menosprezar o futuro das próximas gerações, é apostar no coletivismo utópico que paralisa

O desejo por estudar tomou a alma de George ainda pequeno. Como era um garoto fraco e sempre doente, era poupado do trabalho pesado do campo e ficava em casa, ajudando a sra. Carver nas tarefas domésticas. De acordo com Gary R. Kremer, um de seus mais importantes biógrafos, em George Washington Carver in his own words, “enquanto seu irmão Jim ajudava Moses Carver a cuidar da fazenda, George aprendeu a cozinhar, remendar e lavar roupas, bordar e executar inúmeras tarefas semelhantes. Aparentemente, George ainda era muito jovem quando desenvolveu um fascínio pelas plantas, talvez como resultado de ajudar Susan Carver a cuidar do jardim”. Porém, tal curiosidade, que o levou a dar passeios cada vez mais longos pela fazenda em busca de novas flores, folhas e pedras, não pôde ser totalmente satisfeita ali. Por isso, quando tinha por volta de 11 anos, deixou a fazenda dos Carver e viajou, nos conta Kremer, “13 quilômetros até Neosho, onde uma escola para negros era conduzida por um professor chamado Stephen Frost. Carver chegou a Neosho tarde da noite para procurar alojamento com uma família amigável, então encontrou um lugar confortável num celeiro e se acomodou para passar a noite. A escolha de um local para dormir foi fortuita: primeiro, o celeiro ficava praticamente ao lado da escola; segundo, pertencia a Andrew e Mariah Watkins, um casal negro sem filhos que recebeu o jovem órfão e o tratou como se fosse seu”.

Mas Carver era inquieto; logo percebeu que o professor Foster sabia pouco mais do que ele próprio, e decidiu, mais uma vez, viajar em busca de conhecimento. Passou por vários condados e encontrou gente bastante interessada nesse jovem negro retinto inteligente, de boas maneiras e com inegáveis dotes artísticos – Carver tocava acordeão, participava de encontros literários e se tornaria um excelente pintor de plantas e flores. No fim dos anos 1880, chegou a Winterset, Iowa, e conheceu um casal de brancos que muito o influenciou: o médico John Milholland e sua esposa Helen. A sra. Milholland ficou muito interessada por Carver ao vê-lo cantar, com sua voz fina e afinada, no coral da igreja, e pediu ao marido que o convidasse para almoçar em sua casa. E foram eles que insistiram para que Carver voltasse à escola e completasse sua educação formal. Ele relutou, pois já havia sido rejeitado por sua cor no Highland College. Mas eles insistiram e ele entrou na Simpson College, uma faculdade metodista em Indianola (Iowa) para estudar piano e Artes. Mas sua professora de arte, ao ver sua habilidade para pintar flores e plantas, o incentivou a estudar Botânica na Universidade Estadual de Iowa, onde seu pai era professor de Agricultura. Ele relutou muito, mas aceitou o desafio. O encorajamento que recebeu da professora de arte Etta Budd seria sempre lembrado com carinho.

A partir de então, a carreira de Carver na botânica foi absolutamente proeminente. Como diz Kremer, “seu profundo interesse nutrido pelas plantas o ajudara a desenvolver a capacidade de criar, adubar e enxertá-las com um sucesso extraordinário. Seus professores estavam convencidos de que ele tinha um futuro promissor como botânico e o convenceram a permanecer como estudante de pós-graduação depois de terminar o último ano”. E ele o fez, obtendo o título em 1896. Seu trabalho na estação de experimentos em patologia de plantas e micologia ganhou o reconhecimento e o respeito nacionais como botânico. Aliás, vale a pena lembrar que, no ano de 1924, após dizer, numa palestra, que não tinha método de trabalho e que não possuía livros em seu laboratório – para dizer que seu trabalho era inspirado por Deus –, o jornal The New York Times tentou depreciá-lo com uma matéria cujo título era: “Os homens de ciência nunca falam assim”. Carver respondeu com uma carta, lançando-lhes no rosto suas credenciais acadêmicas:

Sou formado pela Faculdade Estadual de Agricultura e Artes Mecânicas de Iowa, localizada em Ames, Iowa, com dois diplomas em Agricultura Científica. Fiz um trabalho considerável no Simpson College, Indianola, nas linhas de Arte, Literatura e Música. Em Química, as seguintes pessoas foram inspiração e guia para meus estudos: Justin Von Liebig, Dr. Leroy J. Blinn, Dr. Ira Ramsen, Drs. L. L. De Moninck, E. Dietz, Robert Mallet, William G. Valentin, J. Meritt Matthews, Edwin. E. Slosson, M. Luckiesh, Harrison B. Howe, Charles Whiting Baker, Helen Abbott, Michael, Mad. Currie, Geo. J. Brush, Charles F. Chandler, G. Dragendorff, Frederick Hoffman, Josef Berson, Arthur C. Wright, M. W. O'Brine, Lucien Geschwind, Stillman, Wiley, Dana, Richards & Woodman, Harry Snyder, Coleman and Addyman, Meade, Ostwald, Warrington, Winslow e muitos outros, todos constam em minha biblioteca pessoal, com poucas exceções. Em Botânica, Loudon, Wood, Coulter, Stevens, Knight, Baily, De Candole, Pammel, Bessey, Chapman, Gray, Goodale, Youmans, Myers, Britton e Brown, Small e outros. Esses livros também estão em minha biblioteca. Dietistas, Henry, Richards, Sra. Potter Palmer, Miles, Asa, Fletcher Berry, Kellogg, Nilson e outros […]. Entendo perfeitamente que existem cientistas para quem o mundo é apenas o resultado de forças químicas ou elétrons materiais. Eu não pertenço a esta classe.

A fé de Carver sempre foi uma inspiração para seu trabalho. Ele acreditava piamente ter sido chamado por Deus para cumprir um propósito. Apesar de ser difícil rastrear a origem de sua devoção, pois ele nunca recebeu uma formação religiosa consistente – diz, em carta a Isabelle Coleman, que Deus entrou em seu coração “uma tarde, enquanto eu estava sozinho no loft do nosso grande celeiro, enquanto eu descascava milho para levar ao moinho para ser moído na refeição” –, ele nutriu em si uma espécie de mística que lhe fazia ter, como diz Kremer, “um senso quase panteísta de identificar Deus com a natureza e se comunicar com Ele através das forças de Sua criação. Esse misticismo é uma das características mais importantes de Carver e deve ser entendido por qualquer pessoa que tente explicar como e por que ele fez o que fez. Ele nunca separou os mundos da ciência e da religião; ele os via como ferramentas mutuamente aceitáveis e compatíveis para chegar à verdade”.

Carver também tinha visões. Numa delas, “Ele ficou convencido de que Deus pretendia que ele fosse um professor de negros. Ele abandonou o desejo de pintar e mudou seu curso para o campo mais pragmático da agricultura, embora nunca tenha perdido o amor pela arte. Foi uma decisão prática: os negros do sul não conseguiram sair da pobreza”. E no último ano de sua formação na Universidade de Iowa, o grande Booker T. Washington – sobre quem já escrevi nesta Gazeta do Povo – o convidou para lecionar no famoso Tuskegee Institute. Seu desejo, pensava ele, estava realizado. Mas as coisas não saíram como ele planejara.

Os estudantes e professores do Tuskegee não o receberam bem; ele era visto como um homem pedante, que travava com desdém os demais e recebeu regalias que outros não tinham. Diz Kremer: “Ele esperava chegar lá com as boas-vindas de um herói. Em vez disso, ele descobriu que muitas pessoas se ressentiam dele. Ele era de pele muito escura, por exemplo, muito mais preto que a maioria, se não todos os outros professores e funcionários de Tuskegee. Essa simples realidade biológica o tornou imediatamente suspeito de pertencer ao que E. Franklin Frazier mais tarde chamaria de ‘burguesia negra’”. Muito provavelmente, tal rejeição fez Carver voltar-se cada vez mais para os brancos, que, de fato, o admiravam; e isso o fez ser ainda mais rechaçado, tendo sido chamado por alguns de traidor e Uncle Tom. Mas isso não foi uma impressão geral; muitos professores e alunos o admiravam. Inclusive, em 1906 criou na universidade, a pedido de alguns alunos, uma sala de estudos bíblicos semanais.

A fé de Carver sempre foi uma inspiração para seu trabalho. Ele acreditava piamente ter sido chamado por Deus para cumprir um propósito

Suas atribuições também iam muito além de seu trabalho como pesquisador e professor; Booker T. Washington exigiu demais dele. Kremer afirma: “Carver esperava que, como diretor da recém-criada Estação Experimental Agrícola, passasse a maior parte do tempo pesquisando. Washington queria que ele fizesse pesquisas, mas também que gerisse as duas fazendas da escola, ministrasse uma carga completa de aulas e atuasse em vários comitês e no conselho executivo do instituto. Washington até esperava que ele supervisionasse o bom funcionamento dos sanitários da escola e de outras instalações sanitárias. E tudo isso deveria ser feito quando ele não estivesse ocupado com as tarefas administrativas quase em período integral que chefiavam o novo Departamento Agrícola”. Isso fez de Carver, uma personalidade que tendia à abstração, um homem prático ineficiente: “O pragmático, orientado para os objetivos e sem bobagens Washington rapidamente ficou impaciente com o desorganizado, administrativamente desatento e idealista Carver”. E completa: “Não é de surpreender que tenha surgido uma grande quantidade de atritos entre Carver e Washington; os principais eram as queixas frequentes de que um relatório estava atrasado, que Carver não estava gastando tempo suficiente em suas tarefas administrativas ou que estava gerenciando mal as pessoas que trabalhavam sob sua responsabilidade. A resposta de Carver, invariavelmente, era que se esperava muito dele e que suas instalações e recursos eram totalmente inadequados”.

No entanto, Carver permaneceu em Tuskegee por 47 anos, ensinando e fazendo experimentos num grande Centro de Pesquisas criado por ele. Carver desenvolveu formas de plantio alternativas ao algodão – tais como batata doce e amendoim –, inclusive contribuindo com o sustento dos agricultores. O alimento que tornou Carver famoso foi o amendoim, do qual retirou uma série de produtos, como o óleo, que dizia ser eficiente no tratamento da poliomelite:

Carver procurou disseminar informações sobre suas descobertas com o amendoim e uma série de outros produtos de suas colheitas para os residentes do Condado de Macon no início de sua carreira em Tuskegee. Esses esforços culminaram em maio de 1906, quando ele enviou para o interior o “Jesup Wagon” [veículo criado em Tuskegee para transporte de alimentos e fertilizantes], carregado com produtos que saíam de seu laboratório. Durante a década seguinte, sua reputação como químico e agricultor cresceu e o possibilitou ser eleito para uma Irmandade na Sociedade Real Inglesa para o Incentivo às Artes, em 1916. Mas o evento mais importante que colocou Carver na vanguarda da consciência americana foi sua aparição, em 1921, perante o Comitê de Formas e Meios, da Câmara, como testemunha perita de um projeto de lei pendente que propunha colocar uma tarifa no preço do amendoim. Carver começou sua apresentação perante o comitê demonstrando a variedade de alimentos que poderiam ser feitos a partir da humilde leguminosa. Inicialmente, ele usou um prazo de dez minutos; mas ele cativou a plateia de tal maneira que o prazo foi repetidamente prolongado, até que o presidente do comitê anunciou que Carver poderia levar o tempo necessário. Carver falou por quase uma hora e, no fim desse período, como escreveu Linda McMurry, “ganhou uma tarifa para a indústria do amendoim e uma fama nacional para si”.

Ele ficou tão famoso que até Thomas Edison chegou a procurá-lo com interesse de contratá-lo. Outra grande e notável amizade que Carver nutriu até o fim de sua vida foi com Henry Ford, o empreendedor automobilístico. Eles se conheceram em 1937, em uma conferência sobre Quimurgia, interesse no qual os dois eram pioneiros. Em 1941, Carver tinha 77 anos e sua saúde estava muito debilitada. Recebeu a visita de Ford quando estava internado e, ao se mudar da casa onde morava para a casa onde ficava o seu laboratório a fim de facilitar o seu trabalho, Ford, vendo que Carver teria de subir diariamente uma longa escada para chegar ao laboratório, comprou um elevador e supervisionou pessoalmente a instalação. Sobre o presente e a amizade entre os dois, Carver disse, em carta ao amigo: “O meu maior de todos os inspiradores, sr. Henry Ford [...] o elevador que me deu e instalou foi um salva-vidas [...] O Grande Criador o recompensará, eu não posso [...]. O maior presente que ganhei de um mortal foi o dia em que nos conhecemos em Dearborn”.

Carver também cultivou um grupo muito próximo de discípulos, os chamados “Carver’s Boys”. Manteve uma longa correspondência com eles, sempre encorajando-os aos estudos, à ciência e, sobretudo, ao amor a Deus.

Não era uma pessoa de fácil tratamento, mas notavelmente extraordinário em seu caráter. Kremer nos dá uma definição bastante interessante do problema de categorizar Carver:

Talvez a complexidade e a riqueza da personalidade de Carver nos tenham escapado tanto porque ele desafia a categorização fácil. Ele não se encaixa confortavelmente nos moldes que geralmente usamos para fins de descrição. Ele era um cientista? Claro, mas ele também contava com meios muito não científicos de obter conhecimento. A inspiração religiosa fazia parte tanto de sua busca pela verdade quanto a experimentação. Ele foi bem sucedido? Sim, mas ele se recusou a medir o sucesso nos termos usados pelas pessoas ao seu redor […]. George Washington Carver era um homem profundamente religioso que valorizava o mundo da natureza e se via como um veículo pelo qual os segredos da natureza podiam ser entendidos e aproveitados para o bem da humanidade. Essa era sua missão na vida, e sua recompensa por cumprir essa missão era o simples conhecimento de que ele estava cumprindo bem a vontade de Deus.

Carver ficou tão famoso que até Thomas Edison chegou a procurá-lo com interesse de contratá-lo

Carver conheceu pessoalmente os presidentes Theodore Roosevelt, Calvin Coolidge e Franklin Roosevelt, e o príncipe herdeiro do trono da Suécia chegou a estudar com ele. De 1923 a 1933, Carver visitou as faculdades brancas do sul pelo Comitê de Cooperação Inter-racial. Em 1943, o presidente Franklin D. Roosevelt designou US$ 30 mil para a construção de um monumento nacional em homenagem a Carver – projeto que iniciara antes de sua morte –, em Diamond, Missouri. Este foi o primeiro monumento nacional dedicado a um negro e o primeiro a alguém que não foi presidente do país. O complexo tem 210 acres (0,8 km2) e inclui um busto de Carver, uma trilha, um museu, uma réplica da casa de Moses Carver e um cemitério. O monumento foi aberto em 1953.

George Washington Carver morreu em 5 de janeiro de 1943, aos 78 anos. Que seu legado científico e de superação, bem como sua fé, nos seja inspiração para enfrentarmos os nossos próprios desafios. Encerro com suas palavras de fé e amor à ciência:

Como agradeço a Deus todos os dias em que posso andar e conversar com Ele. Na semana passada lembrei-me de Sua onipotência, majestade e poder através de um pequeno espécime de mineral que me enviaram para análise, de Bakersfield, Califórnia. Eu o dissolvi, purifiquei e tornei as condições favoráveis à formação de cristais, quando, diante de meus olhos, um belo monte de cristais verde-mar se formou e, ao lado deles, um monte de brancos como a neve. Maravilha das maravilhas, como eu gostaria de ter você nesse pequeno workshop de Deus por um tempo, como sua alma ficaria emocionada e elevada. (Carta a Jack Boyd, em 1.º de março de 1927)

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