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Geração Z: algumas perguntas, nenhuma resposta (ainda)
| Foto: Franz Bachinger/Pixabay

“Alegre-se, jovem, na sua mocidade, e que o seu coração lhe dê muita alegria nos dias da sua juventude. Ande nos caminhos que satisfazem ao seu coração e agradam aos seus olhos; saiba, porém, que de todas estas coisas Deus lhe pedirá contas. Afaste do seu coração a mágoa e remova de seu corpo a dor, porque a juventude e a primavera da vida são vaidade.” (Eclesiastes 11, 9-10)

Como professor e de jovens – e pai de um –, tenho observado com particular atenção o seu comportamento nos últimos anos. Sim, a tal Geração Z é muito diferente da minha (sou da Geração X), uma vez que são, por exemplo, nativos digitais. Vi o surgimento dos computadores pessoais (os PCs), dos celulares e da internet. Sou da época dos telefones públicos (os orelhões), dos videocassetes e da Banheira do Gugu. Tive um pager; usei muito o Guia de Ruas, da Mapograf; cresci pela rua, brincando de pega-pega, esconde-esconde e queimada; toquei na fanfarra da escola, andei muito de bicicleta e skate. Enfim, fui um típico moleque e tive uma existência analógica até a vida adulta.

Por isso, não sou capaz de mensurar os efeitos – para o bem e para o mal – de ter nascido na era da internet e dos smartphones. Só sei que isso gerou quase um outro tipo de ser humano, com muito menos interações sociais reais e muito mais imerso no mundo digital. Mais isolado e, consequentemente, menos capaz de lidar com os percalços da vida. Dois exemplos próximos ilustram o meu ponto (o leitor deve ter os seus). O primeiro é o do meu filho, atualmente com 19 anos e que, finalmente, começou a trabalhar. Por um tempo ele me deixou preocupado, pois havia dado uma guinada comportamental, de uma criança superextrovertida para um adolescente sorumbático – não conosco, em casa, mas com os de fora. Mas, de repente, encontrou uma tribo alternativa, via internet, que gosta de música hardcore, e passou a frequentar alguns eventos ligados a isso. Montou uma banda, fez alguns shows e o vi todo empolgado com isso. No entanto, bastou o primeiro problema com um dos membros e a banda simplesmente acabou. Um problema simples, que convém expor ao leitor, mas que eles não conseguiram administrar.

Não sou capaz de mensurar os efeitos – para o bem e para o mal – de ter nascido na era da internet e dos smartphones. Só sei que isso gerou quase um outro tipo de ser humano, com muito menos interações sociais reais e muito mais imerso no mundo digital

O segundo foi na escola. Uma turma de alunos, da primeira série do ensino médio, me fez uma proposta para uma dinâmica em sala: um aluno se sentaria numa cadeira, de frente para os colegas, exporia um problema que o estivesse afligindo e, caso outro colega se solidarizasse, ele se levantaria e daria um abraço no testemunhante. No início, poucos alunos se dispuseram a abrir o coração publicamente; mas houve um efeito contagiante e, no fim, quase todos expuseram problemas. Eles se abraçaram, choraram juntos, se consolaram e incentivaram; no fim, foi uma experiência maravilhosa e gratificante para todos. A única coisa que me incomodou é que os problemas expostos eram, em sua grande maioria, digamos, simples. Sim, nenhum problema é simples, mas digo no sentido de que eram tipicamente problemas de relacionamento – não amoroso, mas com outras pessoas, basicamente amigos e parentes. Ou pela falta de uma avó que morreu (e era a única pessoa que se importava), ou pela amizade não correspondida, ou pelos pais muito exigentes etc. Problemas que, refleti eu, se atenuariam muito se a rede de relações desses queridos alunos fosse expandida.

Entretanto, como diz o neurocientista Michel Desmurget, citado em artigo sobre a Geração Z aqui, nesta Gazeta do Povo: “Diminuição da qualidade e quantidade das interações intrafamiliares, essenciais para o desenvolvimento da linguagem e do emocional; diminuição do tempo dedicado a outras atividades mais enriquecedoras (lição de casa, música, arte, leitura etc.); perturbação do sono, que é quantitativamente reduzido e qualitativamente degradado; superestimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração, aprendizagem e impulsividade; subestimulação intelectual, que impede o cérebro de desenvolver todo o seu potencial; e o sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia a maturação cerebral”. Todas essas coisas, típicas nos nativos digitais, têm não só prejudicado o seu amadurecimento, mas comprometido a sua inteligência.

Jonathan Haidt, no seu mais recente livro, A geração ansiosa, que só comecei e ler e sobre o qual pretendo falar com mais vagar em outra oportunidade, aponta, no subtítulo do livro, inclusive, que a infância hiperconectada está causando sérios transtornos mentais nos jovens da Geração Z. Ele afirma:

“A geração Z foi a primeira a passar pela puberdade com um portal no bolso, que os afastava das pessoas próximas e os atraía para um universo alternativo empolgante, viciante, instável e […] inadequado a crianças e adolescentes. Ser socialmente bem-sucedido nesse universo exigia que eles dedicassem grande parte de sua consciência – o tempo todo – a gerenciar o que viria a se tornar sua marca na internet. Isso agora era necessário para que fossem aceitos por seus pares, o que é vital na adolescência, e para evitar o linchamento na internet, o maior pesadelo da adolescência. Os adolescentes da geração Z se viram obrigados a passar muitas horas de seus dias navegando pelas publicações felizes e reluzentes de amigos, conhecidos e desconhecidos. Assistiram a um número cada vez maior de vídeos criados por usuários e empresas de entretenimento transmitidos por streaming, oferecidos a eles por reprodução automática e por algoritmos projetados para mantê-los conectados o máximo possível. Os adolescentes da geração Z passaram muito menos tempo brincando, conversando, tendo contato com seus amigos e parentes, ou até mesmo fazendo contato visual com eles, o que reduziu suas interações sociais corporificadas e essenciais para o bom desenvolvimento humano. Os membros da geração Z são, portanto, cobaias de uma maneira radicalmente nova de crescer e que é muito distante das interações em comunidades pequenas no mundo real a partir das quais os humanos evoluíram. Podemos chamar esse fenômeno de Grande Reconfiguração da Infância. É como se eles fossem a primeira geração a crescer em Marte.”

E complementa: “Crianças precisam brincar livres para se desenvolver. Isso é evidente em todas as espécies mamíferas. Os pequenos desafios e reveses que surgem nesse universo restrito do brincar são uma vacina que prepara as crianças para encarar desafios maiores depois”. Com as mudanças sociais, políticas e econômicas ocorridas nas últimas décadas, bem como a mudança de comportamento e mentalidade dos próprios pais, as crianças da Geração Z passaram a ser mais protegidas dos necessários desafios do amadurecimento, e isso teve consequências, agravadas pelo surgimento dos smartphones e das redes sociais.

Por isso, algumas perguntas se nos impõem: há um limite para esse problema? Em outros termos, trata-se de uma fase de transição e as coisas tendem a, naturalmente, voltar ao normal? Se não, como mudar isso? Como evitar – se é que é possível – que uma geração inteira seja mergulhada na incapacidade de lidar com os desafios mais básicos da vida, caindo, invariavelmente, num estado de completa inabilidade e desespero? Penso que aqueles que têm uma família minimamente estruturada podem, se não evitar, equacionar e contornar a tragédia que se aproxima. Mas e aqueles – que, atualmente, parecem ser a maioria – cujas famílias naufragam em disfuncionalidades das mais variadas? Essa tem sido a preocupação de pensadores como Jonathan Haidt. E deve ser a nossa também.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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