“O proletariado necessita do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência tanto para reprimir a resistência dos espoliadores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena-burguesia, os semiproletários, na prática da ʻorganizaçãoʼ da economia socialista.” (Vladimir Lênin, O Estado e a Revolução)
A violência política e o ódio ideológico foram temas dessa coluna mais de uma vez (aqui, aqui e aqui, por exemplo), de modo que não precisaria me repetir não fosse a recorrência com que somos surpreendidos por tais vícios de uma sociedade moralmente doente. Como bem nos ensinou Platão (e não canso de repetir), uma sociedade saudável, virtuosa, é aquela em que os indivíduos – sobretudo os homens públicos – são saudáveis. Quando chegou a Siracusa, onde fora tentar implantar suas ideias políticas, ao ver a desordem em que viviam os cidadãos daquela cidade, o mais nobre discípulo de Sócrates disse: “Nenhuma cidade, também, tenha as leis que tiver, poderá viver tranquila, quando os cidadãos consideram de bom aviso gastar dessa maneira e não ocupar-se com mais nada se não for comer e beber à farta, só pensando nos prazeres do amor. Fatalmente as cidades desse tipo passarão por todas as formas de governo: tirania, oligarquia, democracia, sem que os detentores do poder admitam sequer ouvir o nome de um governo de justiça e igualdade” (Platão, Carta VII).
Siracusa é aqui – como eu disse lá em 2018 –, e ontem, dia 16, tivemos mais uma prova de que a violência e o autoritarismo são as características mais marcantes de nossa política e de nossa democracia de fachada. O deputado Glauber Braga, do PSol, agrediu, a empurrões e pontapés, um cidadão a fim de expulsá-lo da Câmara dos Deputados, em Brasília. O cidadão, o leitor que acompanha política deve saber, é Gabriel Costenaro, militante do Movimento Brasil Livre (MBL). Costenaro estava na Câmara para ato em apoio aos motoristas de aplicativos, que protestavam contra o projeto de lei que regulamenta a atividade e teriam audiência com parlamentares, quando encontrou o deputado no saguão da “Casa do Povo”, entabulando com ele uma discussão, até ser agredido e empurrado para fora.
A facilidade com a qual sujeitos e movimentos autoritários rotulam seus oponentes políticos a fim de desumanizá-los e transformá-los numa categoria de pensamento é bem conhecida
O caso, amplamente noticiado, não requer maiores detalhes aqui. Mas as escabrosas reações da esquerda merecem a nossa atenção. O próprio Glauber Braga, ontem mesmo, após o ocorrido, durante mobilização de servidores de universidades e Institutos Federais (IFs) por reajuste salarial, afirmou:
“Dentro deste auditório tem uma força robusta de quem se posicionou, de quem não custeou o alambrado no enfrentamento ao fascismo de plantão. Sem a ilusão de que a derrota do fascismo se dá exclusivamente pela via eleitoral, mas sem desprezar a necessidade de derrotar também eleitoralmente o fascista que estava na presidência da República [em referência ao ex-presidente Jair Bolsonaro]. Mas a continuidade da mobilização é que faz a diferença para que o fascismo seja definitivamente enterrado. E aí, meus camaradas, minhas companheiras, defender o pensamento crítico, defender a educação pública brasileira, defender a saúde pública brasileira não é uma opção lateral, é uma necessidade histórica, porque é uma necessidade do povo por aquilo que é representado na luta de cada um de vocês. Também porque é fundamental que essa luta seja traduzida no aniquilamento daqueles que querem destruir os Institutos Federais e as universidades públicas: os liberais e fascistas de plantão”. (grifos meus)
A facilidade com a qual sujeitos e movimentos autoritários rotulam seus oponentes políticos a fim de desumanizá-los e transformá-los numa categoria de pensamento é bem conhecida. Como nos diz Gabriel Liiceanu, em Do Ódio (já mencionado mais de uma vez por aqui), “já não se odeia uma pessoa isolada, odeia-se uma pessoa como agente de uma categoria. Odeia-se uma hipóstase englobadora, odeia-se um ‘como’ explicativo-categorial”; nesse caso, como fascista. Uma vez que o fascismo é uma visão política altamente reprovável, associar alguém a ele é condenar seu oponente à demonização absoluta.
O fascismo, como diz Norberto Bobbio em seu Dicionário de Política, é um conceito de difícil compreensão, uma vez que a “multiplicidade de definições é demonstrativa não só pela real complexidade do objeto estudado, como também pela pluralidade de enfoques, cada um dos quais acentua, de preferência, um ou outro traço considerado particularmente significativo para a descrição ou explicação do fenômeno”. No entanto, ele procura elucidar dizendo que:
“Em geral, se entende por Fascismo um sistema autoritário de dominação que é caracterizado: pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa, hierarquicamente organizado; por uma ideologia fundada no culto do chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes, em oposição frontal ao socialismo e ao comunismo, dentro de um sistema de tipo corporativo; por objetivos de expansão imperialista, a alcançar em nome da luta das nações pobres contra as potências plutocráticas; pela mobilização das massas e pelo seu enquadramento em organizações tendentes a uma socialização política planificada, funcional ao regime; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação de massa; por um crescente dirigismo estatal no âmbito de uma economia que continua a ser, fundamentalmente, de tipo privado; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado, de acordo com uma lógica totalitária, a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.”
Agredir fisicamente adversários políticos e pregar o seu aniquilamento é algo democrático somente na República Popular Democrática da Coreia [do Norte]
Agora, sejamos francos: é possível classificar, a não ser na “oposição frontal ao socialismo e ao comunismo”, o MBL como um grupo fascista? Agora, se fizermos um check-list, quais dessas características elencadas acima cabem na visão e na ação política de aloprados (veja aqui, aqui e aqui) como Glauber Braga – que, para diminuir a vergonha de nosso parlamento, deve ser cassado? Agredir fisicamente adversários políticos e pregar o seu aniquilamento é algo democrático somente na República Popular Democrática da Coreia [do Norte].
Outros esquerdistas, como os ativistas Jones Manoel e Carlito Neto (que apagou o vídeo após reação das redes), também rotularam o MBL de “grupo fascista” e pregaram a agressão a seus membros; o canal Galãs Feios disse ser favorável a bater em membros do MBL (que isso deveria ser lei); e o jurista Walter Maierovitch disse, no UOL, que o MBL é uma “associação delinquencial” e pede prisões preventivas a membros do grupo. Absurdo dos absurdos, mas com total anuência da imprensa tradicional, do judiciário e dos demais políticos.
Tudo isso nos mostra quem são os verdadeiros fascistas e como se utilizam de manipulação conceitual e de uma malandragem semântica (a famigerada filosofia Humpty Dumpty) para aniquilar os inimigos e garantir sua hegemonia no poder. É imperioso resistir.
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