Glória Maria e Pelé.| Foto: Zé Paulo Cardeal/TV Globo e Divulgação/CBF
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“O que sou, e como penso, / Aqui vai com todo o senso, / Posto que já veja irados / Muitos lorpas enfunados, / Vomitando maldições, / Contra as minhas reflexões. / Eu bem sei que sou qual Grilo, / De maçante e mau estilo; / E que os homens poderosos / Desta arenga receosos / Hão de chamar-me Tarelo, / Bode, negro, Mongibelo; / Porém eu que não me abalo, / Vou tangendo o meu badalo / Com repique impertinente, / Pondo a trote muita gente.” (Luiz Gama, Quem sou eu?)

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Em 29 de dezembro de 2022 morreu Pelé, não só o maior jogador de futebol de todos os tempos, mas aquele que durante muito tempo foi simplesmente o sinônimo de Brasil, aquele que tornou nosso país conhecido e adorado pelo mundo, que foi reverenciado em vida pelas maiores autoridades políticas desse planeta e inscreveu seu nome no panteão dos verdadeiros heróis, cuja mitologia já se consolidava antes mesmo de sua morte. Meu profundo envolvimento emocional impediu-me de escrever algo à época; perdi o timing por espanto.

Mas eis que o ano iniciou e perdemos, em 2 de fevereiro de 2023, Glória Maria, a corajosa, pioneira e desbravadora face negra do jornalismo brasileiro. E ao receber a triste notícia, não só a lembrança de sua última grande entrevista que ouvi, para o Mano Brown em seu podcast, me veio à mente, mas também a figura do Rei Pelé pelo caráter contíguo de suas trajetórias, mas também de suas lutas para serem reconhecidos como negros que foram e a importância que tiveram como tal.

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Glória Maria fez história, será sempre lembrada não só como pioneira, mas como aquela que fez gerações de pessoas negras acreditarem na possibilidade de sermos o que quisermos

Glória Maria e Pelé sempre foram questionados em sua negritude. Sempre foram vistos como negros da Casa, domesticados e arredios a qualquer polêmica que envolvesse sua cor. Pelé e Glória eram negros translúcidos, cuja tonalidade de pele, preta retinta inquestionável, parecia esmaecer diante de seu sucesso e reconhecimento. E a falta de uma postura enérgica em relação ao racismo não só que a população negra brasileira sofria diante de seus olhos, mas em relação ao racismo que eles próprios certamente sofreram ao longo do tempo, incomodava muito a militância negra contemporânea. Dois exemplos recentíssimos nos dão prova da petulância e da completa falta de noção do que é ser negro e bem-sucedido nesse país.

Em 25 de setembro de 2020 – durante a pandemia de Covid-19, portanto –, Glória Maria foi entrevistada, numa live, pela tarimbada jornalista e colunista social Joyce Pascowitch, em seu canal Glamurama. Lá pelas tantas, ao ser perguntada sobre assédio moral e sexual no contexto da tevê, ela disparou:

“Se você quer saber, eu acho isso tudo, basicamente, um saco. Por exemplo, hoje, tudo é racismo, tudo é preconceito... Eu, até hoje, na tevê, tenho meus câmeras antigos, os técnicos que estão comigo há 40 anos, todos me chamam de ʻNeguinhaʼ. Eu nunca me ofendi, nunca me senti discriminada. Me chamam de uma maneira amorosa, carinhosa. É claro que se falam ʻÔ, negaʼ, não sei o quê, é outra coisa [...]. Então, hoje, tudo é preconceito, tudo é assédio. Está chato. Estou há mais de 40 anos na televisão. Já fui paquerada muitas vezes, mas nunca me senti assediada moralmente. Acho que o assédio moral é uma coisa clara, não tem dubiedade. Não tem como você interpretar. O assédio é uma coisa que te fere, é grosseiro, te machuca, te incomoda, te desmoraliza [...]. Acho que esse mundo está muito chato. Essa coisa do politicamente correto é um porre. Eu não sou politicamente correta e não vou ser, não adianta, não venho de um mundo politicamente correto. Acho que politicamente correto é o caráter, a honestidade, a sua capacidade de olhar para o outro. Isso é politicamente correto. Agora, esse mundo que a gente está, que vem muito da amargura das pessoas, da frustração das pessoas, isso eu não gosto, não aceito. Nessa eu não entro, não, sob nenhuma hipótese.”

Foi o suficiente para que militantes atolados nas ideologias do ressentimento atacassem Glória Maria. Gente que não tem condições de amarrar o cadarço de seus sapatos, que vive num mundo cheio das facilidades que as redes sociais e sua chantagem emocional lhes permitem, demonstrando toda sua pequenez diante da algo que sequer compreendem. O influencer Ad Junior, das profundezas de sua insignificância – pois, convenhamos, ser influencer não significa muita coisa –, ousou escrever um textão a fim de sinalizar virtude para seu público – e para a imprensa, que ama um barraco. Disse ele, dentre outras coisas:

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“[...] infelizmente, como não tivemos a chance de criar uma classe média negra neste país, a senhora provavelmente aprendeu que pra sobreviver, tinha que negociar a pauta com os brancos. Dar uma amortizada, pra agradar a amiga branca racista ou amigo branco escroto. Uma piadinha? Quem nunca? Essa foi a realidade para uma geração de negros que alcançaram algumas posições. E Como alguns negros que chegaram a posição de destaque, se acostumaram ser os negros únicos, no país que abriu a oportunidade para que só um chegasse lá, afim de provar que o racismo estava na cabeça quem sofria. Eles faziam isso lembra? Perversos. Sim, eu entendo a senhora, deve ser difícil ver que tudo, sempre esteve errado nesse país e que a senhora também foi vítima disso. Mas lembre-se sempre, a nossa pauta é inegociável, não tem como voltar atrás. Nem um centímetro. Diferentemente dos Estados Unidos, onde há uma classe média negra que não brinca de usar o negrocard quando convém, aqui neste país, alguns dos nossos continuam a perpetuar a sistemática de que podemos relativizar a opressão e a realidade ao nosso redor. Irmã Glória, se eu puder te chamar de irmã, não dá pra ter dois discursos. É hora rever posicionamentos e se a senhora não deseja ajudar, não atrapalhe a nossa luta, num ano histórico para as discussões da negritude mundialmente. E lembre-se, pra eles você é uma preta que alcançou o sucesso, pra nós, mesmo que sem entender suas posições, você sempre será uma mulher que representa 120 milhões de sonhos. Entendeu a diferença?”

(Peço perdão, caro leitor, pois reproduzi a escrita do rapaz, repleta de erros grosseiros de ortografia e gramática, exatamente como ele postou, para que fique claro o quanto a ignorância, aliada ao  atrevimento, pode produzir verdadeiros descalabros.)

Glória Maria, que tinha idade para ser mãe (ou avó) desse rapaz, fez história, será sempre lembrada não só como pioneira, mas como aquela que fez gerações de pessoas negras acreditarem na possibilidade de sermos o que quisermos. Não haveria Ad Junior sem uma Glória Maria. Para que esse jovem tivesse essa cara de pau deslavada na atualidade, foi necessário que muitas Glórias Marias, conhecidas ou não, lhe pavimentassem o caminho. E como ela mesma afirmou, em sua recente entrevista para o programa Roda Viva, em que foi cobrada por seu posicionamento: “Só de ser quem eu sou, não tem posicionamento maior do que esse [...] Quem não tem história, quem não tem cultura, quem não sabe o que é o que é, não pode perguntar nada, não pode falar nada; primeiro tem que se informar, primeiro tem que saber. Se muita gente hoje está aí conseguindo se manifestar com relação ao racismo, é porque titia Glória está aqui”. Essa era Glória Maria, segura de sua negritude, de sua posição e sua importância na história da televisão brasileira. Sua vida foi uma prova viva de sua luta, que não precisava ser endossada ou corrigida por ninguém.

Textos e vídeos sobre o Pelé ativista, há muito escondidos pela internet, começaram a aparecer e mostrar o quanto nosso Rei fez pelo debate racial no Brasil e pelos mais necessitados

O mesmo ocorreu com Pelé, que sempre teve sua grandeza – e sua negritude – questionada pelos próprios negros. Lembro-me de uma conversa com o rapper Kamau, que eu tenho em alta conta, e o DJ tricampeão mundial Erick Jay, em meu podcast, sobre a importância de Pelé, sobre termos nos recusado a usar o Pelé como um símbolo, como alguém do qual pudéssemos nos orgulhar e nos espelhar e usar o seu exemplo como um marco de poder, de superação e de conquista num contexto de adversidade. Mas meus confrades se recusaram a aceitar, inferindo que o próprio Pelé não quis para si esse papel. Nem mesmo evocando o famoso vídeo em que ninguém menos que o rapper Snoop Dogg e o lendário ex-lutador Mike Tyson exaltavam entusiasticamente nosso Rei foi possível convencê-los de que um símbolo deve ser exaltado enquanto tal, em si mesmo, para além de seus erros e acertos como homem. Como separar o Pelé do Edson Arantes do Nascimento.

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No último filme feito sobre ele (que está na Netflix), o jornalista Juca Kfouri fez uma crítica a Pelé pela suposta falta de posicionamento do Rei em relação à ditadura militar, comparando-o ao lutador Muhammad Ali e seu enérgico e intransigente posicionamento político durante a Guerra do Vietnã –  como se as situações fossem comparáveis.

Fora as acusações que ele sempre sofreu, de ter abandonado a filha. As pessoas nem sequer tentavam entender o porquê daquela celeuma, pois uma pessoa sempre alegre, sempre solícita e que já havia assumido outros filhos não poderia ter agido como agiu com Sandra Regina por maldade. Mesmo Pelé tendo tentado esclarecer o assunto por várias vezes, ninguém queria saber, e até na sua morte isso foi levantado, com muitas pessoas dizendo: “como jogador foi exemplar, mas como pai foi um lixo” – desprezando, inclusive, sua vida em família e sua relação com outros entes queridos.

No entanto, como eu disse naquela conversa em meu podcast, o símbolo começa a ser reconstruído após a sua morte. Textos e vídeos sobre o Pelé ativista, há muito escondidos pela internet, começaram a aparecer e mostrar o quanto nosso Rei fez pelo debate racial no Brasil e pelos mais necessitados. Declarações como “negro tem de votar em negro” – dada em 1995; ter dito, após o seu milésimo gol, em 1969: “Volto a lembrança para as criancinhas pobres, necessitadas de uma roupa usada e de um prato de comida. Ajudem as crianças desafortunadas, que necessitam do pouco de quem tem muito”; ou em seu discurso de despedida do Cosmos, em 1977, em que pedia atenção para com as crianças. Tudo isso são mostras de um Pelé que a militância fez questão de apagar e que agora, graças a Deus, começa a ressurgir.

Na verdade, Glória Maria e Pelé foram aqueles que o grande sociólogo Alberto Guerreiro Ramos chamou de negro-vida, aquele que não cabe em fabulações e não se encerra em análises acadêmicas; ele segue vivendo, construindo sua própria trajetória e lutando com as armas que tem. Diz Guerreiro Ramos:

“Há o tema do negro e há a vida do negro. Corno tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados ʻantropólogosʼ e ʻsociólogosʼ. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Mas uma coisa é o negro-tema; outra, o negro-vida. O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção. O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador, proteico, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem, e será amanhã o que não é hoje. Mal formuladas as retratações verbais do negro no Brasil, elas já estão caducas ou já se revelam falsas, porque o negro-vida é como o rio de que fala Heráclito, em que não se entra duas vezes.”

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Como Glória Maria e Pelé há milhões no Brasil, vivendo suas vidas, lutando suas lutas e legando ao país um resultado muito mais efetivo que os ressentidos e sinalizadores de virtudes que a internet tem nos enfiado goela abaixo, não obstante sua total falta de talento, inteligência e relevância.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]