A música, em geral, é uma coisa terrível. O que é isso? Eu não entendo. O que é a música? O que é que ela faz? E por que ela faz o que faz? Dizem que a música age como uma forma de elevar a alma… Que absurdo, que mentira! Ela age, e age de maneira terrível, e estou falando por mim, só que ela não age nem de longe como uma forma de elevar a alma. Ela não age como uma forma de elevar nem de rebaixar a alma, mas sim de exasperar a alma. (Liev Tolstói, Sonata a Kreutzer)
A primeira “música clássica” que tirou-me completamente do chão foi o Coro dos Peregrinos da ópera Tannhäuser, do insuperável Richard Wagner. Usei aspas porque, como dito, Tannhäuser é uma ópera e não, propriamente, uma música sinfônica, e o coro... bem, é um coro, uma música vocal. Mas foi com ela que, definitivamente, fui introduzido nesse universo de genialidade e beleza. Explico.
Até o início dos anos 2000 eu não conhecia absolutamente nada de música clássica. Quando digo nada, é nada mesmo. Conhecia alguns nomes e, talvez, algo das Quatro Estações, de Vivaldi, que tocava num comercial de sabonete. Era um completo ignorante, pois, em minha família, quase nada se ouvia do gênero. Meu saudoso pai – que depois terá um papel fundamental em minha introdução no assunto, como explicarei abaixo –, tinha uns poucos CDs que ele mesmo não ouvia em casa; e quando eu saía de carro com ele, geralmente o rádio estava numa estação que tocava música clássica, mas não falávamos a respeito, era só música ambiente.
Um dia, estava no café da famosa Livraria Saraiva da Praça da Sé, em SP (bem em frente ao Fórum João Mendes), com alguns amigos queridos e muito cultos que, de repente, entabularam uma longa conversa sobre música clássica. E eu boiei. Fiquei aturdido, pois não poderia participar da conversa, uma vez que não sabia absolutamente nada do que eles estavam falando. Minha ignorância me assustou. Com um pouco de paciência e uns goles de café, os aguardei terminar, então disse: “Beleza, mas essa é a última vez que vocês vão falar nesse assunto sem eu saber nada”.
No outro dia, na hora de meu almoço, fui ao Sebo Alternativa, que frequentei quase diariamente por longos anos e cujo dono, o Zé Carlos, hoje é um grande amigo, e disse: “Zé, o que você tem de CD de música clássica? Preciso conhecer esse negócio”. Ele me mostrou as prateleiras do gênero e busquei por nomes que já tinha ouvido falar. Puxei um CD do Cravo Bem Temperado, de Bach – que provavelmente eu conhecera por conta do protestantismo –, e justamente um CD de prelúdios e coros de Richard Wagner – a quem cheguei através de Friedrich Nietzsche.
Ao chegar no trabalho, coloquei os CDs para ouvir enquanto fazia minhas coisas. O Cravo é uma música exigente e não me caiu bem para uma primeira experiência. Mas quando coloquei Wagner, a primeira música era o Coro dos Peregrinos, parei o que estava fazendo. Foi uma catarse e fui às lágrimas ali mesmo; nunca tinha ouvido uma coisa daquelas! Ouvi uma dezena de vezes e só depois ouvi as outras. Na mesma semana ainda comprei, numa banca de jornais, dois livros, um sobre ópera e outro sobre música sinfônica. Ainda na mesma semana, chegou no Zé – e ele guardou para mim – uma coleção de fitas cassete, com dez caixas, uma para cada compositor e quatro fitas em cada caixa. Ou seja, o melhor de tudo estava ali.
A partir desse dia, minhas madrugadas aos finais de semana foram para absorver tudo aquilo. Sem contar que, no final de semana que se sucedeu à minha catarse wagneriana e minhas novíssimas aquisições, meu pai – que sempre que me via empolgado com alguma coisa relacionada à cultura, corria para me abastecer com o melhor que havia naquele assunto – trouxe-me um exemplar d´O livro de ouro da ópera e uma coletânea que ele tinha, com quatro Cds de música clássica. Conversamos longamente a respeito e minha iniciação estava completa.
Mais tarde, com o gosto e o conhecimento mais apurados, três paixões se consolidaram definitivamente: Richard Wagner – cujas óperas ouvi incontáveis vezes –, Gustav Mahler – as sinfonias 2 e 8 são uma experiência espiritual única – e o quinto evangelista, Johann Sebastian Bach – chorei no primeiro acorde da Paixão Segundo São Mateus, na Sala São Paulo.
Mas isso, como o caríssimo leitor pode perceber, exigiu de mim uma espécie de treinamento, pois gostar de música clássica não era tão natural para mim como, por exemplo, ouvir R&B americano. Foi preciso não só um aprofundamento empírico, mas algum conhecimento, digamos, técnico. Tive de aprender a diferença entre uma sonata e uma sinfonia; entre o timbre de um oboé e de um violoncelo – bem como seus nomes. Só assim pude discernir e avaliar o que ouvia. As árias operísticas e lieder, por exemplo, demorei muito mais para apreciar que os coros; hoje aprecio muito. Não há coisa mais linda do que as Wesendonck Lieder ou as árias pungentes de Tristão e Isolda, de Wagner. Mas foi preciso educar meus ouvidos para tal experiência e compreender a natureza desse tipo de música.
Como mencionei num artigo anterior sobre música, aqui, nesta Gazeta do Povo, “há algo de divino na música, que, por sua ʻubiquidade e antiguidadeʼ, como diz Daniel Levitin […], a diferencia de todas as outras atividades humanas”. E o neurocientista ainda nos explica que “a atividade musical mobiliza quase todas as regiões do cérebro de que temos conhecimento, além de quase todos os subsistemas neurais”. Do ponto de vista neurológico é algo muito impressionante – aliás, recomendo fortemente o livro de Daniel Levitin, A música no seu cérebro; mas penso haver mais, muito mais quando falamos em apreciação musical, e isso envolve, inclusive, duas questões fundamentais: o modo como a música nos afeta – a não ser que soframos de amusia, a incapacidade de discernir sons musicais – e nossa capacidade de avaliar aquilo que podemos considerar boa ou má música (ou seja, os critérios).
As emoções que a música provoca em nós dependem, obviamente, do gosto musical de cada pessoa. Uns gostam de Beethoven, outros de Chitãozinho e Chororó; outros, ainda, os chamados ecléticos, gostam dos dois – sou desses. No entanto, penso que, em relação à música clássica, existe a necessidade, conforme relatei acima, de educarmos nossos sentidos e conhecimento, pois, atualmente, esse tipo de música tornou-se, digamos, elitizado; não porque se tenha apartado naturalmente do gosto popular ou sido apropriado indevidamente pelas classes mais altas; mas, justamente, porque a chamada música popular ocupou praticamente todos os espaços. Como diz Roger Scruton na introdução de seu livro Music as an Art:
“No passado, nossa cultura musical tinha bases seguras na igreja, na sala de concertos e em casa. A prática comum da harmonia tonal unia compositores, intérpretes e ouvintes numa linguagem comum, e as pessoas tocavam instrumentos em casa com um sentimento íntimo de pertencer à música que faziam, assim como a música lhes pertencia. O repertório não era polêmico nem especialmente desafiador, e a música ocupava seu lugar nas cerimônias e celebrações da vida cotidiana, ao lado dos rituais da religião cotidiana e das formas de boas maneiras. Não vivemos mais naquele mundo. A música que se toca em casa surge, em grande parte, de máquinas digitais controladas por botões que não requerem nenhuma cultura musical para serem pressionados. Para muitas pessoas, especialmente os jovens, a música é uma forma de diversão amplamente solitária, a ser absorvida sem julgamento e armazenada sem esforço no cérebro. As circunstâncias da produção musical mudaram radicalmente, e isso se reflete não apenas no conteúdo melódico e harmônico da música popular, mas também na anulação radical da melodia tonal e da harmonia no repertório ʻclássico modernoʼ”.
Outro problema é que, na era da pós-verdade e do relativismo, definir critérios de avaliação estética (ou de qualquer outra coisa) tornou-se quase um crime. A Beleza foi expulsa das discussões sobre arte em geral, assim como a Verdade foi desbaratada das discussões filosóficas. E para consolidar essa nova e triste realidade, um componente de intranscendência foi fundamental. Como diz Ortega y Gasset em A desumanização da arte, “para o homem da novíssima geração, a arte é uma coisa sem transcendência”. E complementa:
Não o entenderemos bem o caso se não o virmos numa comparação com o que era a arte há trinta anos, e, em geral, durante todo o século passado. Poesia ou música eram então atividades de alto calibre: esperava-se delas pouco menos que a salvação da espécie humana sobre a ruína das religiões e o relativismo inevitável da ciência. A arte era transcendente num nobre sentido. Era-o por seu tema, que costumava consistir nos mais graves problemas da humanidade, e o era por si mesma, como potência humana que prestava justificação e dignidade à espécie. Era de ver o solene gesto que perante a massa adotava o grande poeta e o músico genial, gesto de profeta ou fundador de religião, majestosa postura de estadista responsável pelos destinos universais. Um artista atual suspeito que ficaria aterrado ao se ver ungido com tão grande missão e obrigado, em consequência, a tratar em sua obra matérias capazes de tamanhas repercussões.
Apresentar música clássica a um novo público – sobretudo ao público jovem – exige, portanto, que, antes, o façamos compreender essas noções a fim de recuperarem o sentido pleno da apreciação estética e da Beleza. Como diz Scruton em Beleza – aliás, um livro excepcional para essa discussão –, “a verdadeira arte é um chamado à nossa natureza superior, uma tentativa de afirmar aquele outro reino em que a ordem moral e espiritual prevalece”. E isso não é só desejável, mas necessário, pois a verdadeira beleza não é só entretenimento, mas educação dos sentidos e do intelecto, é formação da imaginação moral. Pois não há nada mais sublime do que sermos suspensos em catarse por uma bela peça musical e sairmos dela transformados, como nos exemplifica Tolstói através de seu controverso personagem Pózdnichev, da maravilhosa novela A sonata a Kreutzer (já citada na epígrafe):
A música me obriga a não pensar em mim mesmo, a não pensar na minha condição verdadeira, ela me transporta para outra condição, que não é a minha: sob o efeito da música, tenho a impressão de que sinto o que eu, propriamente falando, não sinto, de que entendo o que eu não entendo, de que posso o que eu não posso. Eu explico isso dizendo que a música age como o bocejo, como o riso: não tenho sono, mas eu bocejo quando vejo alguém bocejar; não tenho do que rir, mas rio quando ouço uma risada. Ela, a música, me transporta de uma só vez, de modo imediato, para o estado espiritual em que se encontrava quem compôs a música. Eu me fundo com o compositor, espiritualmente, e me transporto, junto com ele, de um estado para outro, mas por que faço isso, eu não sei.
Não que algo similar não ocorra a quem ouve, por exemplo, Comfortably Numb, do Pink Floyd, mas, novamente, penso haver um tipo de efeito que pertence somente à música clássica, tanto pela variação melódica e quantidade de instrumentos, bem como pela consciência – quando devidamente iniciados – da complexa estrutura das composições. As Paixões de Bach, a Nona Sinfonia de Beethoven, a Missa de Santa Cecília, de Padre José Maurício Nunes Garcia, o Réquiem de Hector Berlioz ou de Mozart, são obras de gênio, insuperáveis, e não há nada que se compare a isso. Se o nobre leitor não consegue compreender tal distinção por não estar familiarizado com o que estou dizendo, experimente assistir, ao vivo, a uma apresentações de uma grande obra musical clássica; tenho certeza que algo de muito especial lhe ocorrerá. Tal experiência e aprendizado é não só possível – como foi a mim – mas desejável e valiosíssimo!
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